O Spurs e o futuro

Kawhi Leonard perdeu os primeiros 27 jogos da temporada com uma lesão séria no quadríceps. Desde seu retorno, perdeu mais 5 jogos para descansar e outros 3 jogos graças a uma nova lesão no ombro. Das 44 partidas que o Spurs disputou na temporada, Kawhi jogou apenas 9. Enquanto isso, Tony Parker perdeu os primeiros 19 jogos da temporada e desde então jogou apenas 18 partidas, menos da metade dos confrontos da equipe. Pra segurar o time, resta um argentino de 40 anos de idade e minutos limitados, Manu Ginóbili, e um jogador previamente descontente vivendo os piores anos de sua carreira, LaMarcus Aldridge. Como elenco de apoio, uma série de pirralhos com pouquíssima experiência na NBA e Rudy Gay, com experiência sobrando em PIORAR os times pelos quais passa há mais de 10 anos. Receita total para o desastre, não é mesmo?

E ainda assim lá está o San Antonio Spurs em terceiro lugar na Conferência Oeste, com a quinta melhor campanha da NBA, como se nada sério estivesse acontecendo. É assim que o Spurs nos treinou nas últimas duas décadas: nada parece estar acontecendo, mesmo quando passam pelos momentos de maior dificuldade ou quando flertam com os maiores recordes da NBA. Tudo está sempre sob controle, sem ânimos exaltados ou movimentações desesperadas no fechamento da janela de trocas da Liga. O Spurs nos ensina a sempre ESVAZIAR o sentido de qualquer acontecimento presente porque eles estão sempre desenhando no futuro – sua conversa é sempre com a História. Quando o time tinha uma chance, na temporada 2015-16, de correr atrás do recorde de mais vitórias numa temporada, ninguém se atiçou. O técnico Gregg Popovich é famoso por descansar seus jogadores justamente porque não está pensando no valor dos jogos em si. Da mesma maneira, quando o Spurs perdeu para o Thunder nas semi-finais de Conferência daquela mesma temporada, ninguém se desesperou. Vencer a NBA para o Spurs não é um tiro de sorte, mas o resultado de um longo processo – faça a coisa certa todas as vezes, ao longo de décadas, e os resultados eventualmente aparecerão. Não é possível ganhar todas; times demais se desmancham ou se reconstroem porque não sabem lidar com uma derrota decisiva que, embora pareça o fim do mundo naquele momento, é pequena e desimportante frente à totalidade da História. Todo mundo que termina um namoro acha que vai morrer, até estar casado com outra pessoa dez anos depois e perceber que, na verdade, aquilo não passava de uma bobagem juvenil.

É por isso que nos desesperamos, em alegria ou angústia, com a oscilação dos demais times – é incrível e quase inacreditável que o Boston Celtics esteja no topo da Conferência Leste; estranho e desconfortável que o Cavs esteja despencando diante dos nossos olhos. São times que vivem no momento, que podem estar vivendo o único momento de sorte – ou de azar – de toda uma geração, cujo sucesso ou fracasso devem ser sorvidos de maneira plena porque não fazemos a menor ideia do que pode acontecer com eles no futuro. O Cavs planeja a CONTA GOTAS, um ano de cada vez, porque não sabe onde LeBron estará no ano seguinte. O Spurs, pelo contrário, é tão constante que nos dessensibilizou. O time está lá entre os melhores da Conferência Oeste e não existe condição em que isso seja novidade ou surpreendente. Não é um evento, não é sequer um acontecimento: simplesmente é como as coisas são, como as coisas sempre foram e como as coisas sempre serão. Ninguém vibra ou chora ao ver que o céu está azul. O Spurs no topo da NBA é exatamente isso, natural, como se fizesse parte da natureza mais profunda e simples das coisas.

Isso só é possível justamente porque o Spurs não é um time, não é um conjunto específico de jogadores, não é uma estrela em particular, mas sim um MODELO, um SISTEMA. Ele é uma maneira de se pensar não apenas o basquete mas também o próprio esporte e a nossa noção de HISTÓRIA. Um modelo inabalável que está sempre mirando na floresta ao invés de olhar para as árvores resiste aos membros do elenco e aos solavancos do tempo. Se esse modelo for um modelo vencedor, então, o resultado é que mais cedo ou mais tarde os títulos aparecem. No seu próprio tempo, sem pressa, sem desespero.

