🔒O mito dos cinco melhores

Durante a recente campanha da seleção brasileira de basquete nessa última Olimpíada, o técnico Rubén Magnano recebeu inúmeras críticas direcionadas especialmente à sua gestão de minutos do elenco. Jogadores que estavam se saindo bem em quadra subitamente iam para o banco, onde passavam longos minutos, e jogadores que pareciam peças fundamentais para a equipe, como Nenê, não ficaram imunes às substituições obrigatórias. Isso gerou um debate acalorado, tanto na internet quanto na televisão, sobre a real necessidade de colocar suas estrelas no banco para descansar durante as partidas. Muitos alegaram que o basquete – especialmente em sua versão FIBA – é um jogo curto, que o torneio olímpico tem poucos jogos, e que descansar os jogadores pode ser completamente desnecessário. Ao meu ver, esse posicionamento é um ENGANO cometido por consequência de alguns fatores: desconhecimento do “basquete moderno”, familiaridade exagerada com o futebol e aquilo que eu costumo chamar de “mentalidade de videogame”, que aflige a muitos. Explicarei cada um deles a seguir.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”A seleção de BASQUETE, que a gente precisa especificar porque ‘seleção’ quer sempre dizer futebol”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/08/Magnano.jpg[/image]

Primeiramente, acredito que nosso entendimento cotidiano de futebol frustra a maior parte das análises esportivas de outros esportes. Acabamos achando que tudo aquilo que se aplica ao futebol como esporte também deveria se aplicar às outras modalidades, como se o futebol fosse o modelo no qual todos os outros esportes se baseiam. No futebol os melhores jogadores estão sempre em campo e ser substituído é sempre um ponto fora da curva, um demérito, seja por lesão, cansaço excessivo ou problemas de desempenho. Como as substituições no futebol são definitivas e limitadas, os grandes nomes de uma equipe tendem a ficar em campo do começo ao fim do jogo, com o banco sendo usado para modificações táticas muito pontuais ou simplesmente troca de um jogador contundido por um saudável. Um técnico que tirasse seu melhor atacante para “fazer um ajuste” seria destruído pela torcida, porque esse atacante não poderia mais retornar ao campo e sua capacidade de decidir o jogo num lance de habilidade estaria inutilizada. Para fazer alterações táticas, os técnicos de futebol precisam alterar o posicionamento em campo, já que a extensão do gramado é muito grande e o modo como os jogadores se organizam nesse espaço faz uma diferença crucial. No basquete é tudo muito diferente: como as substituições são livres, o técnico pode tirar aqueles que seriam considerados seus melhores jogadores para assim construir uma mudança tática momentânea, mudando os tipos de arremesso que podem ser dados, a altura dos jogadores, o foco defensivo, etc. Como a quadra é estreita, há menos possibilidade de espaçar os jogadores de forma diferente, deixando para as substituições a função de alterar o andamento do jogo. Como isso ocorre nos dois times simultaneamente, um técnico sempre tem que responder às substituições do outro, tornando difícil manter um mesmo quinteto em quadra por muito tempo. Jogadores especialistas, que só conseguem desempenhar uma única função de maneira primorosa e pecam nas demais áreas do jogo, são muito mais importantes num esporte em que técnicos precisam ajustar suas formações constantemente para adequarem-se aos adversários. No futebol seria inviável colocar um cobrador de faltas em campo apenas para um lance, já que ele teria que se virar em outras áreas durante todo o resto do jogo. No basquete, se um time está precisando de arremessos de três pontos pode apelar para um reserva mesmo que para isso tenha que substituir um jogador melhor do que ele, em sentido geral; se os arremessos não funcionarem, ou se já cumpriram seu papel, o jogador melhor volta à quadra normalmente.

