A vitória da intensidade

Depois de Kobe Bryant fazer sua turnê megalomaníaca de despedida e Tim Duncan ser mais discreto ao anunciar que não iria mais jogar, outro pilar do basquete nas últimas décadas decidiu parar de jogar. Contrariado, Kevin Garnett irá deixar as quadras. Ele deixou para contar pra todo mundo tão perto do início da nova temporada porque estava brigando com o próprio corpo, lutando com seus joelhos e o histórico recente de lesões para tentar uma despedida dentro de quatro linhas. Não deu. Ao invés de ficar indo e voltando da lista dos lesionados do agora promissor Minnesota Timberwolves, resolveu deixar o palco todo para Andrew Wiggins e Karl-Anthony Towns.

Como aconteceu com as outras estrelas antes dele, os jogadores da atual NBA postaram homenagens ao ‘Big Ticket’, dando parabéns, agradecendo pela contribuição ao basquete ou só se dizendo honrados por dividirem a quadra com um cara do seu quilate. De todas as mensagens, entre as legais e as cafonas, foi Chris Paul quem conseguiu captar a essência da EXPERIÊNCIA que Garnett causava a sua volta:

“As três primeiras vezes que nos enfrentamos, ambos tomamos faltas técnicas. Eu nunca foi esquecer o que você me disse antes do começo do começo de um jogo em Oklahoma City no meu ano de novato (eu te olhava com reverência, mas você logo mudou isso). Nunca odiei tanto jogar contra alguém, mas nunca quis tanto ter alguém no meu time como você. Uma pena que nunca tivemos essa chance”

Nós nunca vamos saber o que Garnett disse para o jovem Chris Paul em seus tempos de Hornets, mas certamente foi algo baixo e ofensivo. Provavelmente nada pessoal, mas KG se recusava a ver qualquer pessoa em outro uniforme como algo que pudesse ser parecido com um amigo. Quando Dwight Howard era também um novato, ele passou pela mesma experiência: os olhinhos brilharam ao ver o ídolo, ele tentou se aproximar e… $#&@%!!!! Casos isolados? Veja o que Joakim Noah certa vez disse sobre o cara com quem se engalfinhou tantas vezes nos duelos entre Chicago Bulls e Boston Celtics:

“Eu não gosto dele, ele é um cara cruel. Eu tinha um pôster dele no meu quarto, usava a camisa dele quando era jovem, era um admirador, mas ele me dispensou. Eu falo bobagens na quadra também, mas é preciso ter mais sensibilidade”.

Também podemos lembrar de quando Carmelo Anthony ficou tão ofendido com o que Kevin Garnett disse pra ele num jogo (dizem que foi sobre sua mulher), que foi atrás dele até o ônibus do time! Ou do caso mais extremo, mais comentado (e jamais confirmado) de que Garnett quebrou todos os recordes de falta de noção e respeito ao mandar um “feliz dia das mães” para Tim Duncan, que havia perdido a mãe havia pouco tempo, numa batalha entre os dois ainda no começo deste século. Ah, e teve o pescotapa também:

Para Garnett, as funções são claras na selva do basquete profissional: ele estava lá para dar a vida para o seu bando, todos os outros eram inimigos e não mereciam compaixão. Os que viam isso como uma forma pirada de expressão de amor ao seu time e ao jogo, o admiram; as vítimas das muitas vezes que ele cruzava as linhas éticas eram mais reticentes à sua pessoa. Não que insultos sejam justificáveis, e não sou ninguém para pedir desculpas pelos exageros dos outros, mas é interessante tentar entender a razão para KG ser um dos jogadores mais passionais de todos os tempos.

A resposta está nas palavras do próprio Garnett, que responde isso ao ser perguntado sobre sua intensidade:

“Um jogo da NBA é como um mundo de fantasia onde eu posso me expressar com um nível de intensidade que não é normalmente aceito na realidade”

Não dava pra ser mais preciso e sucinto. Como o Danilo já falou outras vezes aqui no blog, o basquete (ou o esporte em geral) é um conjunto de regras que criamos para nós mesmos, um mundo próprio com seu próprio código de conduta. É a pausa da realidade, um parênteses temporal onde a bola passa a ser o centro do mundo e chutá-la, vai entender, é proibido. E o esporte cresceu de um jeito onde ele passou a ser aceito e entendido pelo resto da sociedade também, não só por seus praticantes, que passou a entrar nesse parênteses no papel do torcedor, fingindo por duas horas que nada é mais importante no planeta do que ver o seu time vencer. Esse cenário fantástico deu a desculpa que muitas pessoas queriam para se expressar: Magic Johnson usou as regras do basquete e seu mundo de fantasia para desfilar o seu sorriso e sua criatividade infinita, Michael Jordan canalizou o seu desejo maníaco por vencer tudo e todos, e Kevin Garnett colocou nas quadras de basquete a intensidade monstruosa que certamente não seria aceita em boa parte das funções que ele poderia exercer neste planeta. Onde mais ele poderia brincar de eleger inimigos só pela cor do uniforme e não ser violento? Onde ele poderia gritar consigo mesmo por horas para se motivar e não ser tachado de pirado? Em que ambiente, senão numa quadra de basquete, ele poderia inventar laços com seus companheiros de uniforme colorido e formar uma família e um senso de unidade para a vida toda?