Cometi o erro infantil de pensar que talvez o Spurs não sobrevivesse à lesão de Kawhi Leonard porque o time que vimos nas últimas duas temporadas dependia imensamente do jogador. Ao contrário dos esquemas táticos que Popovich usou nos últimos anos, o Spurs de Kawhi era bastante focado em jogadas individuais e situações de mano-a-mano contra os defensores. Quando a equipe perdeu 4 partidas seguidas no começo da temporada, achei que o modelo havia sido abandonado pela TENTAÇÃO de colocar Kawhi acima de tudo e usar seu talento ao máximo em detrimento de todos os outros. Mas a sequência de derrotas só serviu para Popovich REFORÇAR o modelo, alertando que os jogadores haviam se acostumado em ter Kawhi salvando seus traseiros da reta e que, sem ele, seriam obrigados a retomar o modelo e fazer as escolhas CERTAS. Resultado: quando Kawhi finalmente voltou para as quadras no meio de dezembro, o Spurs tinha 24 vitórias e apenas 11 derrotas. E isso sem Tony Parker, provavelmente o melhor jogador no pick-and-roll da equipe. Chegamos a um ponto em que ao invés de apressar seu retorno, Parker adiou sua volta em 2 semanas não por questões de saúde, mas porque achou que a folga seria boa para ele poder treinar alguns aspectos do seu jogo que ele queria aperfeiçoar. Sem pressa, sem correria. O modelo pode esperar o momento certo de Parker voltar em nome do bem futuro que isso possa trazer.

A jogada abaixo é uma aula de como é fazer parte de um SISTEMA DE JOGO: cada um espaça a quadra da maneira correta, se movimenta sem parar, dá o passe sempre que a situação de arremesso não é ideal e arremessa sem medo quando o momento é adequado.

Talvez a coisa mais legal dessa jogada acima seja o fato de que quando o arremesso livre é dado, existem outros DOIS arremessos possíveis tão bons ou melhores do que ele: Manu Ginóbili pouco marcado de frente para a cesta e Kyle Anderson, COMPLETAMENTE LIVRE, no lado oposto da bola, no perímetro. É fácil ser um arremessador, novato ou vovô, quando se está nessas condições.

Por isso a situação é ideal para os jogadores mais jovens da equipe: existe pouca pressão por resultado imediato, apoio irrestrito para que o jogador se adeque ao sistema e uma carga de responsabilidade dividida entre todos os membros do grupo. Para ficar em quadra, basta tomar as decisões corretas, não precisa jogar o melhor basquete de sua vida. Foi assim que Kyle Anderson, que DESAPARECERIA em qualquer time da NBA, se tornou peça essencial do Spurs. Foi assim que Rudy Gay, famoso por inflar suas estatísticas e prejudicar seus times, conseguiu abrir mão não apenas do ego mas também de sua fama e fazer apenas aquilo que é necessário para o modelo funcionar. Rudy Gay comentou que sua postura com relação ao basquete mudou há anos, mas que ninguém PERCEBIA – o Spurs apenas torna isso explícito porque não há outra maneira de interpretar o sistema que não seja a percepção de que todas as peças funcionam de maneira ideal, juntas.

Talvez por isso o descontentamento de LaMarcus Aldridge na temporada passada tenha sido tão desconfortável, para o time e particularmente para Gregg Popovich. O técnico confessou que em toda sua carreira ninguém nunca havia admitido estar descontente no modelo do Spurs e pedido uma troca, e que Aldridge foi a primeira vez em que isso aconteceu. Mas ao invés de simplesmente trocá-lo – aquilo que todos os times que VIVEM NO MOMENTO fazem – Popovich usou a situação para pensar no FUTURO. Como fazer para que uma situação assim nunca mais aconteça? A resposta óbvia de todo cientista que quer ser capaz de controlar o futuro das coisas é a mesma: entender as CAUSAS do acontecimento. Popovich quis entender não apenas os motivos de Aldridge mas também tudo aquilo que tinha causado esses motivos. Chegou à conclusão de que o culpado era o próprio Popovich e, em nome do futuro e não em nome de evitar um incidente momentâneo, o técnico resolveu revisar sua postura. Percebeu que ele havia sido duro demais com Aldridge quando o recebeu em San Antonio, tirando-o de sua zona de conforto, impedindo que desse seus arremessos característicos e forçando-o a posições na quadra em que ele não sabia ser eficiente. Talvez essa seja a maior lição sobre o futuro que Popovich pode nos dar: nenhum modelo sobrevive ao tempo se não souber ser MALEÁVEL. Se você força uma rigidez que não coincide com seu material humano, irá falhar. O Spurs em alguns momentos terá esse material humano – Tim Duncan passou uma vida por lá, arremessando dos cotovelos do garrafão e sendo um dos melhores de todos os tempos – mas em alguns momentos, como a História é longa, esse tipo de talento não estará disponível. Não é possível basear todos os seus esforços e esperanças em algo que talvez esteja lá e talvez não esteja mais no dia seguinte. Por isso o modelo tem que se ADAPTAR, manter seus princípios mais básicos – aquilo a que chamamos de estrutura – mas saber variar nas diferentes maneiras de executar esses princípios. Popovich foi sincero com Aldridge: se pudesse trocá-lo por um talento maior, como Kevin Durant, faria isso imediatamente. Mas como ambos sabiam que isso jamais seria possível, precisavam simplesmente encontrar uma maneira de fazer a estrutura funcionar a longo prazo. Isso incluiu devolver Aldridge aos seus lugares preferidos na quadra, lhe dar as bolas que deseja e afrouxar as amarras – desde que, claro, os princípios do jogo coletivo continuem sendo executados.

