A recusa

Os times campeões da NBA tradicionalmente são recebidos na Casa Branca pelo presidente dos Estados Unidos numa pequena cerimônia aberta à imprensa. O ritual é simples: apertam-se mãos, o presidente aparece em fotos com as grandes estrelas do esporte, os atletas sentem-se prestigiados, muitas fotos são tiradas e então todo mundo volta para casa. Num país muito ligado ao seu modelo democrático e extremamente respeitoso com a figura de seus presidentes – por mais controversos que sejam – essa ritualística serve como uma espécie de honraria para os times campeões, um aceno vindo de uma figura simbolicamente munida de poder. Jogadores estavam sempre empolgados para conhecer Barack Obama, mas mesmo o ex-presidente George Bush, que por diversos momentos de seus dois mandatos não possuía muito apelo popular, recebeu continuamente as equipes campeãs da NBA mesmo quando era evidente que alguns daqueles jogadores não faziam parte de sua base de apoiadores políticos. Rasheed Wallace, um dos jogadores mais politizados e vocais a passar pela NBA, era um crítico declarado de Bush e sua política externa. Em sua visita à Casa Branca com o Pistons campeão de 2004, Rasheed não trocou palavras com o então presidente, mas não recusou o aperto de mão, por mais constrangedor que ele fosse. A cerimônia simbolizava o caminho do Pistons rumo ao topo, a glória de conquistar um título tão importante que não podia ser ignorado por ninguém no país. Nas palavras de Sheed, ir à Casa Branca era algo que ele “simplesmente precisava fazer”.

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Essa estranha tradição manteve-se intacta até que Stephen Curry admitiu, em entrevista coletiva, que não gostaria de participar da cerimônia com o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Seu desabafo não foi uma recusa, entretanto – Curry explicou que a decisão seria tomada com todo o time campeão, coletivamente, através de uma votação, mas que seu voto pessoal seria contrário à cerimônia. Trump não esperou essa votação acontecer: em sua conta pessoal de Twitter, que o presidente iconicamente usa diariamente em seu mandato, afirmou que “visitar a casa Branca é considerada uma grande honra para um time campeão” e que, como Stephen Curry estava “hesitante”, o convite foi “retirado”.

Entrar em uma casa enorme e apertar a mão de um sujeito de terno não produz nada concreto: tudo se trata de uma SIMBOLOGIA, não do que aquele ato é mas sim daquilo que o ato representa. Como Trump afirma – e até mesmo Rasheed Wallace admitiu – a cerimônia de encontro com o presidente simboliza a vitória, a capacidade de alcançar o maior palco do país na presença da figura mais respeitada em uma democracia representativa sólida. Mas, da mesma maneira, a recusa a comparecer ao encontro deve ser compreendida não pelo ato em si, mas pelo que ele simboliza. Recusar a Casa Branca não é recusar o prédio, o presidente, o país ou a honraria: trata-se de uma recusa a um certo CONJUNTO DE VALORES.

A campanha de Trump foi extremamente polêmica por suas afirmações contrárias aos imigrantes, aos muçulmanos e aos mexicanos, com a proposta de um “muro gigante” capaz de separar fisicamente os Estados Unidos e o México monopolizando boa parte das discussões políticas de sua candidatura. Muitos temiam que sua vitória defendesse ou facilitasse preconceitos, racismos e intolerância. Quando um grupo de extremistas raciais se reuniu em Charlottesville para proteger a estátua de um militar que lutou contra a liberdade dos negros – e, por consequência, lamentar a liberdade dos negros – os temores de que a intolerância afloraria em seu governo tornaram-se realidade. Esperava-se que o presidente criticasse os extremistas raciais – ainda que parte considerável deles componha sua base de eleitores – em nome de valores fundamentais para a vida social. A crítica, no entanto, foi tímida e apontou dedos tanto para os racistas quanto para os grupos que os combateram. Dividiu responsabilidades entre aqueles que oprimem e aqueles que se defendem, um truque famoso para proteger grupos intolerantes que não possuem espaço dentro de uma coletividade.

