Um significado para as bolhas nos pés

Este texto ganhou uma versão em áudio, é o nosso Audiopost. Escute a íntegra do artigo e uma discussão sobre o tema ao final:


Qual o papel do crítico? Essa pergunta, tão essencial à História da Arte, volta constantemente à tona no mundo do esporte, seja com Charles Barkley nos Estados Unidos dizendo que “analistas de estatísticas são lixo, idiotas que nunca jogaram basquete nem nunca pegaram as meninas no colegial”, seja com Eduardo Agra aqui no Brasil criticando recentemente os “blogueiros” que “nunca tiveram uma bolha de tênis no pé”, apenas “informações na frente do computador”. No fundo, trata-se de uma discussão não apenas sobre a relação entre o conhecimento empírico e a crítica, mas também sobre a própria necessidade de que existam críticos, analistas e teóricos e qual função desempenham dentro de suas áreas de interesse.

O primeiro passo para adentrarmos nessa questão é analisar aquilo contra o que se levanta toda a Filosofia: a ação irrefletida. Executar algo não é, necessariamente, entender os motivos ou os meios da execução. Curiosamente, o filósofo Georg Hegel alertava que “aquilo que é mais conhecido é, justamente por isso, o menos conhecido”, apontando que aquelas coisas que todos acreditam conhecer, executar e reproduzir são, pelo seu caráter de naturalidade, amplamente desconhecidas porque nos falta uma postura de reflexão para com elas. Conhecer, portanto, não é apenas uma ação irrefletida: exige uma postura contempladora, que tente compreender racionalmente os motivos e os meios pelos quais uma coisa acontece. Numa ação irrefletida, impensada, feita de maneira mecânica, torna-se muito fácil repetir velhos padrões, preconceitos e um certo grau de pensamento mágico. Basta pensar num jogador que, ao não entender claramente os motivos pelos quais seu arremesso entra constantemente dentro da cesta, atribui seu sucesso à meia que está usando, ou ao calção por baixo da bermuda. Sem refletir sobre a prática, outros jogadores passam então a copiar os gestos, que são passados de geração para geração: é na ação irrefletida que está o nascimento de toda superstição.

Obviamente, é possível realizar uma ação enquanto se reflete sobre ela, mas essa possibilidade é limitada por uma exigência social de que a ação seja realizada não importando seu método. É uma primazia social da prática, no sentido de que as coisas urgem, tudo deve ser realizado o mais rápido possível, de maneira mecânica e controlada, e não há tempo para reflexão – é uma das dificuldades do trabalho moderno, herança das linhas de montagem. A possibilidade de realizar um trabalho anteriormente refletido é privilégio de poucos, que muitas vezes precisam abrir mão de outros aspectos de suas vidas para refletir sobre as próprias ações enquanto dão conta das exigências do mercado de trabalho. Na arte, muitos são os artistas que reproduzem estilemas apenas para vender suas obras; poucos são aqueles que puderam pensar sobre seus métodos e motivos, refletir sobre a arte em si e imprimir isso em suas próprias obras. No esporte, muitos são aqueles que reproduzem modelos, que jogam no “instinto” – o que na prática significa jogar de acordo com seu arcabouço pessoal de referências, copiando aqueles que já viu jogar, e inconscientemente reproduzindo diversos vícios sem propósito – e poucos são os que questionam os motivos de seus próprios movimentos, suas táticas, o que o basquete é de fato ou o que ele poderia ser.

Na arte, apenas alguns grandes nomes eram artistas que também escreviam críticas, ou seja, que pensavam a arte além de produzi-la. Os outros reproduziam estilemas, como quem reproduz receitas de bolo, ou deixavam-se inspirar pelos críticos. Alguém capaz de pensar a arte para além da reprodução mecânica, para além do instinto – mesmo que essa pessoa sequer FAÇA ARTE – acaba abrindo portas para os próprios artistas, apontando caminhos, derrubando vícios e criando um discurso, um objetivo e um significado que justificam a produção artística. Por séculos, apesar de alguns atritos, artistas e críticos alimentaram-se mutuamente: o crítico necessitando da produção artística de outras pessoas para poder analisar, pensar e criar significado, e o artista necessitando da construção teórica do crítico para encontrar novos caminhos de fazer arte, de ser capaz de uma ação refletida, não robótica ou mecânica.

No esporte essa relação está apenas engatinhando porque é recente a percepção de que a prática esportiva MERECE essa atenção e é capaz de produzir significado. Há muito no esporte que é pura prática, pura reprodução corporal, e os motivos e propósitos são inferidos – corretamente ou não – à medida em que se faz, na base da tentativa e erro, muitas vezes sem tempo suficiente para entender as relações de causa e efeito. Ao perder uma partida, devemos apontar os dedos para onde? Para o técnico, para o jogador, para a mecânica de arremesso, para o par de meias ou calção errados? É por isso que grande parte da narrativa interna do esporte fala de “esforço”, “vontade” e “atitude”, características intangíveis, nada definíveis, irrefletidas. O esporte dificilmente pensa sobre si mesmo.

