🔒Como entender (os lances livres de) James Harden

James Harden é a realização de um estranho sonho estatístico. Quando Daryl Morey, General Manager do Houston Rockets, introduziu as estatísticas avançadas na equipe em 2007, seu plano era que os pontos do time viessem apenas das maneiras mais simples e eficientes: bolas de três pontos, bandejas e lances livres. Harden está longe de ser um dos melhores arremessadores de três pontos da NBA, mas nenhum outro jogador seria tão capaz de concretizar os desejos de Morey. Quando arremessa uma bola de três pontos, Harden está tentando conseguir uma falta e indiretamente criando espaço para suas infiltrações; quando infiltra, está também tentando cavar uma falta e indiretamente criando espaço para seus arremessos de três pontos. Quando seus arremessos entram, trata-se de mero bônus, uma espécie de “efeito colateral”. O que Harden está sempre fazendo é um “metajogo”, estabelecendo regras mentais para fora das regras explícitas do basquete, entrando na cabeça dos seus adversários para confundi-los, forçá-los a tomar más decisões e se aproveitar delas. Não há jogador que viva mais no erro dos seus adversários do que James Harden – e é por isso que ele tornou-se o maior especialista da NBA em fazer com que os outros errem.

Os números chegam a ser engraçados: Harden cobrou 859 lances livres até aqui na temporada, uma média incrível de praticamente 11 por partida. Russell Westsbrook não está tão atrás, tendo cobrado 840 lances livres, uma média de 10.5 por partida. Mas Westbrook faz isso sendo muito mais agressivo, infiltrando muito mais e passando muito mais tempo com a bola nas mãos do que Harden. O terceiro colocado na lista de lances livres, DeMarcus Cousins e seu jogo físico imparável no garrafão, cobrou quase 200 lances livres A MENOS do que o armador de Houston.

Sozinho, Harden sofreu 108 faltas enquanto tentava um arremesso de três pontos nessa temporada – número maior do que o total de qualquer EQUIPE INTEIRA NA NBA. Para se ter uma ideia, Harden sofre uma falta em quase 17% de suas tentativas do perímetro. Westbrook sofre falta em 4.6% dos seus arremessos de três pontos, Stephen Curry em 3.2%. Em dois jogos dessa temporada, James Harden sofreu falta em QUATRO tentativas de arremessos de três pontos. São 12 pontos potenciais transferidos para o lugar mais fácil de se converter arremessos numa quadra de basquete, a linha de lances livres, onde Harden converte 85% de suas tentativas.

Nessas situações, nossa tendência imediata é achar que o problema são os juízes. Que eles defendem Harden, que tratam ele com ~PROTEÇÃO ESPECIAL~ e que tornaram o jogador intocável. Que Harden simula faltas (o famoso flop, levado à perfeição por Manu Ginóbili), que ele vende contatos inexistentes, e que os árbitros simplesmente aceitam porque estão enamorados com sua barba. Essa explicação simplista, com ares de “teoria da conspiração”, nos rouba os prazeres de ver um dos jogadores mais TÉCNICOS a pisar numa quadra de basquete. Eu sei que ver um jogador cobrando uma média de 11 lances livres por jogo faz o tempo durar para sempre, nossos olhos sangrarem, a vontade de viver ser sugada de nossos corações, faz você ver James Hardens batendo lances livres em qualquer lugar no seu dia-a-dia como quem olha muito tempo para o sol e ainda vê as manchas de luz em todo lugar para qual olha. Mas esse processo todo é um espetáculo de técnica, inteligência e MINIMALISMO que precisa ser apreciado. Ninguém faz tanto com tão pouco – só precisamos saber para onde olhar.


O primeiro passo é prestar atenção no drible PARADO de James Harden, quando ele está frente a frente com seu marcador, batendo a bola sem se movimentar muito. A bola parece tão EXPOSTA, parece tão fácil tentar roubá-la, mas é aí que mora o perigo: a qualquer momento Harden pode explodir para a direita ou para a esquerda com uma primeira passada impecável, ou simplesmente usar o bote adversário para dar um passo para trás e arremessar. Quando ele mistura as duas coisas, aí fica muito difícil marcá-lo: tentar barrar a passada faz com que Harden tenha mais espaço para um passo para trás; se preocupar com o passo para trás faz com que Harden possa fintar e infiltrar.

Vejam no vídeo abaixo como o defensor erra no bote, deixa Harden passar e precisa colocar atrasado o corpo na frente da infiltração, cometendo a falta:

Percebam que Harden não faz isso em alta velocidade, não dá um crossover relâmpago, não tem a explosão de Russell Westbrook. Ele simplesmente muda o peso do corpo no INSTANTE certo, assim que o bote do defensor acontece, e então mesmo se dirigindo num ritmo mais lento à cesta já não é mais possível alcançá-lo.