A questão racial tem ganhado cada vez mais força nos Estados Unidos. Desde que Eric Garner, homem negro, foi morto a sangue frio por um policial na frente de pedestres em plena luz do dia, sufocado sem demonstrar perigo ou resistência sob os gritos de “não consigo respirar”, diversos jogadores da NBA decidiram protestar. Estrelas como LeBron James, Kobe Bryant e Kyrie Irving treinaram em quadra vestindo camisetas com os dizeres “Não consigo respirar” e defenderam publicamente movimentos como o “Black Lives Matter”, que tenta combater o preconceito que faz com que as vidas dos negros pareçam possuir menor valor para as autoridades – especialmente para as forças policiais.

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Muitos jogadores da NBA não são apenas negros, mas também nascidos em situações de extrema fragilidade social em regiões empobrecidas pelo preconceito e pelos resquícios da escravidão. O basquete apareceu para a maioria deles como única porta de saída para a pobreza, uma chance de alcançar boas universidades através de bolsas de estudo e romper com uma realidade que se impõe geração após geração. Muitos começaram no esporte nas quadras de rua das periferias, de modo que o basquete americano sempre esteve fortemente relacionado com a cultura do hip hop, do rap e com a identidade visual desses grupos periféricos. Por alguns anos sob o comando do comissário David Stern, a NBA preocupou-se em não ficar exclusivamente associada a essa imagem e a esse público, forçando os jogadores a abandonarem suas vestimentas identitárias em nome de um código mais relacionado com o “homem branco bem sucedido”, ou seja, ternos e gravatas. Mas essa preocupação durou pouco quando a NBA percebeu ser a liga de esporte americano mais “globalizável”: enquanto o futebol americano é uma paixão nacional com mínimo impacto internacional e hóquei e baseball são esportes limitados a alguns poucos países, o basquete é um fenômeno mundial. A chegada de Yao Ming, astro chinês, consolidou a percepção de que se focar apenas no mercado local era pensar pequeno. Sob o lema de “NBA Sem Fronteiras”, David Stern espalhou sua liga pelo mundo e recebeu um número cada vez maior de estrangeiros de todas as partes do globo.

Isso só se faz possível, entretanto, através de um conjunto de valores que permitam a igualdade, o respeito, a tolerância e a irmandade sob as regras do esporte. Antes temendo perder público por defender valores que pudessem contrariar uma parcela conservadora de seus fãs, a NBA passou a politizar-se rumo a uma liga cada vez mais inclusiva. A WNBA passou a receber mais apoio, mulheres aos poucos passaram a fazer parte de comissões técnicas e equipes de transmissão, multas foram dadas para jogadores que realizaram comentários homofóbicos. Em 2014 o então dono do Los Angeles Clippers, Donald Sterling, foi banido da NBA por conta de seus comentários racistas e machistas e uma série de processos relacionados na justiça, sendo forçado a vender o time. Ali a NBA havia decidido, com total clareza, que tipo de liga esportiva queria ser.  Pouco depois, em 2016, a NBA se recusou a realizar o All-Star Game em Charlotte quando o estado aboliu leis de proteção à comunidade LGBT. No pronunciamento oficial, o atual comissário Adam Silver disse estar zelando pelos valores fundamentais da NBA, a saber: “diversidade, inclusão, justiça e respeito pelos outros e suas diferenças”. Sob o mantra de que não se posicionar é uma posição – que em geral toma o lado do mais forte, o opressor – a NBA criou coragem para se colocar como uma liga sem fronteiras, sejam elas nacionais, sejam elas raciais ou de gênero.

Quando Stephen Curry recusa a Casa Branca, não é simplesmente porque não concorda com Trump, mas sim como símbolo de sua recusa aos valores que ele propõe – valores esses que também contrariam aquilo a que a própria NBA se propõe. Por isso o comissário Adam Silver, ao invés de contrariar Curry – seria justificável se preocupar com a má publicidade que o ato pudesse trazer – defendeu publicamente a posição do armador e seu direito de se manifestar, apenas lamentando a “chance perdida” de que Curry e o Warriors levassem suas reclamações diretamente ao presidente.

