O Draft de 2013 da NBA começou da mesma maneira que todos os outros, com vaias. Além da tradição de vaiar as escolhas da franquia mais popular da cidade, a torcida de Nova York tinha o hábito de desaprovar também o comissário David Stern sempre que ele pisava no palco para anunciar mais um jogador recrutado. A diferença daquele dia em relação a todos os outros estava nos aplausos e sorrisos que acompanhavam as vaias, um indicativo de que, ao menos dessa vez, as críticas tinham um quê de brincadeira. Aquele era o último Draft que Stern apresentava em seu papel de comandante da NBA, ele sairia do cargo em 1º de Fevereiro de 2014, dia exato em que completaria 30 anos no cargo. Depois de tanta gritaria, Stern mostrou seu característico humor ácido, sua personalidade forte e centralizadora e pediu ainda mais vaias, só para depois usar uma frase que para muitos resume seu legado no cargo: “Temos que explicar para o nosso público internacional que a vaia é um sinal americano de respeito”.
Tudo o que foi falado sobre David Stern depois de sua morte aos 77 anos em 1º de Janeiro de 2020, após sofrer uma hemorragia cerebral algumas semanas antes em um restaurante de Nova York, foi dito também quando deixou o cargo naquela época. Ele foi um dos mais importantes líderes do cenário esportivo americano na história e um dos maiores responsáveis pela NBA ser como é hoje dentro e fora das quadras. E como sua frase mostrou, de todas as mudanças, nenhuma foi tão grande quanto transformar a liga em um evento internacional. Se hoje estamos aqui falando de NBA em português para pessoas do Brasil, de Portugal, Angola e Moçambique, é porque há mais de 30 anos David Stern percebeu que o basquete era um esporte global mas a NBA ainda não.
Para entender o sucesso de David Stern em transformar a NBA num grande negócio global é preciso ver como seu caminho dentro da liga antes se tornar comissário. Ele começou como advogado, sua área de formação, ajudando a NBA no caso contra Oscar Robertson, um dos grandes ídolos da história do basquete que nos anos 1970 lutava contra a liga onde brilhou por mais direitos para os jogadores, em especial pelo poder de poder deixar um time ao fim do contrato e ir para onde quiser. O processo buscava impedir a fusão da NBA com a ABA, liga paralela de basquete que brigava por atenção, espaço na imprensa, dinheiro e, claro, jogadores. Segundo Robertson, uma liga única tiraria dos jogadores a chance deles escolherem onde podem trabalhar, já que na NBA cada atleta estava preso para sempre a um time e só podia sair em caso de troca ou liberação. A união das ligas, que deveria acontecer em 1970, só aconteceu seis anos depois quando um acordo entre as partes foi firmado e a Free Agency como conhecemos hoje foi criada, dando aos atletas controle do seu próprio destino ao fim de um vínculo.
Anos depois, em 1980, David Stern assumiu a direção da área de marketing, relações públicas e televisão da NBA. Na época o basquete recebia pouca atenção da imprensa americana, era inexistente fora do país e até partidas importantes dos Playoffs e da Final da liga não passavam ao vivo na TV, sendo relegadas a vídeos gravados exibidos tarde da noite. Era preciso atrair o público de volta, chamar a atenção da imprensa e, claro, apresentar um bom produto quando todos estivessem olhando. E é aí que o talento e a visão de Stern encontram um golpe de sorte: enquanto ele bolava seu plano, as duas franquias mais vencedoras da história da NBA tinham em seus elencos Magic Johnson e Larry Bird. Some isso aos últimos bons anos de carreira de Julius Erving e o mágico Draft de 1984, ano em que David Stern assumiu como comissário da NBA, com a chegada de Hakeem Olajuwon, Charles Barkley, John Stockton e Michael Jordan. Uma era de ouro de grandes atletas e grandes times só esperando o mundo assistir.
O que David Stern aprendeu no caso de Oscar Robertson e ao tentar vender a liga para o público foi algo que outros esportes foram começar a sacar só uma década depois: as pessoas buscam os ídolos e os jogadores são as estrelas máximas do espetáculo. Com ele no comando, a NBA passou a vender o esporte sob a ótica dos jogadores. O apelo não era para ver somente a final do basquete, os dois melhores times daquele ano, mas para ver Magic Johnson e Larry Bird. A liga criou uma área exclusiva para fechar parcerias, vendendo a parceiros como Nike e McDonald’s a ideia de usar as estrelas da NBA como garotos-propaganda de seus produtos. Em 1982 foi criada a NBA Entertainment, braço de produção de conteúdo da liga que passou a criar vídeos de melhores momentos para serem distribuídos mundo afora com as jogadas de efeito que uma geração espetacular de jogadores faziam todo dia.
