A Copa do Mundo acabou neste último domingo com o segundo título da Espanha, que já havia vencido em 2006. Na final eles bateram a Argentina, que vinha de vitórias espetaculares contra as favoritas Sérvia e França, esta a responsável pela eliminação dos Estados Unidos em um distante duelo de quartas-de-final. Os americanos tiveram que amargar duas derrotas e a sétima posição, pior campanha de toda sua história no torneio.
O MVP da Copa foi o espanhol Ricky Rubio, que formou o quinteto ideal ao lado do francês Evan Fournier, do sérvio Bogdan Bogdanovic, do argentino Luís Scola e do também espanhol Marc Gasol. Nenhum prêmio para jogadores americanos? Nada de novo, apenas um repeteco da premiação da última temporada da própria NBA. Como não cansaram de apontar Twitter afora, a última temporada teve campeão canadense, o Toronto Raptors, e todos os prêmios individuais foram para não-americanos: MVP para o grego Giannis Antetokounmpo, Most Improved Player para o camaronês Pascal Siakam, Jogador de Defesa para o francês Rudy Gobert e Novato do Ano para o esloveno Luka Doncic.
Estaríamos finalmente vivendo o momento em que o resto do mundo alcança os Estados Unidos no basquete? Ou este 2019 foi um ponto fora da curva?
No começo deste século vivemos uma situação parecida. Os EUA quase perderam na semi da Olimpíada de 2000, depois foram massacrados no Mundial de 2002 e ficaram só com o bronze em Atenas-2004 e depois no Mundial de 2006, data da última derrota oficial americana até o torneio deste mês. O momento coincidiu com uma era de ouro do basquete internacional: a Alemanha tinha Dirk Nowitzki, a Espanha revelava a geração de Pau Gasol, a Sérvia tinha Peja Stojakovic, Dejan Bodiroga e o já veterano Vlade Divac, a Rússia trazia Andrei Kirilenko, a China apresentava ao mundo Yao Ming, a França era comandada por Tony Parker, o Canadá por Steve Nash e até a Turquia surgia no cenário com Hedo Turkoglu e Mehmet Okur. Na América do Sul víamos duas gerações especiais nascendo fortes, a Argentina com Manu Ginóbili, Luís Scola e companhia e o Brasil com Nenê, Anderson Varejão, Leandrinho e Tiago Splitter. Mais ao norte, Porto Rico de Carlos Arroyo era um pesadelo de se enfrentar. Na metade daquela década vimos o australiano Andrew Bogut e o italiano Andrea Bargnani escolhidos na primeira posição do Draft em anos consecutivos. Nem todos esses países tiveram grandes resultados internacionais, mas era impressionante ver que todo canto do mundo tinha não só ao menos um bom jogador, mas muitos tinham alguém capaz de ser mais que um mero coadjuvante na NBA.
Se especulava na época que era questão de tempo até que a NBA virasse uma versão basquetebolística dos grandes campeonatos de futebol europeu, com times formados por um integrante de cada país diferente. Se imaginava que o All-Star Game poderia se tornar um desafio Estados Unidos contra o Mundo.
A especulação fazia sentido na hora, mas o mundo deu uma engasgada nos anos seguintes e muitas promessas internacionais não vingaram como o imaginado: desde o fracasso completo de Bargnani até o esperava-mais de Jonas Valanciunas parecia que por mais que os gringos continuassem crescendo em quantidade, ninguém conseguia repetir o protagonismo de caras como Nowitzki e Gasol. O All-Star Game voltou a ter apenas atletas americanos, a seleção dos EUA voltou a atropelar tudo e todos e até os países que passaram a mais revelar novos jogadores, Canadá e Austrália, o faziam cedendo jogadores adolescentes para jogar nas escolas e depois faculdades dos Estados Unidos.
As tabelas abaixo mostram o número de estrangeiros nos All-Star Game e nos All-NBA Teams de 2000 a 2019. Até é possível ver o crescimento, queda e recuperação dos gringos nos últimos anos. O que os números não mostram, porém, é como alguns veteranos longevos salvaram a fase da queda de ser ainda pior. Ambas as listas contaram com maior variedade de nomes até 2008, mais ou menos, mas depois precisaram de Pau Gasol, Tony Parker e Dirk Nowitzki segurando as rédeas como vovôs de alto nível até o final de suas carreiras.
Como visto, as coisas começaram a mudar há alguns anos: com uma quantidade impressionante de novatos de outros países surgindo a cada Draft dos anos 2010, a NBA até decidiu fazer com que o Desafio dos Novatos do All-Star Weekend fosse um duelo entre jogadores de primeiro e segundo ano dos EUA contra atletas jovens de outros países. De repente a enxurrada de Kristaps Porzingis, Giannis Antetokounmpo, Joel Embiid, Nikola Jokic, Jamal Murray, Lauri Markkanen, Ben Simmons, Rudy Gobert e agora Luka Doncic chegaram para realmente causar impacto na liga e não apenas complementar elencos.