É a crítica esportiva quem PODE se dedicar a pensar o esporte de fora, tentar encontrar suas narrativas, suas histórias, dar significado para gestos que são de outra forma inteiramente destituídos de sentido: para que serve, afinal, acertar uma esfera laranja dentro de um aro exageradamente alto? A conquista de uma cesta, que é uma conquista exclusivamente individual para aquele que consegue a façanha, pode ser transformada em uma narrativa GERAL, coletiva, abstrata através de uma análise mais ampla, menos preocupada com a execução individual e mais com a descoberta da ação humana, do que o esporte significa. Pense numa criança pequena que consegue acertar uma bola de papel dentro de um cesto e imediatamente berra para que sua mãe aplauda sua proeza, apenas para encontrar uma mãe entediada que não vê a menor graça na ação. É preciso, por parte da mãe, encontrar uma narrativa, um elo entre ela e o filho, entre a ação do filho e a humanidade, uma abstração que a mergulhe naquela conquista. Sem isso, tudo que acontece ao nosso redor é completamente sem propósito para além da própria sobrevivência.

São poucos jogadores da NBA os que ao invés de reproduzir um certo modelo estabelecido de jogo, podem escolher estudar, refletir e procurar novas possibilidades: são os nerds de basquete, aqueles que abrem mão do descanso escasso da offseason para estudar o jogo, são os Kobe Bryants da vida que dissecam planilhas, vídeos e estatísticas para entender aquilo a que escolheram dedicar suas vidas. É inegável o impacto cultural que Kobe Bryant teve DENTRO do esporte, no imaginário de outros esportistas, por estar sempre treinando mais, aprendendo e simplificando movimentos, cortando tudo o que era desimportante e encontrando, por base de reflexão e embasamento racional, aquilo que realmente fazia a diferença. Fez como Bruce Lee, que formou-se em Filosofia e dedicou-se a arrancar das artes marciais pela raiz tudo aquilo que era ornamento, desnecessário, movimentos reproduzidos sem reflexão e propósito, e deixar apenas o que era pura eficiência racionalizada. Bruce Lee não fez isso apenas na tentativa e erro – passou a vida estudando e escrevendo sobre a arte de expressar o corpo humano, foi um crítico, desmontou modelos estabelecidos que de fato não faziam sentido algum, recheados de pensamento mágico e imitação descerebrada, e fez uso de outros críticos para isso: nutricionistas, filósofos, fisiologistas, anatomistas. Um soco deixou de ser apenas um soco para tornar-se uma história, um propósito, o auge de uma vasta reflexão, e que volta a lhe ser apenas um soco quando o executa, finalmente, após todo o trajeto intelectual ter sido realizado.

O crítico em todas as artes – sejam elas as artes plásticas, as artes marciais, as artes do corpo, o esporte – cria essa história, esse trajeto, mostra para o leigo onde vale a pena olhar e permite que o artista veja sua obra de fora, com um certo distanciamento, para que possa retirar o que não faz sentido e manter aquilo que é essencial. Nos esportes coletivos, como é o caso do basquete, finalmente tivemos a entrada dos críticos e de especialistas de diversas áreas para dissolver aquilo que era tratado como óbvio e que não passava de ação irrefletida: os médicos mostraram que jogadores rendiam melhor passando menos tempo em quadra (como discutimos brevemente em nosso post anterior), nutricionistas mostraram que a alimentação poderia ajudar na recuperação muscular, estatísticos perceberam que algumas jogadas que eram consideradas vitoriosas na verdade rendiam menos pontos do que outras jogadas menos utilizadas. Aquilo que passamos a chamar nos últimos 10 anos de “revolução estatística” na NBA é, na verdade, a revolução causada por toda a crítica, vinda de especialistas de diversas áreas, que jogam nova luz – a luz do esclarecimento, do encontro de relações causais coerentes – nas trevas da ignorância da ação irrefletida que assolava o esporte. Muito do que pensávamos útil no basquete era, na verdade, ineficiente; estávamos enganados porque nunca havíamos, metódica e estruturalmente, pensado a respeito disso. Quando jogadores passaram a ouvir os críticos – e isso foi um processo longo, já que o preconceito e a crença mágica no “instinto” dominam a prática esportiva – o modo de se jogar basquete foi transformado, e nós vimos isso muito de perto culminando no novo Golden State Warriors. Quando os críticos passaram a ouvir os jogadores, percebendo que algumas descobertas teóricas não se adequam à realidade de um time de basquete, começamos a ver estratégias que realmente podem ser aplicadas em diversos ambientes.