É famosa uma história que diz que Stern chamou o jornalista argentino Adrian Paenza para vender para seu Canal 9 um programa de melhores momentos da NBA por míseros 2 mil dólares por ano. A emissora topou o investimento baixo e passou a exibir o programa todo domingo à meia-noite. Anos depois, Manu Ginóbili contou que assistia aquilo toda semana e que no dia seguinte corria para a quadra para tentar imitar os ídolos. Não é pouca coisa. No Brasil não foi tão diferente, com a Band adquirindo os direitos de transmissão no fim da década de 1980 como parte do seu projeto de “Canal do Esporte”. Há a visão de Luciano do Valle de trazer o melhor do esporte mundial para a TV aberta brasileira, mas o produto só estava pronto para a venda porque anos antes Stern e a NBA se preocuparam em alcançar o resto do planeta:
Até mercados que não transbordam dinheiro foram alvo da NBA. A liga passou a montar camps em diversos países da África para difundir o esporte no continente e revelar jogadores . Dois dos maiores ídolos do basquete hoje, Joel Embiid e Pascal Siakam, nasceram em Camarões e foram revelados em camps organizados pela NBA. De lá eles saíram para universidades americanas e depois se tornaram profissionais. A NBA também levou seu programa humanitário, o Basketball Without Borders, para a Iugoslávia após a guerra que iria eventualmente desmanchar o país em 2001.
A expansão também alcançou a China, para onde a NBA enviava milhares de FITAS VHS com lances para serem exibidos nas emissoras locais. A parceria, costurada com muita paciência por Stern, não foi imediata, mas logo os jogos ganharam o público local e os braços da NBA cresceram no país junto com seus bilhões de pessoas e dólares. O passo mais importante foi negociar a ida de Yao Ming, maior ídolo do país, para a NBA em 2002. O processo foi difícil, já que o governo chinês temia que Yao seguisse o caminho de Wang Zhizhi e eventualmente se recusasse a jogar pela seleção nacional de novo, além da exigência do governo receber parte do salário do jogador e do discurso que ele só seria liberado se fosse selecionado na primeira posição do Draft. Até a crise recente com a China, fruto dos comentários pró-Hong Kong de Daryl Morey, General Manager do Houston Rockets, foi de certa forma prevista por Stern. Em 2006 ele disse que fazia tudo isso porque seu trabalho era dar dinheiro para a NBA, mas que os conflitos éticos de lidar com lugares com valores tão diferentes eventualmente aparecer.
A internacionalização da NBA finalmente deslanchou nos anos 1990 e foi da maneira planejada e sonhada por Stern: o Dream Team vendia a NBA como o melhor basquete do mundo e o fazia nas costas da imagem dos jogadores, que eram tratados como as celebridades máximas dos Jogos Olímpicos de 1992. Pouco depois Michael Jordan se tornou sinônimo de como um ídolo poderia se tornar maior que seu time, seu esporte e virar um marca própria. O que eventualmente Nike e Adidas tentariam repetir em outros esportes anos depois, a NBA já fazia sob o comando de Stern desde os anos 1980. E enquanto isso a NBA Entertainment crescia com seus programas de TV, documentários e sendo pioneira também nos jogos de videogame, resultando por exemplo em NBA Jam se tornando um dos jogos mais clássicos da história dos arcades.
Se a NBA cresceu tanto sob o domínio de David Stern, por que as vaias no Draft? Se em 2013 elas tinham um misto de brincadeira e homenagem à crítica, nos outros anos era pura desaprovação mesmo. A resposta provavelmente está mais nos métodos do que nos resultados. O objetivo de Stern era fazer a liga crescer e dar mais dinheiro e é impossível questionar o sucesso dele nisso. Não há número que mostre mais isso que a valorização das franquias da NBA no período: em 1985 o Chicago Bulls foi vendido por 16 milhões de dólares, em 2014 o LA Clippers foi vendido por 2 BILHÕES de dólares. Mas o dinheiro não chegou sem percalços e decisões questionáveis, especialmente pela ótica dos fãs.
Oficialmente, o comissário é um funcionário que age para atender os desejos dos reais donos da NBA, os proprietários dos 30 times que formam a liga. Na prática, porém, Stern agia como o dono do negócio da coisa toda, muitas vezes até dando bronca e gritando de maneira bem pouco polida nas reuniões que fazia periodicamente com os bilionários. Uma coisa que ajudou o poder centralizador de Stern foi justamente a expansão da NBA, que tinha 23 times quando ele assumiu em 1984 e chegou a 30 times em 2004, quando foi criado o Charlotte Bobcats (agora Charlotte Hornets), com até uma expansão canadense rolando no meio do caminho. Não é fácil juntar 30 donos no mesmo lugar, muito menos fazer 30 bilionários acostumados a mandar em seus negócios toparem ceder uma coisa aqui e outra ali para agradar outros que são sócios ao mesmo tempo que são concorrentes ao título. O mais fácil acabava sendo dar o protagonismo a Stern, que ganhava poder de decisão dado ao histórico bom em fazer todo mundo ganhar dinheiro. Quanto mais sucesso, mais mandava sem questionamentos.