O que parecia uma crise irremediável que faria o Spurs perder Aldridge por jogadores de menos talento – e, como já comentei aqui em posts anteriores, que poderia também arranhar a imagem de “lugar ideal” do Spurs para atletas que queiram extrair o melhor de suas carreiras – se transformou numa situação de adaptação, maleabilidade e preocupação com o futuro. Futuro esse que agora se realiza, com um time que precisou de Aldridge para “apagar” as eventuais falhas do elenco de apoio que é jovem demais para jogar o basquete impecável pelo qual o Spurs é tão conhecido. Esperto que é, Popovich não se cansa de afirmar para a imprensa que Aldridge garantiu, tanto no ataque quanto na defesa, um patamar de qualidade que permitiu ao resto do time cometer deslizes e ainda assim sair vitorioso de suas partidas. “Ele nos salvou”, afirmou o técnico sem pudor, claramente massageando o ego daquele que, poucos meses antes, pediu para ser trocado justamente por não se sentir desejado. O que parecia é que o Spurs não queria Aldridge, queria que ele fosse OUTRA COISA, um outro jogador, como se ele tivesse que imitar alguém que não está ali. Hoje a sensação já é outra: Aldridge pode ser ele mesmo enquanto se dilui no esquema tático, abrindo mão das responsabilidades exageradas que foram colocadas em seu colo ao longo da carreira. Essa diluição é extremamente confortável e, caso se sinta aceito, Aldridge descobrirá isso muito rapidamente.

Quando Kawhi Leonard finalmente voltar à forma – já jogou quase 30 minutos em seu retorno da lesão no ombro, um atropelamento sem dó do pobre Denver Nuggets – os demais jogadores do Spurs poderão cometer mais erros, abrir mão de alguns arremessos desconfortáveis, saber que Kawhi compensa qualquer deslize defensivo e inventa arremessos quando tudo o mais der errado. Mas isso não passa de uma tranquilidade psicológica que não pode, de modo algum, aparecer na quadra: todos os membros do elenco devem estar preparados o tempo inteiro para fazer a coisa certa, independente da idade ou da experiência em quadra. Se ainda não estão, estarão muito em breve, porque é a única maneira de existir dentro desse elenco.

Por mais que Kawhi faça a diferença – e ele é sem a menor sombra de dúvidas um dos melhores jogadores da NBA atual – o Spurs não precisa dele. O Spurs não precisa de NINGUÉM. E é justamente por isso que Kawhi teve a chance de amadurecer e se transformar no jogador que é hoje. É justamente por isso que Kawhi pode brilhar totalmente e tomar, sem pressão, todas as decisões corretas em quadra que vemos diariamente. Talvez o título não venha nesse ano, talvez não venha no próximo. Não importa. Eventualmente, os outros times se atrapalharão, farão reconstruções, passarão por crises, tomarão decisões precipitadas. E o Spurs estará lá, pronto e maleável, para assumir o topo da NBA quando todos os outros sucumbirem ao próprio desespero.


Já viu as novas camisetas do Bola Presa em parceria com a iTees?

Comece o ano com uma de nossas estampas exclusivas clicando aqui!  

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

Como funcionam as assinaturas do Bola Presa?

Como são os planos?

São dois tipos de planos MENSAIS para você assinar o Bola Presa:

R$ 14

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

R$ 20

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Como funciona o pagamento?

As assinaturas são feitas no Sparkle, da Hotmart, e todo o conteúdo fica disponível imediatamente lá mesmo na plataforma.