Vamos então ver abaixo uma coleção de momentos em que os defensores tentam impedir o que vimos no vídeo acima, a infiltração, e Harden escolha o passo para trás para um arremesso de três pontos. Primeiro com Ricky Rubio, um bom defensor, que recebe duas fintas (mais o escorregão) antes do famoso passo para trás de Harden:

Agora vejam como o coitado do Dante Exum tenta impedir infiltrações na direita e na esquerda antes de tomar o passo para trás:

Por último, contra Danny Green. Vejam como nessas situações Harden puxa o contra-ataque devagar, procurando companheiros para receber a bola, com um mínimo de movimentos até resolver atacar e criar o espaço necessário:

Essa jogada contra Danny Green é emblemática para tentar entender como Harden consegue suas faltas. Vejam que o medo da infiltração, que Harden consegue com poucos dribles, sem TELEGRAFAR o movimento, faz com que pequenos balanços de corpo sejam suficientes para desequilibrar seus defensores rumo a uma tentativa de defender uma infiltração que não existe. Danny Green, um excelente defensor, rapidamente consegue se restabelecer, levantando os braços e correndo para fechar o espaço de arremesso de James Harden. Mas é aí que Harden ATRASA seu arremesso: ele não quer chutar o mais rápido possível, antes que o defensor se aproxime, como é o normal entre arremessadores na NBA. Pelo contrário, ele quer que o defensor se aproxime EM MOVIMENTO, desequilibrado, e então tenta preparar seu próprio arremesso EMBAIXO das mãos do defensor. Vejam o vídeo novamente, como Harden arremessa por baixo das mãos de Green, forçando-as para cima na tentativa de conseguir uma falta. Por Danny Green ser excelente, ele tenta parar seus próprios pés antes disso, dando apenas um micro passo que os juízes ignoram e assim evita que a falta seja marcada. Harden acerta o arremesso e está tudo bem, mas no mundo ideal Green teria além disso cometido a falta. Esse é o plano e passa pelo fato de que Harden desequilibra seus defensores e sabe atrasar o arremesso para se aproveitar da tentativa de fechar os espaços que foram criados. Ele usa mãos que não deveriam estar ali para arremessar EMBAIXO delas, explicitando para os árbitros a marcação ilegal.

Mas acontece que os defensores de Harden não estão em movimento apenas quando estão tentando evitar uma infiltração ou arremesso, eles também se movimentam para tentar se livrar de algum corta-luz. Quando Harden está envolvido numa jogada de pick-and-roll (alguém lhe faz um corta-luz para em sequência correr para o garrafão), a defesa precisa escolher deixá-lo passar, o que pode ser mortal, lutar contra o corta-luz para continuar perto de Harden, ou então tentar antecipar o corta-luz e portanto se aproximar ainda mais de Harden rapidamente. Nessas circunstâncias, temos então um marcador em movimento que constantemente estica seus braços para tentar sentir onde o adversário está e, com moderação, tentar diminuir um pouco a velocidade de movimentação do adversário. São os famosos “braços abertos” do defensor que ao tocar levemente na cintura do adversário conseguem reduzir um pouco a infiltração e que dificilmente viram falta, a não ser que esse toque seja muito explícito ou se torne um empurrão ou puxão.

O que James Harden faz, então, é se aproveitar do defensor em movimento e iniciar um arremesso EMBAIXO de seu braço esticado. É um arremesso estúpido, que Harden dificilmente tentaria em situações normais, mas que ao começar CEDO DEMAIS, antes mesmo da situação de corta-luz terminar, acaba forçando o defensor a cometer a falta. É muito engraçado como os marcadores de Harden sabem disso e acabam tentando TIRAR O BRAÇO enquanto lutam contra o corta-luz, mas sempre tarde demais: Harden sabe sempre o momento de começar a mecânica de arremesso para se aproveitar do braço ilegal. Vejam abaixo:

Essa é uma jogada que Harden faz à exaustão. Vejam como Nenê faz um corta-luz fácil de tudo, ele basicamente só precisou EXISTIR ali, porque Harden foi procurá-lo e forçou seu marcador a ter que lutar contra Nenê, que sequer está OLHANDO a jogada. Michael Carter-Williams estica então seu braço esquerdo para tentar colocar a mão na frente da bola, tentar limitar o espaço de movimentação (e de passe) enquanto ainda não acabou de cruzar o corta-luz. E então contra todo bom senso, Harden simplesmente inicia um arremesso embaixo do braço de um marcador em movimento, uma falta defensiva clara. O fato de que Carter-Williams tira o braço da jogada logo depois, de maneira exagerada como quem diz “meu braço não estava ali” só deixa explícita a sensação de desespero de que o braço não DEVERIA estar ali. É quase impossível marcar alguém que infiltra tão rápido quanto Harden sem usar os braços, mas o movimento ilegal acaba virando situações de arremesso-e-falta para o armador.

Draymond Green já comentou que James Harden obriga seus defensores a nunca usarem os braços para tentar limitar seus movimentos. Na foto que encabeça esse texto, uma postura defensiva comum acaba virando falta se Harden consegue infiltrar rápido demais, se ele se enfia embaixo do braço esticado e se ele inicia sua mecânica de arremesso embaixo desse braço. São lances livres que punem a defesa instintiva e pouco planejada.