Essas possibilidades do basquete vão contra uma certa mentalidade simplista de jogadores infantis de videogame, que querem colocar sempre os personagens mais “poderosos” para lutar ao mesmo tempo. A pergunta “quem é melhor” ou “quem é mais forte” tende a ver os personagens como simples fichas com um número de “poder” escrito nelas. Vejo muito isso em jogadores inexperientes de “NBA 2K”. No jogo, cada membro de um dos elencos virtuais tem um número que retrata suas “habilidades gerais”, uma nota que ajuda a ranquear os jogadores, além de números separados para cada uma de suas habilidades individuais, que vão de sua capacidade defensiva até a potência nos pulos com pernas estancadas. Os fãs menos interados da parte tática do jogo simplesmente montam seus quintetos titulares com os cinco jogadores de número geral mais alto, algo como seus “cinco melhores”. O problema é que no basquete, a ideia de “cinco melhores” não passa de um mito: como todos os jogadores atacam e defendem juntos em TODAS AS POSSES DE BOLA, os números gerais não significam muita coisa. Enquanto um jogador arremessa, o nível de arremesso dos outros jogadores importa pouco ou quase nada; é mais importante que os outros jogadores lhe criem espaço, lutem pelo rebote, preparem uma defesa de transição, etc. Isso quer dizer que um jogador que não seja bom em todas as áreas mas desempenhe um papel simples com perfeição, como estabelecer um corta-luz, pode ser mais útil para o referido arremesso do que uma grande estrela de jogo incrivelmente balanceado. Não me entendam mal, jogadores completos são extremamente valiosos porque conseguem ser úteis em diferentes situações e estão mais aptos ao improviso eventualmente necessário numa partida, mas precisamos admitir que o basquete é um esporte especialmente afável com os especialistas. Um jogador de nível geral baixo pode encaixar perfeitamente no seu esquema tático de jogo em alguns momentos, mais do que a estrela consagrada; se seu esquema tático precisar mudar graças às alterações do seu adversário, basta colocar esse especialista no banco e trazer outro, a grande estrela, ou ambos.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”O banco dos Estados Unidos tem gente pra qualquer tipo de função, até errar lance livre”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/08/Bench.jpg[/image]

Outro fator que atrapalha essa compreensão é uma nostalgia do basquete clássico ou uma falta de reciclagem do conhecimento adquirido sobre basquete. Isso porque o basquete mudou de maneira radical nos últimos 30 anos, desde a GLORIOSA DÉCADA DE 80, e tem mudado cada vez mais rápido a partir dos avanços técnicos dos últimos 10 anos. Nos anos 80, a imensa maioria das estrelas jogava mais de 40 minutos por jogo; hoje, isso é algo incrivelmente raro de acontecer. Na temporada passada, o líder disparado de minutos foi James Harden, com 38 minutos por partida. O campeão LeBron James jogou apenas 35 minutos por jogo. Quando Jimmy Butler teve média de 39 minutos por partida sob comando do técnico Tom Thibodeau, o mundo da NBA criticou horrorizado os rigores que estavam sendo impostos ao corpo do jogador. A responsável por essa mudança é, basicamente, a ciência esportiva. Hoje, não queremos que o basquete seja uma coisa de “feeling“, uma sensação esquisitinha que você tem dentro da barriga que lhe diz como fazer as coisas, uma bolha no dedo que lhe diz como transformar sua experiência individual numa experiência coletiva. Queremos, sim, trazer o máximo possível de especialistas de diversas áreas para criar algum tipo de conhecimento objetivo sobre o esporte que possa iluminar áreas que nos eram desconhecidas ou que mantivemos obscuras graças a uma grossa camada de achismo e prepotência. Médicos, fisioterapeutas e nutricionistas simplesmente mostraram que a NBA estava FAZENDO ERRADO na hora de lidar com a saúde de seus atletas, e a gente precisa abaixar a cabeça humildemente e aceitar. Minutos limitados, mais controlados e espaçados facilitam a recuperação muscular, limitam as lesões e melhoram o desempenho dos jogadores. Cientistas e médicos especialistas de todas as áreas acompanham cada time da NBA, deliberando sobre a saúde física de cada atleta. Tanques de oxigênio e de criogenia são usados para restaurar o tecido muscular, diferentes substâncias são utilizadas para hidratar os jogadores de uma maneira que altera a textura dos músculos após períodos de longa atividade. Mas a parte que aparece pra nós, torcedores e analistas, é apenas a dos minutos em quadra, igualmente deliberada pela equipe de especialistas e fruto de um avanço científico que torna o basquete cada vez mais eficiente. Mas achamos que simplesmente foi uma decisão que saiu da cabeça louca do técnico, aquela figura misteriosa que adoramos xingar.

