O que é ser um bom armador?

A chegada de Jason Kidd no Nets em 2001 foi um dos momentos mais impressionantes da história do basquete. A equipe foi de fracasso completo ao título do Leste em apenas uma temporada com Kidd comandando a armação. Na temporada seguinte, pra provar que não tinha sido mero acaso, lá estava o Nets de Kidd campeão do Leste outra vez. Infelizmente não levaram o anel de campeão da NBA em nenhuma das duas vezes e Kidd bateu na trave na disputa pelo prêmio de MVP, criando o risco de que essa história de sucesso seja esquecida pela ausência de títulos. Mas isso não tira o assombro do impacto que Kidd teve naquele grupo de uma hora para outra: logo na primeira temporada já foram médias de 15 pontos, 10 assistências, 7 rebotes e 2 roubos para o armador, que botou para correr um elenco confuso composto por novatos cheirando a fralda, veteranos descartados e jogadores secundários pra tapar buraco. Todo mundo parecia alcançar seu melhor basquete quando estava ao seu redor, e jogadores medianos ganharam contratos monstruosos graças a essas duas temporadas mágicas. Todas as jogadas passavam pelas mãos de Kidd e criou-se uma narrativa na NBA de que o papel dos armadores era tornar seus companheiros melhores, soltar a bola e forçar contra-ataques, não precisando saber arremessar já que esse era o ponto fraco de Kidd. Jovens armadores com boa visão de jogo e grande velocidade começaram a ser muito cobiçados por todo elenco medíocre da NBA que queria mudar sua própria história.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Prende a respiração e vamos que vamos!”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2015/10/Kidd.jpg[/image]

Alguns anos depois, em 2008, depois de várias lesões, trocas bizarras e tropeços do New Jersey Nets, Jason Kidd foi trocado para o Dallas Mavericks. Para a confusão total dos torcedores, em Dallas praticamente não havia contra-ataque, ponte aérea ou enterradas; Kidd praticamente não segurava a bola, ditando muito pouco o ritmo do jogo; suas atuações, modestas, influenciavam pouquíssimo o desempenho dos seus companheiros. O que aconteceu? Para onde havia ido o talento daquele eterno candidato ao título de MVP? Teria sido roubado pelos Monstars do filme “Space Jam”? Quando finalmente foi campeão da NBA por esse mesmo Mavs em 2011, Kidd teve médias bem modestas de 8 pontos, 8 assistências e 4 rebotes por jogo. Não era nada além de um jogador secundário.

Além, claro, de alguns aninhos nas costas, a principal diferença entre o Kidd do seu auge no Nets e o Kidd campeão com o Mavs era o esquema tático. No Nets, toda a movimentação era desenhada para explorar aquilo que o Kidd fazia de melhor: velocidade, contra-ataque, jogadores correndo pelas laterais com a quadra aberta, jogadores cortando pela linha de fundo, e uma defesa focada em interceptar as linhas de passe, sufocar a movimentação de bola adversária e gerar o máximo de pontos em transição. No Mavs, a defesa era por zona, afunilando para o miolo do garrafão rumo às garras de Tyson Chandler, enquanto a movimentação ofensiva se baseava em um jogo mais lento, cadenciado, com a bola girando de um lado para o outro da quadra sem ficar nas mãos de ninguém, muitos arremessos no perímetro especialmente no contra-ataque e o armador espaçando a quadra sem atacar diretamente a cesta. Jason Kidd precisava, em Dallas, fazer um monte de coisas que não eram seu forte, como defender individualmente, abrir mão da bola nas mãos e, o mais difícil, acertar com consistência arremessos de três pontos. Tudo isso, claro, enquanto suas maiores qualidades não eram exigidas e nem exploradas. Para o Mavs, a diferença entre ter o Jason Kidd na armação ou um outro jogador qualquer era o raro momento de genialidade para além do esquema tático, aquele passe bizarro que Jason Kidd fazia ser possível num momento inesperado. Mas na maior parte do tempo, Kidd não podia ser Kidd. Levou um par de anos para que ele desenvolvesse seu jogo defensivo e os arremessos do perímetro para se tornar verdadeiramente útil no esquema tático. Só então conseguiu seu primeiro anel de campeão.