Harden é um gênio na hora de usar as posturas defensivas equivocadas de seus defensores. Uma das minhas jogadas favoritas do armador é uma que podemos ver no vídeo abaixo acontecendo contra JJ Redick. Assim que vê que Redick é mais frágil fisicamente, Harden inicia uma jogada de costas para a cesta, empurrando o adversário rumo ao garrafão. Vejam no vídeo abaixo o esforço que Redick tem que fazer, usando seu braço esquerdo como barreira, para não deixar Harden passar. Só que DE REPENTE James Harden vira de frente para a cesta e Redick não reage a tempo, mantendo o braço esquerdo na mesma posição, por onde Harden consegue se enroscar. O armador do Rockets só precisa então iniciar um arremesso e a postura defensiva de Redick passa a ser faltosa porque ele não teve tempo mental para adotar outra posição.

Para a gente ver que existe um padrão: olha que engraçado (se você não torce pro Clippers) o Redick tentando tirar o braço pra mostrar que ele não estava ali, exatamente como Carter-Williams fez anteriormente no vídeo que analisamos.

Vejam que a mesma coisa acontece em transição. Quando está infiltrando ou simplesmente puxando um contra-ataque, toda vez que alguém estica a mão para tentar roubar a bola ou barrar seu movimento, Harden inicia o arremesso. Vale dizer que esticar a mão para barrar uma infiltração é ilegal mas difícil de arbitrar, enquanto um arremesso nessa mesma mão torna tudo mais evidente. Abaixo, podemos ver Harden roubando uma bola, puxando um contra-ataque e esperando Wes Matthews tentar roubar a bola para começar seu arremesso:

Um defensor esticando um braço em movimento está desequilibrado e basta usar isso para cavar uma falta. A diferença é que Harden não está tentando inventar um contato que não existe e nem jogando a bola pra cima, ele está sempre tentando arremessar. É a melhor maneira não apenas de mostrar que houve contato mas também de continuar a jogada – até mesmo porque alguns defensores conseguem reagir e tirar seus braços a tempo, colocando Harden numa situação bizarra de arremesso forçado sem faltas, que ele precisa tentar acertar.

A NBA instriu os árbitros a deixarem de considerar faltas quando jogadores começam suas mecânicas de arremesso perto dos adversários e não conseguem levantar a bola porque acabam batendo no TRONCO dos seus marcadores parados. A tática era famosa, embora difícil de executar, até começar a ser explorada sistematicamente por Kevin Durant. Dá pra entender melhor o movimento no vídeo abaixo:

No que chamou-se de “regra Durant”, contatos forçados pelos jogadores de ataque durante suas mecânicas de arremesso em cima do corpo dos defensores não são mais considerados falta. Muita gente acha que o que James Harden está fazendo se encaixa na mesma categoria. Espero com os vídeos anteriores ter mostrado que não é o caso: Harden usa defensores em movimento e se utiliza de seus braços, antebraços e ombros posicionados de maneira incorreta para tentar impedir o progresso do jogador. É uma aula de tática, técnica e timing, executada com pouquíssimos movimentos e um nível baixo de atleticismo e força bruta. O resultado é que sobra mais energia para Harden passar mais minutos em quadra em alto nível e até pra jogar na defesa: ele mantém defensivamente seus adversários nas mesmas médias de arremesso que outros jogadores de sua posição como Chris Paul, Damian Lillard, Ricky Rubio e George Hill, todos virtualmente empatados nesse quesito. Ainda que os vídeos de piores momentos de Harden sejam engraçados, tanto com os erros defensivos quanto com as jogadas de ataque em que ele força contatos inexistentes porque os adversários tiraram o braço a tempo, Harden está longe de ser um defensor abaixo da média (pelo contrário, ele é acima da média no perímetro, sendo abaixo da média apenas dentro do garrafão, onde não pode cometer faltas) e ainda mais longe de ser um jogador que inventa contatos inexistentes para ganhar faltas.

Com 29.3 pontos por jogo, 9.3 desses pontos vem via lances livres em média a cada partida. Isso quer dizer que quase 32% dos pontos de Harden são feitos à base de faltas, um número tão absurdamente alto que mostra a eficiência, o estudo e o talento para fazer esse plano de jogo funcionar. Quando não está cobrando lances livres, James Harden ainda mantém o mote da eficiência: mais de 48% dos seus arremessos são bolas de três pontos, 25% são bandejas ou enterradas, e apenas 5% são arremessos longos de dois pontos, aqueles que estatisticamente têm as menores chances de virar pontos. Some a isso o fato de que mais da metade dos arremessos convertidos pelo Rockets (51%) vem de passes de Harden quando ele está em quadra e podemos ver como ele é o jogador perfeito para o plano de jogo de Daryl Morey e Mike D’Antoni. Assistir James Harden é ver alguém inventar pontos onde eles parecem não existir; é tirar pontos de posses de bola mortas, com poucos movimentos, poucos dribles, pouca energia. Numa temporada que em termos narrativos foi engolida pela vontade, energia e agressividade de Russell Westbrook, Harden é o outro lado da moeda: a técnica metódica, esperta e oportunista. Mesmo que imagens de um barbudo cobrando lances livres fiquem para sempre cravadas em nossas pobres retinas.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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