Silver não foi o único a defender Curry: LeBron James, que certamente não faz nem fará parte de nenhum clube de fãs de Stephen Curry, foi ao seu Twitter chamar Trump de “vagabundo”, afirmando que “se Curry disse que não queria ir, não importava o convite” e que comparecer à Casa Branca era “uma grande honra até Trump aparecer”.

O técnico Gregg Popovich disse que a questão racial é algo que não podemos ignorar, que nada melhorará se não discutirmos a respeito, que é preciso um “elemento de desconforto” no discurso para conseguir mudar as coisas, e que Trump é “uma vergonha para o mundo”. Chris Paul também usou o Twitter, perguntando-se por que Trump está preocupado com quem visita a Casa Branca (ou quem sem ajoelha durante hinos) ao invés dos problemas do país.

A referência a ajoelhar em hinos remete à NFL. No ano passado, o quarterback Colin Kaepernick passou a ajoelhar durante o hino nacional em protesto à violência racial e em apoio ao “Black Lives Matter”. Como ele não conseguiu um contrato nessa temporada – e muitos cogitam que isso se deva à sua posição política e não ao seu talento, algo que eu jamais seria capaz de julgar – Trump achou que estava em uma posição de força e afirmou que seu “desrespeito ao hino e à bandeira nunca seriam tolerados”. Como resposta, uma série de times da NFL passaram a ajoelhar ou se dar os braços durante o hino nacional.

Para Trump e muitos dos seus apoiadores, o hino não é apenas uma música e a bandeira não é apenas um pano com listras: são símbolos do país, dos seus valores e, bizarramente, das forças armadas que atuam para manter esses valores tanto nos Estados Unidos quanto em outros países do mundo. Ajoelhar diante desses símbolos, portanto, seria um ato de desrespeito que, segundo Trump, deveria ser punido com “demissão” ou “fortes multas”. Trump clamou que os fãs verdadeiramente respeitosos e patriotas abandonassem os jogos em que jogadores se ajoelhem para que forcem a prática a parar.

O que Trump não percebe – ou convenientemente finge não perceber – é que símbolos podem ter interpretações distintas. Para os jogadores que ajoelham também não se trata de uma música e um pano listrado, mas sim de uma fachada mentirosa de patriotismo que esconde valores racistas e xenofóbicos. A bandeira agora é a imagem trepidante de um presidente da república que defendeu nazistas e demais extremistas raciais em Charlottesville, delegando a culpa para os grupos que os confrontaram. Muitos desses atletas que ajoelharam se consideram extremamente patrióticos e alguns são até mesmo nacionalistas, mas acreditam que os valores fundantes da pátria os impelem a lutar contra o racismo e a intolerância que Trump representa, e que agora estão simbolizados nesses símbolos nacionais.

Tradicionalmente a NFL é uma liga conservadora, que não quer se envolver em política e que sequer possui, expressos, um conjunto de valores pelos quais lutar. Isso quer dizer que se estamos vendo joelhos tocando o chão por aquelas bandas, podemos esperar seguramente que o mesmo se repita – possivelmente em maior escala – quando iniciarem os primeiros jogos da NBA no próximo mês. Ligada à periferia, globalizada, defendendo abertamente diversidade e inclusão, e sob tutela de um comissário que finalmente não tem medo de que seus jogadores falem publicamente sobre seus valores, temos na NBA uma liga verdadeiramente moderna e madura. Falamos muito sobre como o basquete mudou nos últimos anos, mas esse movimento não foi apenas dentro das quadras: do lado de fora, na era dos nerds e das estatísticas, temos também jogadores inteligentes e politizados dispostos a recusar símbolos com os quais não concordam, como a visita à Casa Branca. Não poderia ser diferente: não há espaço para preconceito, racismo, bairrismo ou xenofobia em nossos tempos globalizados. A NBA não é dos Estados Unidos, de Adam Silver, de Stephen Curry ou mesmo de Donald Trump. A NBA é do mundo.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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