É unânime entre todos que conviveram com David Stern que ele era um negociador feroz, quase cruel, e que sabia argumentar como poucos. Com boa lábia, convenceu os times ainda no começo dos anos 1980 que a melhor coisa para a NBA seria criar um sistema de teto salarial. Com moral após a criação da Free Agency, Stern conseguiu na mesma época convencer a Associação dos Jogadores de que seria importante para o basquete se tornar o primeiro esporte nos EUA com um sistema antidoping, focado especialmente para segurar o consumo de cocaína que, segundo matéria do Los Angeles Times em 1980, era consumida por até 75% dos jogadores da época. Limpar a imagem do basquete era essencial para tudo o que seria feito depois.
O problema é quando o “limpar a imagem” não é tão preto no branco. Nos anos 2000 a NBA vivia sua primeira queda de audiência desde o crescimento dos anos 1980, em especial pelo vácuo deixado pela aposentadoria de Michael Jordan e da grande geração dos anos 1990. Ao mesmo tempo, o hip-hop começava a tomar conta da cultura popular americana e os jogadores da NBA, em sua maioria negros e com as mesmas origens e influências do movimento, exibiam a nova moda nas partidas. Passamos a ver então roupas largas, correntes de ouro, tranças no cabelo e sinais estranhos feitos com as mãos e logo associadas com gangues criminosas exaltadas em algumas músicas. Na cabeça de Stern, isso era um mau sinal: como vender profissionalismo e uma liga internacional com os jogadores, a chave da promoção da NBA, se comportando assim? Não havia mais lugares para bad boys.
Em 2005, a NBA estreou um Código de Vestimenta, exigindo um visual “business casual” e praticamente banindo o estilo Allen Iverson de se vestir, com correntes, panos na cabeça e camisas largas. A ideia de que o plano de “limpar a imagem” da NBA se passava por mudar a maneira com que os jogadores se vestiam foi muito mal recebida por atletas e por comentaristas mundo afora. Muitos viram como um ato claro de racismo criar essa regra justo quando a moda entre os atletas expressava um movimento cultural negro. Anos depois vemos como isso foi até um erro de leitura: Iverson era IDOLATRADO pelos jovens da época e um dos jogadores mais populares da história da NBA, além disso a cultura do hip-hop se expandiu e se normalizou mundo afora em pouco tempo. Para sua sorte, o assunto logo morreu quando os próprios jogadores abraçaram a chance de se expressar pelas roupas de outra forma. Hoje os jogos são uma passarela de moda masculina toda noite.
A reação exagerada para mudar a imagem da liga foi motivada também pela famosa briga entre jogadores do Indiana Pacers e do Detroit Pistons um ano antes, em 2004, que culminou com jogadores nas arquibancadas desferindo socos em torcedores. Se brigas dentro de quadra entre jogadores já não eram mais vistas da mesma forma que nas décadas anteriores, o que dizer de uma que envolve torcedores comuns? E justo numa época onde já havia a preocupação da NBA estar se tornando um “lugar de maloqueiros”. O medo de Stern, curiosamente, era de que cenas espalhadas mundo afora de jogadores negros batendo em torcedores brancos pudesse criar uma crise racial que a liga tem sempre que batalhar para não voltar a ser o que já foi.
A resposta de Stern foi implacável: Ron Artest, famoso pelas brigas e provocações e responsável por começar o tumulto, foi suspenso sem pagamento de todo o resto da temporada por suas atitudes “indefensáveis, inexplicáveis e repulsivas”, segundo declaração oficial da NBA. A votação pela maior suspensão da história da liga foi, segundo Stern, “um a zero”. Só ele votou. Outros nove atletas foram multados e suspensos e só Jermaine O’Neal conseguiu um alívio na punição após entrar na Justiça acusando o comissário de “exceder sua autoridade”, argumentando que o incidente havia acontecido fora da quadra. A fúria de Stern em não manchar a imagem da liga mundo afora não parou por aí: a partir desse incidente a NBA aumentou a segurança nos ginásios, criou novas regras para venda de álcool no fim das partidas, criou um código de conduta para torcedores e passou a punir de maneira rígida qualquer atleta ou fã que ultrapassasse a barreira entre os dois lados. Na última semana mesmo vimos Isaiah Thomas indo tirar satisfação com um cara que o xingou e o resultado foi o torcedor banido do ginásio do Philadelphia 76ers por UM ANO e o armador suspenso por duas partidas. É também por causa dessa briga que a NBA passou a ser rígida também com o confronto entre os jogadores, marcando faltas técnica ou flagrante a cada contato minimamente além do padrão.