Um dos casos que acho mais emblemáticos é o de Yao Ming, uma história que, como fã, me incomoda até hoje. Yao teve sua formação na China, dentro de um modo de pensar o basquete bastante rígido e conservador. Os treinamentos eram duros e extremos, numa crença de que quanto mais duro se treina, mais duro se joga. Mas os resultados práticos foram outros: Yao desgastou-se demais em todas as suas passagens pela seleção chinesa, piorou suas lesões progressivamente e por fim teve que se aposentar de maneira precoce aos 30 anos de idade para não colocar sua saúde irremediavelmente em risco. Sem dúvidas o Houston Rockets também falhou na administração dos seus minutos, querendo usá-lo ao máximo antes que se tornasse comum limitar o tempo de jogo de qualquer estrela, mas os treinamentos na China é que colocaram o físico de Yao Ming numa situação sem volta. Tudo porque lá se fazia basquete à base de achismos, não de especialistas que entendem quanto tempo um corpo pode passar numa quadra de basquete. Yao já disse pessoalmente que a China aprendeu com o seu caso, que os treinamentos mudaram e que os especialistas agora fazem parte das comissões técnicas. Mesmo assim, por aqui muita gente acha que gestão de minutos é uma coisa de “momento”, decidida por um único indivíduo.

Além da parte médica, o avanço científico no basquete também mostrou que limitar minutos é uma questão estatística. Análises detalhadas do rendimento dos jogadores mostram que a maioria deles tem um “limite”, uma “barreira” de produção por jogo. Isso significa que alguém pode ser muito útil pro time por 20 minutos, com números impressionantes, mas se recebe 10 minutos a mais por jogo não vê suas médias crescerem na mesma proporção. Nesses 10 minutos seria melhor, então, colocar outro jogador que tenha seu “limite” em 10 minutos. É um jogo de encaixar peças para se certificar de que todos os jogadores estão dando seu máximo o tempo inteiro, o que significa maximizar sua produção dentro do tempo que o jogador é capaz de render e que seu físico será capaz de se recuperar inteiramente até a próxima partida. Em sua primeira participação nos Playoffs, LeBron James jogou 43.5 minutos por jogo. É mais minutos do que LeBron pode render em altíssimo nível; limitando esses minutos durante sua passagem no Heat para abaixo dos 36, por exemplo, LeBron pode ficar abaixo de sua “barreira” e aumentar sua produção jogo-a-jogo graças ao menor desgaste; não à toa, foi líder em eficiência na NBA por anos consecutivos.

Esse controle das “barreiras” de produção e gestão dos corpos permitiu que a parte tática também fosse alterada. Com estrelas jogando menos minutos, há mais espaço para os especialistas e para os ajustes táticos durante os jogos, e com todos os jogadores ganhando mais descanso é possível desenhar estratégias defensivas diferentes, que exigem pressão ou troca de marcação constantes, cobertura de um lado para o outro da quadra, e ataques que se aproveitam da velocidade como o esquema de “7 segundos ou menos” de Mike D’Antoni que exige um comprometimento físico sem igual dos jogadores envolvidos. Por consequência, o basquete que se jogava nos anos 80, quando os titulares passavam muito mais tempo em quadra, é taticamente muito diferente do basquete atual: as defesas hoje são mais agressivas, os ataques mais velozes e os especialistas muito mais importantes para o plano de jogo de uma equipe.

Minha intenção aqui não é defender o indefensável – quão mal Magnano substitui seus jogadores, sua dificuldade de impor uma identidade ao time durante as substituições, etc – mas apenas apontar que o avanço científico e a própria natureza do basquete como um esporte coletivo de substituições livres faz com que nosso entendimento dos minutos que um jogador deveria estar jogando não seja tão claro ou óbvio quanto estamos acostumados em outros esportes ou situações. A tendência é de que estrelas joguem cada vez menos minutos e os reservas tenham cada vez mais impacto nos resultados, e que em troca vejamos atletas cada vez mais eficientes, cada vez menos lesões e um esporte cada vez mais complexo, com novas possibilidades, em que deixar os “cinco melhores” em quadra o tempo inteiro não passe de um mito antigo, a muito esquecido, de uma época ingênua em que os tênis de basquete ainda rendiam bolhas nos pés.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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