O que a história de Jason Kidd no Mavs nos mostra é que o papel do armador não é controlar o ritmo do jogo e tornar seus companheiros melhores; também não é pontuar, defender, decidir o jogo. O que o armador faz em quadra é garantir que o esquema tático funcione: para isso deve segurar a bola ou passar o jogo inteiro sem ela nas mãos, atacar a cesta sem parar ou passar o jogo sem dar um único arremesso – tudo depende do esquema decidido pela comissão técnica. É por isso que armadores parecem brilhar mais em alguns ambientes do que em outros, já que esquemas táticos colocam mais ou menos importância nas mãos de cada posição que está em quadra.

Rajon Rondo passou exatamente pela mesma experiência de transição que Jason Kidd, com um único porém: não se adaptou. Em 2007, ainda em seu segundo ano de NBA, Rondo teve a honra de jogar no Celtics com três dos maiores jogadores de basquete de todos os tempos, Paul Pierce, Kevin Garnett e Ray Allen, reunidos por trocas malucas. Tudo levava a crer que o jovem armador estaria ali só para tapar buraco, compondo um elenco atolado de talento. Mas o esquema tático montado por Doc Rivers, ex-armador da NBA, era pesadamente focado na armação. Exigia que o armador em quadra tocasse na bola em todas as posses do time, distribuísse o número de arremessos para cada jogador e tomasse todas as decisões nos momentos de contra-ataque, comuns graças à forte defesa. Rondo ganhou, não pela experiência mas pelo esquema tático, uma importância desproporcional no elenco. Se ele fosse ruim, o time teria afundado e nenhuma das estrelas presentes seria capaz de impedir o desastre do sonho de título. Mas, como bem sabemos, Rondo chuta traseiros e se encaixou perfeitamente no papel com sua velocidade, visão de jogo e criatividade no ataque. Chegou a ser o melhor jogador em quadra em mais de uma partida nas Finais da NBA que lhe deram o anel de campeão. Mesmo com um elenco mequetrefe, depois que o Celtics resolveu reconstruir, manteve as atuações fantásticas e os números altíssimos: na temporada antes de deixar o time, tinha 8 pontos, quase 11 assistências e 7.5 rebotes por jogo. Até que foi trocado para o Mavs.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Deixando o árbitro para trás.”][/image]

Como aconteceu com Kidd, todas as qualidades de Rondo são pouco ou nada interessantes para o esquema tático do técnico Rick Carlisle – o que interessava, mesmo, era sua defesa. Para ser útil para a equipe, Rondo deveria pressionar a bola defensivamente, correr para o ataque e colocar a bola no perímetro, não no garrafão; distribuir a bola para os lados, deixar que os alas iniciassem as jogadas; e estar sempre disponível para arremessos livres de fora, passivamente, ao invés de tomar todas as decisões ofensivas do seu time. Rajon Rondo odiou seu papel e não quis participar. Seu desinteresse era tão grande que tirou o pé do acelerador na defesa e começou a cometer erros bobos no ataque. Ao invés de ser tão útil quanto qualquer jogador – já que suas especialidades não são exploradas – passou a se tornar pior do que qualquer armador disponível às pencas pela Liga. Eventualmente foi afastado da equipe em plenos playoffs por ter se tornado uma figura disruptiva dentro do elenco. Se tudo isso foi apenas fruto de descontentamento, ou se foi uma escolha ativa para tentar derrubar seu técnico e consequentemente o esquema tático, nunca saberemos. O experimento Jason Kidd no Mavs gerou um título; o experimento Rajon Rondo no Mavs gerou páginas e páginas de fofoca, jogadores trocados por coisa nenhuma, e o Rondo no Kings  – um esquema tático muito mais afeito a seu estilo de jogo.