O que aconteceu nesta Copa do Mundo pode ser lido então como QUASE um repeteco do começo dos anos 2000: uma geração incrível surgindo em diversos cantos do mundo ao mesmo tempo em que os EUA voltam a ter dificuldade de convencer seus melhores jogadores a se interessarem pelas competições internacionais. O QUASE da afirmação acima aparece porque há algumas diferenças, em especial com os americanos realmente treinando e levando a sério os jogos dessa vez. Não vimos um elenco estelar, mas era provavelmente o melhor de todos os países e eles passaram 40 dias treinando sob o comando de ninguém menos que Gregg Popovich e Steve Kerr. Não dá pra falar em salto alto como em 2002, por exemplo.
Outra coisa que mudou mudou foi a rodagem coletiva de várias dessas seleções. Times como França, Argentina e Espanha eram até certo ponto novidade no cenário dos favoritos há 20 anos e hoje já são seleções que tem estilo de jogo próprio, grupo que joga junto há muitos anos e que muda de pouco a pouco a cada ciclo, uma vantagem coletiva que no passado era coisa só de times do leste europeu.
É possível dizer, portanto, que o resto do mundo está sim cortando a vantagem colossal que os americanos tinham no basquete masculino. O que não podemos é cravar que esse corte continuará em progressão estável e gradual ao longo dos anos. Super estrelas do esporte são sempre raras e mesmo países com ecossistemas competentes e já estabelecidos podem ter dificuldade em revelar um talento que domine o basquete. O hiato pode voltar a acontecer até que se prove o contrário.
Só que cortar a diferença não quer dizer chegar perto dos Estados Unidos. É sempre legal ver o gigante cair e alguns torcedores ou comentaristas arrogantes quebrarem a cara, mas a produção de talento dos americanos no basquete é algo sem precedentes em qualquer esporte e não enxergo ninguém fazendo frente a isso. Estamos falando de um país continental onde em todo estado, cidade e bairro existem escolas e mais escolas com um número infindável de crianças praticando o basquete, competindo contra os melhores de sua idade e sendo treinados pra valer desde muito cedo. O que países ralam para fazer em “centros de excelência”, os EUA tem em cada universidade da Division I da NCAA.
O sistema não é perfeito, como mostramos bem no documentário Hoop Dreams analisado para assinantes no último mês. Existe muita pressão e competição desde muito cedo e pouca preocupação em salvar ou ajudar jovens em situação de risco que vão ficando para trás, mas é tanto talento e tantos jogadores em quantidade bruta que os sobreviventes já dão conta de manter a NBA com uma nova leva de talentos impressionantes a cada ano. Quem vai ser o grande armador americano dos próximos anos? Quem tem 23 anos ou menos e que vai tomar conta da posição? DeAaron Fox? Se ele der errado eles têm Trae Young, Dejounte Murray ou D’Angelo Russell. E se quiser ser otimista com os que tiveram começos trepidantes ainda podemos lembrar de Dennis Smith Jr, Lonzo Ball e até de Markelle Fultz. Os EUA são o país que podem se dar ao luxo de ver um cara do nível de Fultz ESQUECER COMO JOGA BASQUETE e ainda listar uma dúzia de outras promessas da mesma idade e outra dúzia de garotos de 16 ou 17 anos que tem tudo para serem ainda melhores quando chegarem à NBA.
Boa parte do mundo tentar crescer organizando melhor seus campeonatos, ajudando clubes a terem estabilidade, capacitando técnicos e torcendo para que o esporte fique popular e atinja mais jovens. Dá pra fazer bem, mas é preciso fazer bem por muitas DÉCADAS para que essa máquina possa seguir funcionando sozinha. E mesmo assim se ficaria outras décadas atrás dos EUA.
O bom dessa história é que o resto do mundo não precisa alcançar os Estados Unidos na produção infinita de jogadores. O basquete precisa de mais países organizados e competitivos, não de um novo primeiro lugar. O futebol global, por exemplo, é melhor com a Inglaterra, a Espanha e a Bélgica produzindo craques que não revelavam antes. E eles não precisaram superar o Brasil e a Argentina nesse aspecto do esporte para serem considerados casos de sucesso.
Outro ponto relevante é que competições de seleção não são necessariamente reflexo dessa produção incessante de jogadores. Claro que os EUA têm mais quantidade para escolher, pode lidar melhor com dispensas e lesões, mas ainda assim são só 12 atletas que vão jogar e experiência, entrosamento e um par de jogadores de altíssimo nível podem superar qualquer time, especialmente em jogo único de mata-mata.
O crescimento do resto do mundo pode nos trazer torneios internacionais mais emocionantes mesmo que no geral ninguém realmente bata de frente com os Estados Unidos quando o assunto é talento no basquete. E não tem jeito, é só a melhora do resto do mundo que vai fazer brilhar os olhinhos dos grandes jogadores da NBA para esse tipo de competição que engole suas valiosas férias. As estrelas querem mais do que a pressão de ganhar o ouro ou voltar para casa com a sensação de fracasso, eles querem um desafio real que faça valer o cansaço. É dever e ambição do mundo oferecer esse real desafio e o momento é de alta.