Foi também aí o pontapé inicial de uma, para citar o termo da moda, INDÚSTRIA DA MULTA na NBA. Roupa errada? Multa. Critica de arbitragem? Multa. Falta técnica? Multa. Foi o jeito que Stern arrumou para manter controle da liga do jeito que ele sonhava, um ambiente amigável, neutro e que, assim, pudesse ser facilmente absorvido mundo afora. A fama de autoritário de Stern, que antes se resumia a questões internas do funcionamento da NBA, atingia cada vez mais a percepção do público. Na época das vaias em 2013 ainda estava fresco na memória de todos o locaute de 2011, onde Stern foi duro nas negociações com os jogadores e conseguiu com que os donos dos times pegassem para si uma maior porcentagem dos lucros da NBA, tirando o valor do pote que ficava com os jogadores.
Mas se o Código de Vestimentas não pegou bem, Stern tem outros casos na carreira para se redimir. Ele é o cara que no começo dos anos 1990 saiu na frente de todo mundo defender de Magic Johnson quando ele revelou ter o vírus HIV, segurando a onda de times e jogadores desinformados que queriam o atleta banido do esporte e promovendo uma série de ações para explicar para a sociedade a doença numa época em que a AIDS era vista como uma sentença de morte. O próprio ex-jogador já disse que jamais estaria na posição que está hoje, um empresário de sucesso e com uma despedida digna da NBA, sem a ajuda de Stern. O comissário também foi o responsável pela criação da WNBA, campeonato criado na base da força e da coragem, com ajuda de custos da NBA e que não morreu nos primeiros anos conturbados graças à atuação do manda-chuva. De novo, não que a WNBA receba tratamento igual, merecido e perfeito da liga masculina até hoje, mas Stern foi peça-chave para o campeonato sair do papel e sobreviver.
Também é interessante e contraditório lembrar que Stern começou sua carreira de advogado defendendo, sem cobrar, famílias negras que estavam sendo barradas de “bairros brancos” pelo mercado imobiliário de Nova Jersey. Ao mesmo tempo Stern nunca fez nada para confrontar Donald Sterling, ex-dono do Los Angeles Clippers, que protagonizou inúmeros casos de racismo ao longo da vida, incluindo acusações de justamente tentar tirar negros e asiáticos de bairros que ele queria comprar, valorizar e vender como regiões brancas.
Outro caso que pesou bastante na imagem recente de Stern perante o público foi a mudança do Seattle Supersonics para Oklahoma City, onde a franquia virou o Thunder. Tudo começou com o desejo insaciável da NBA de sempre ter arenas novas e caras nas cidades, de preferência com o máximo de apoio de dinheiro público. Seattle se recusou a bancar um ginásio maior e Stern, com apoio de 27 donos de times, não fez lá muita coisa para evitar que um grupo de investidores comprasse o time e o levasse para outro lugar, deixando orfã uma das cidades mais tradicionais da liga, mesmo após uma promessa inicial de não realocar a franquia. A comunicação confusa da posição oficial da NBA se repetiu também no caso do árbitro Tim Donaghy apostando em partidas que havia apitado e mesmo no veto da troca de Chris Paul para o LA Lakers, em 2011. Sem explicação didática do que a liga estava fazendo e os motivos, somada à fama de tirano de Stern, foi criada uma aura de ditadura que, nos últimos anos, apagou a imagem de sucesso do comissário que transformou um campeonato falido numa marca bilionária.
O cargo de comissário é vitalício, Stern saiu em 2014 porque quis. Muitos dizem que ele sentiu que seu poder tinha diminuído, especialmente pela falta de afinidade com uma nova geração de donos de equipes. Os velhos milionários do mercado imobiliário e do petróleo aceitavam tudo o que Stern sugeria, mas os bilionários de 40 anos formados no Vale do Silício não davam mais tanto poder para o comissário. A figura de Adam Silver, preparada por Stern para o cargo, de perfil bem mais conciliador e calmo, parece mesmo mais apropriada aos novos tempos. Sua aposentadoria foi curta e ativa. Ainda era conselheiro de Silver, investiu em diversas empresas de tecnologia do esporte e dava entrevistas sobre diversos assuntos. Se recusou a escrever ou contribuir em livros sobre sua história, mas qualquer obra que queira falar da NBA nos últimos 40 anos será obrigada a tocar em seu nome, descrever suas decisões e analisar seu impacto.
No fim da primeira rodada do Draft de 2013, o público finalmente aplaudiu Stern e vaiou Silver, que entrou no palco para anunciar as escolhas da segunda rodada. O comissário errou e exagerou ao longo dos 30 anos, mas as vaias eram principalmente pelo mero hábito de atacar quem está no poder. E ninguém teve mais poder na NBA dos últimos 40 anos que David Stern.