É por isso que a distinção clássica entre teoria e prática foi tão malhada pelos filósofos do pós-guerra. Pensar é fazer, é construir novos modos de se fazer, é dar propósito a uma ação que de outra forma corre o risco de ser vazia de significado. E para fazer basquete, portanto, não é preciso jogar bolas para o alto rumo a um aro, não é preciso entrar em quadra, pegar garotas do colegial ou ganhar bolhas no pé. Para fazer basquete basta dedicar-se a ele: estudá-lo, pensá-lo ou praticá-lo, de maneira refletida ou não, nas quadras ou nas planilhas, com a experiência empírica ou com a capacidade racional de abstração e construção de padrões e modelos. O discurso de que é impossível conhecer algo sem fazer – seja arte, música ou esporte – é um discurso obscurantista, que nega a relação intrínseca entre o pensar e o fazer, que defende uma visão conservadora de fazer aquilo que sempre foi feito sem reflexão, e que ignora a capacidade humana de abstração, de pegar as experiências individuais – a bolha no meu pé, ou a bolha no seu pé – e transformá-las em experiências coletivas, em padrões e modelos, encontrando caminhos para que a gente possa se colocar no lugar do outro. Essa primazia da prática é mais do que uma exigência metodológica pelo empírico, é uma recusa à dedicação e ao estudo, ao conhecimento histórico, ao avanço científico. É uma ode à ação irrefletida.

Sem sombra de dúvidas, o ambiente democrático da internet abriu espaço para todos, leigos e especialistas, tornarem-se críticos. Isso significa que parte da crítica que acontece em nosso cotidiano não é, de fato, uma crítica enquanto ação refletida: há muito, especialmente dentro da nossa cultura do futebol, uma crítica que é pura torcida, pura reprodução de preconceitos arraigados no esporte, e que nada tem a acrescentar à reflexão. Por outro lado, a internet permite àquele que quer se aprofundar, estudar e realmente PENSAR o esporte fazê-lo com uma quantidade nunca antes possível de vídeos, dados, estatísticas, depoimentos, documentos e outros críticos embasados. Dessa forma, o falso crítico – aquele que está apenas torcendo ou reproduzindo clichés sem reflexão – passa a ser facilmente discernível na multidão, com seu discurso claramente diminuído pela densidade e dedicação de outros críticos dedicados. A internet municia aquele que quer pensar o basquete, unindo críticos aos outros críticos, críticos aos leitores, gerando uma discussão constante que questiona os padrões incessantemente, cria sentidos, inventa novas maneiras de compreender o esporte e novas maneiras de se fazer basquete. O Bola Presa orgulhosamente se coloca, ao lado de tantos outros irmãos blogueiros e de tantos leitores dispostos à crítica e ao debate, diante de uma responsabilidade: tentar esclarecer o que não é claro, desnudar o que parece óbvio, apontar diversos lados, abrir caminhos, questionar modelos.

No entanto, estamos claramente falando de um nicho, aqueles que saem do seu caminho natural para PROCURAR na internet espaços de crítica e de construção coletiva de significado. Para a maior parte daqueles que consome basquete como produto de entretenimento, o contato com a crítica vem através das transmissões televisas, em geral dominadas por ex-jogadores. Vejam que alguns artistas eram também críticos de arte, pensando a própria prática e transformando, com o pensamento, o resultado prático final, mas a grande maioria não o era. Muitos dos ex-jogadores não são críticos, no sentido de que não são estudiosos ou especialistas em basquete, não dedicaram ao esporte uma ação reflexiva. O que, em si, não é demérito nenhum. Nada pode lhes tirar as coisas incríveis que construíram dentro das quadras, e nunca seremos suficientemente gratos pelo material prático, o jogo, que tanto nos alimenta. Mas infelizmente o público acaba, com isso, recebendo um conhecimento teórico sobre o jogo que é incompleto, ultrapassado, ou que não passa de uma série de descrições da experiência individual – “a minha bolha”, “a minha época”, “no meu tempo”, “o meu técnico”, etc. O papel do ex-jogador que comenta é o papel de crítico, de direcionar o olhar, de construir a experiência abstrata coletiva, de criar significado. Nisso, ex-jogadores, blogueiros e fãs dedicados são iguais: têm uma responsabilidade para com a elucidação do esporte, com desnudar aquilo que parece naturalmente dado. Por isso, quando um ex-jogador ataca o crítico – não pelos seus argumentos, o que em si já ajudaria a crítica a avançar e encontrar outros caminhos, mas por uma suposta “ausência de empirismo” – o que temos é alguém que escolheu para si a função de trazer luz, mas que trilha o mais completo obscurantismo. Se queremos levar o basquete à frente, para além de uma simples brincadeira,  se queremos que ele diga algo sobre nós e sobre o mundo, precisamos ser melhores do que isso: encarar os rigores de uma crítica séria e metódica, que deixe de lado as histórias pessoais sobre bolhas e possa dar-lhes significado, entendê-las e até – por que não – evitá-las. Um basquete estático, preso em ações irrefletidas, feito na base do instinto e do feeling, simplesmente não significa nada. Nele, todas as bolhas são em vão.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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