Em um clássico episódio da série Seinfeld, o personagem George Costanza conhece um jogador de beisebol famoso, o grande Keith Hernandez. Numa tentativa nervosa de puxar qualquer forma de papo e chamar sua atenção, ele pergunta se o atleta nunca temeu que o avião de um time caísse. Afinal, com tantas equipes e tantas viagens numa liga com quase 30 times e 162 jogos cada, era uma questão de probabilidade. É claro que o jogador não vê a menor graça no questionamento e, pelo contrário, fica bem ofendido. A ofensa não era só pela hilária falta de delicadeza, mas por uma perturbadora razão REAL escondida atrás da pergunta nervosa: sim, é bem possível que aconteça um dia. Mostrar o quanto esse é um medo justificável e explicitar isso de maneira tão banal é colocar o maior dos tabus, a morte, bem em cima da mesa de jantar da família. Não queríamos falar disso.
E não é só medo, é história. Existem casos onde isso já aconteceu, desde o famoso acidente aéreo da Torino tetra campeã italiana até o caso de hoje, da Chapecoense, que inspira esse texto no dia mais cinza do ano para quem é ou já foi apaixonado por qualquer time de futebol.
Na NBA e em todos os esportes americanos a possibilidade já foi pensada e, acredite, cada liga tem a sua própria versão do “Disaster Draft“, uma medida de emergência a ser tomada caso boa parte de um time morra ou fique incapacitada de jogar. Na NBA, se 5 ou mais jogadores ficarem incapacitados de atuar, um time é liberado a participar desse draft do desastre. Cada equipe da liga protege 5 jogadores de seu elenco e o time que está passando pelo processo pode pescar os que sobraram para montar o seu novo elenco, pegando no máximo um de cada rival. A segurança dos jatinhos privados e um punhado sempre necessário de sorte impediu a regra de ter sido usada até hoje. Só o fato dela existir já é perturbador o bastante.
Toda morte é triste para qualquer pessoa com um mínimo de empatia, mas grandes desastres são naturalmente capazes de amplificar o sentimento. O total de atingidos é maior, a violência da perda repentina no meio de uma atividade cotidiana é algo que qualquer um não consegue evitar de se relacionar. Ontem à noite eu estava comprando passagens aéreas para minhas férias, hoje minha irmã pegou um voo na América do Sul. A primeira-dama do blog estava na periferia de um grande terremoto há algumas semanas. Faz parte da nossa vida. É o acaso dando uma de George Constanza e interrompendo um momento agradável para dizer “já parou pra pensar como pode dar tudo errado de repente?”.
É um assunto recorrente aqui no Bola Presa o fato de que o esporte é, na sua essência, algo banal. AINDA BEM! A coisa mais legal do esporte é ver jogador dando a vida por uma bola e, de repente, após um apito, ver tudo acabar em nada. Se aquele gol ou cesta realmente tivesse consequência para fora do jogo, seria guerra, não esporte, e aí não é legal. O esporte cativa porque é um ambiente controlado, inofensivo, onde podemos investir nosso amor, raiva, brincadeiras, tempo, dinheiro e, acima de tudo, nossas narrativas. É onde montamos nossas histórias em volta de eventos incontroláveis: não há autor, há apenas nós e nossas emoções tentando dar sentido a uma sequência de jogos e todas as suas incontáveis variáveis.
Por ser só um jogo é que o esporte é capaz de ir além do jogo. Sua tela em branco de significados nos permite ir lá pintar o que a gente quiser. O Corinthians é o herói porque meu pai disse, o Palmeiras é o vilão porque sim. Toda semana nos reunimos de preto e branco e cantamos até ficarmos roucos, ficamos putos quando os verdinhos ganham um troféu e vamos embora pra casa reclamando do juiz. Parece pouco, mas talvez não exista nada mais humano que isso. Extrair uma história e um significado DO NADA e criar complexas interações sociais, com códigos entendidos por diversos grupos do mundo todo. Tudo baseado apenas em um jogo banal com uma bola. Sem dúvida isso é uma das maiores criações coletivas de toda a humanidade.
O que não pode acontecer é aparecer alguém para olhar para a câmera no meio da cena e dizer que é só um filme. Tem algo mais irritante do que aquele amigo que não gosta de futebol mandando um “mas é só um jogo” quando você está roendo as unhas aos 43 do segundo tempo? Ele está lá dedurando tudo e tentando amassar o sentido que demoramos séculos para construir em volta do esporte. É a mesma coisa quando aparece um atleta desinteressado, daqueles que não fica triste com a derrota ou pouco comemora um ponto decisivo. Ao mandar um “é só um jogo” ou “é só o meu trabalho” ele está nos tirando o grande prazer de construir a narrativa em torno do esporte.
O que aconteceu nesta terça-feira, o acidente com o avião da Chapecoense, foi algo assim. Mas não foi um jogador mimado ou amigo sem noção quem disse, foi o destino, deus ou o azar, chame como quiser. Um acidente para nos lembrar que o herói do garotinho aí da foto era só um cara indo pro trabalho, um choque para nos fazer torcer para que jogos e finais sejam adiadas ou anuladas porque um balde de água fria nos avisou que futebol não é tão importante. Diante de tragédias assim a nossa reação é sempre questionar o SENTIDO de tudo: quem não questionou a lógica ou justiça das coisas hoje? É a morte interrompendo narrativas ainda incompletas e, nesse caso cruel, tão próximas do seu clímax.
Mas uma hora o luto vai acabar. Passaremos por jogos adiados, gols não comemorados, minutos de silêncio e finais não concluídas, mas aí teremos que responder. E o único jeito de não ser engolido pela aleatoriedade feroz da natureza é fazer o que nós humanos fazemos melhor: dar sentido às coisas, criar a história. O Draft do Desastre é uma burocracia feita para a roda não parar de girar: a mesma família de jogadores se reorganiza dentro do mesmo mundo. Dá pra dizer que a ideia dos clubes brasileiros de ceder empréstimos gratuitos à Chapecoense bebe na mesma fonte, são os próprios personagens alimentando a sua história. É o autor contornando a perda de um ator no meio da novela. O show não vai parar.
A torcida, que faz velório olhando para um gramado vazio, irá criar novos ídolos para preenchê-lo, novos cantos para exaltá-los e a união nascida de um luto real pode formar uma torcida apaixonada também no salvador mundo de faz-de-conta que criamos em torno do esporte. Só o jogo pode nos salvar da nossa tristeza.