Os exemplos negativos chamam mais a atenção, mas a demonstração de intensidade de Kevin Garnett que mais mexeu comigo aconteceu na primeira vez que ele enfrentou o time que o formou, o Minnesota Timberwolves, com a camisa do Boston Celtics. KG chegou ainda adolescente em Minneapolis, jurou amor ao time e negou ter vontade de sair até o último momento, citando uma lealdade que, na prática, só ele cobrava dele mesmo. Apenas quando a própria franquia o convenceu de que eles mesmos sairiam ganhando com uma troca que ele topou ser negociado. E quando eu esperava homenagens, abraços, saudade e carinho, KG mostrou que toda sua lealdade tinha novo dono.

O Celtics ganhou o jogo no último segundo, com Garnett mergulhando no chão, roubando a bola decisiva da mão do seu adversário e celebrando mostrando seu novo uniforme a uma torcida que pulava no TD Garden de Boston: Eu estou aqui, eu sou de vocês. Ele é o namorado dos sonhos que não mostra nem por um segundo ter saudade da ex.

O termo da moda é “legado”, então quando alguém da magnitude de Kevin Garnett se aposenta, muitos querem saber o que ele mudou no jogo durante o seu tempo e o que será carregado para sempre. Consigo pensar em ao menos duas coisas que Garnett ajudou muito a moldar. A primeira foi consolidar uma era onde os alas de força, os jogadores da posição 4, dominaram a NBA. A década de 90, dominada por pivôs, pulou uma casa de posições para baixo porque caras do KG apareceram no mundo: alguém gigante como um pivô, mas que até mente a altura para não ficar restrito ao pedacinho da quadra separado aos grandalhões. KG queria driblar, correr, arremessar e, vejam só, ele conseguia fazer tudo isso! Em menor nível, Rasheed Wallace, Chris Webber e Tim Duncan o acompanharam, mas nenhum com a versatilidade de Garnett, que nos seus tempos de Wolves realizava qualquer função pedida a ele. Neste século, em termos de versatilidade, provavelmente apenas LeBron James se compara.

Já no Boston Celtics, na segunda fase de sua carreira, Garnett usou sua versatilidade para ser o exemplo do defensor moderno. No sistema pensado por Tom Thibodeau e Doc Rivers, KG se tornou a peça fundamental que fazia o time ser um monstro de agressividade. A resposta para uma liga que cada vez mais usava o pick-and-roll era ter um jogador de garrafão que pudesse ler o ataque adversário, gritar as ordens de dentro do garrafão, comandar o lado da defesa que cada armador ou ala iria defender, e aparecer do outro lado para fazer essa cobertura. Poucos caras com mais de 2,10m são capazes de fazer o “hedge” como fazia KG.

Quer observar o “hedge” em ação? Veja como nesse lance Kevin Garnett estende seu movimento para além do corta-luz, fechando a linha de infiltração de Luol Deng. Este é o “hedge”. Mas ele é tão bom que logo em seguida, ao ver que o adversário desistiu do drible, dá um passo para trás para marcar Carlos Boozer e ainda intercepta o passe:

Se Deng tivesse insistido no drible, Garnett teria mergulhado ainda mais na sua defesa, sufocando o lance e empacando o ataque.

Outra grande jogada defensiva daquele Celtics era o uso de uma técnica chamada “ICE” na hora de marca o mesmo pick-and-roll. Nela, o jogador que defende quem está com a bola força seu adversário a não usar o corta-luz do seu companheiro e, assim, enfrentar um outro marcador, geralmente um jogador de garrafão que marcava o cara que fez o bloqueio. O Celtics fazia isso porque Garnett era capaz de segurar qualquer infiltração, era uma proteção de aro sem precisar de mais um defensor vindo correndo do outro lado da quadra.

Repararam como Paul Pierce impede com que Raymond Felton use o bloqueio de Tyson Chandler? Ele é obrigado a ir para o outro lado e enfrentar KG no mano-a-mano. Ter um baixinho contra um cara alto pode ser uma boa ideia às vezes, mas não quando esse cara gigante é versátil como Garnett.

Essas maneiras de defender pick-and-rolls não são totalmente novas, mas se espalharam pela NBA como fogo depois do sucesso desse Celtics e desde então todo grande defensor tenta ser o que Garnett foi naquele período, alguém capaz de marcar ajudar os baixinhos a marcar lá fora e que, quando preciso, retorna e fecha o garrafão com tocos e rebotes de defesa.

Isso pode ser o que Kevin Garnett deixa nas pranchetas e para seus companheiros de jogo, em Draymond Green, Anthony Davis e outros alas do futuro que veem a versatilidade como a maior qualidade possível de um ala, mas no imaginário das pessoas, na memória afetiva do basquete, o que KG deixa é a intensidade que o fez ser herói e vilão. Quando ouço o seu nome eu não penso nas estatísticas que dizem que ele foi o jogador mais eficiente da sua geração, nem nas questões táticas que abordamos e, pra dizer a verdade, nem das suas espetaculares jogadas. O que me vem a mente quando falam de Garnett é ele falando sem parar no meio de uma jogada enquanto batia com as mãos no chão, às vezes chamando o adversário para o duelo, às vezes apenas repetindo para si mesmo que ele era o melhor e que iria ganhar. Ele é o cara do grito.

Quando um cara que já conquistou seu espaço, sua fama e dinheiro continua a dedicar tanta paixão ao jogo, nós nos sentimos menos culpados aqui fora também. Quando um maluco como ele entra de cabeça no mundo de fantasia da NBA, nos sentimos no direito de fazer o mesmo. Podemos ser os fãs mais bitolados, malucos e dedicados, podemos gastar tempo, dinheiro, saliva e nossos sonhos pensando em basquete. Não tem problema, ninguém vai te julgar: tem gente que é ainda mais louca. Os absurdos que KG fez e falou em quadra são, para nós, libertadores.

Torcedor do Lakers e defensor de 87,4% das estatísticas.

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