O que sempre me deixa encafifado é o fetiche do Dallas Mavericks por contratar armadores famosos que serão sub-utilizados pela equipe. Parece que Mark Cuban quer agradar aos torcedores trazendo grandes nomes para a armação mesmo que taticamente eles não façam sentido nenhum e jogadores medianos como J.J. Barea façam adequadamente esse trabalho. É o equivalente a usar dinamite para abrir uma porta: é claro que você conseguirá abrir uma passagem, mas utilizar a maçaneta tem basicamente o mesmo resultado e pode ter certeza de que também sai mais barato. Na temporada passada, quando Chandler Parsons estava saudável ele era o iniciador de quase todas as jogadas ofensivas da equipe, de modo que armadores que saibam jogar sem a bola nas mãos serão tão ou mais úteis do que um Rajon Rondo descontente que não está disposto a passar suas férias treinando obsessivamente arremessos de três pontos.

A nova aquisição do Dallas Mavericks para a posição, Deron Williams, tem tudo para se encaixar melhor do que a tentativa anterior. O auge de Deron, com 20 pontos, 10 assistências e 6 rebotes de média, foi no Utah Jazz de Jerry Sloan, cujo esquema tático tornou possível John Stockton e seu recorde de roubos e assistências. Sob seu comando, qualquer zé mané se tornava um armador produtivo – nunca vou esquecer de um momento em que, em meio a trocentas contusões, o ala defensivo Raja Bell teve que assumir a armação da equipe por uma série de jogos e conseguia toda partida passar a marca das 10 assistências. Se o armador for fantástico, então, melhor ainda: Stockton tinha todas as habilidades necessárias para assumir o papel delimitado pelo técnico e, com ele, vencer o Oeste seguidamente. Deron Williams, bem fisicamente, era tido como o futuro dos armadores da NBA – à frente do seu então rival Chris Paul, com quem tinha duelos épicos.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Pense em quanto tempo perdeu nesse debate de ‘quem é melhor’ e peça perdão a si mesmo.”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2015/10/Deron1.jpg[/image]

Mas quando Deron Williams tornou-se a grande aposta do Nets durante o plano de “vencer agora” para a mudança para Brooklyn, não apenas sofreu com lesões constantes como também descobriu as dificuldades de se jogar fora de um esquema montado por Jerry Sloan. Ser um bom armador no Brooklyn – ou seja, fazer o esquema tático do Brooklyn funcionar – era arremessar de fora constantemente, não abusar dos pick-and-rolls, espaçar a quadra, forçar jogadas de isolamento para si e para seus companheiros. Seus números despencaram; mesmo quando cumpria perfeitamente seu papel, as atuações pareciam comparativamente discretas frente aos seus tempos de Jazz.

Já mais velho, baleado e cansado, esquecido pela mídia e com sua carreira promissora já manchada pelo fracasso dos últimos anos – e pelo sucesso de uma nova leva de armadores pontuadores, além de justamente Chris Paul no feliz esquema tático do Clippers – eis que Deron Williams chega ao Dallas Mavericks. O que o Mavs espera dele? Curiosamente, justamente aquilo que Deron está disposto a dar nesse momento de sua carreira: atuações discretas, menos jogo físico, menos velocidade, e arremessos certeiros livres, em situações melhores do que o Nets podia lhe propiciar. Suas entrevistas ao chegar em Dallas, admitindo que não tem mais condições físicas de acompanhar a molecada, mostram seu alívio com o novo papel que desempenhará, sem a pressão e as expectativas irreais que nublaram sua passagem pelo Nets. É por isso que espero que o Deron Williams seja um bom armador nesse novo momento de sua carreira – mesmo que “ser um bom armador” seja algo tão variável, dependente do esquema de cada equipe, e muitas vezes deixe de fora, ignorado, o talento de tantos grandes jogadores de basquete. Quantos armadores pontuadores não se diluíram em esquemas que precisavam que eles rodassem a bola? Quantos Rajon Rondos não devem ter se perdido por aí em esquemas que exigiam arremessos constantes? Quantos armadores não devem ter sido destruídos pelo Rick Carslile e esse Mavericks – justamente o treinador e o time que foram capazes de entregar a Jason Kidd, um dos maiores armadores de todos os tempos, o título que ele sempre mereceu – ?

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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