Há um ano, em maio de 2019, o comissário da NBA Adam Silver revelou estar com “um pouco de inveja” da NBL, a Liga Australiana de Basquete. O que faz o líder da maior, mais poderosa e mais rica liga do mundo ter inveja do campeonatinho onde Andrew Bogut ainda consegue ser MVP? A declaração aconteceu depois da NBL ter conseguido atrair RJ Hampton, um dos nomes mais fortes do basquete do ensino médio americano no ano passado e que decidiu atravessar o mundo para ganhar um salário ao invés de jogar de graça na NCAA ou por “mixaria” na G-League, a liga desenvolvimento da NBA.
Em entrevista, o manda-chuva da NBA até elogiou o sistema de desenvolvimento de basquete australiano que “coloca os garotos para serem apenas jogadores desde os 14 anos de idade” e aproveitou para revelar os planos futuros: “Estamos tentando traçar um caminho profissional próprio nosso, acho que vou falar com o comissário da G-League para ver o que podemos fazer diferente. É preciso que exista uma alternativa dentro dos EUA para um jogador americano que ache que a universidade não é pra ele e que deseja apenas se dedicar ao basquete”.
O plano deu resultado nesta sexta-feira (17), quando Jalen Green, nome mais cotado para ser a primeira escolha do Draft 2021, decidiu ignorar as ofertas de Auburn, Memphis, Florida e outras grandes universidades e anunciou que vai passar a próxima temporada se preparando para o Draft como membro da G-League da NBA. Como a NBA pulou da pura inveja para fisgar o principal nome no mercado em um ano? Com um bom plano, dinheiro para investir, leitura de mercado, crises alheias e até uma pitada de coronavírus para acelerar o processo.
A G-League vai mudar para receber Jalen Green: ele não vai fazer parte de uma das 28 franquias da liga, mas de um time feito especificamente para abrigar jovens promessas vindas do ensino médio. Ao seu lado, além de Isaiah Todd, outro considerado um dos melhores colegiais da atual safra e que topou a aventura também, ainda podem mais adolescentes. Para completar o elenco o plano é contratar veteranos que ajudem os jovens a se desenvolverem como jogadores e profissionais da NBA. A ideia é atrair caras em fim de carreira que queiram se tornar treinadores em breve ou mesmo quem está fora da liga e busca um caminho de volta, aproveitando o fato de que todo a NBA estará de olhos bem abertos para ver como Green e Todd estão jogando.
Esse time especial, por enquanto chamado de Select Team, não participará normalmente da G-League e seu calendário de 50 jogos. Ao invés disso deve fazer amistosos contra as equipes da G-League ao longo do ano assim como deve fazer algumas viagens para enfrentar seleções nacionais ou times de outras jovens promessas de academias da NBA espalhadas pelo mundo. O objetivo é focar no treinamento dos jogadores e sua preparação para o Draft, não na competitividade. E não vale para todo mundo, mas só para convidados considerados “prospectos de elite”. Outro ponto importante de mudança é o pagamento: Green deve receber ao menos 500 mil dólares por essa temporada, muito mais do que os 125 mil dólares anuais que eram o teto da liga para jogadores que decidissem pelo mesmo caminho antes.
“Eu quero melhorar e me preparar para a NBA, que é meu objetivo final”, Green falou em entrevista ao Yahoo Sports. “Acho que foi uma boa decisão. Ainda vou poder ir para a faculdade e terminar os estudos, então não acho que estou perdendo essa parte da experiência porque posso voltar e me formar. Estudo é algo muito importante na minha família”, completou. A G-League, aliás, vai oferecer também uma bolsa de estudos para que Green possa estudar durante a offseason ou mesmo depois de parar de jogar.
A G-League já era um caminho para a NBA antes, mas com diferenças fundamentais. Um exemplo recente foi o de Alen Smailagić, ala sérvio que resolveu se arriscar na G-League na última temporada. Com apenas 18 anos ele não podia ir para o Draft da NBA, mas poderia ir para a G-League e achou que jogando por lá ficaria mais perto dos observadores da liga. Foi o que aconteceu: foi draftado pelo Santa Cruz Warriors, afiliado do Golden State Warriors, fez admiradores por lá e na hora do Draft da NBA o time de San Francisco fez uma troca para conseguir selecioná-lo. Nas novas regras Smailagić, se fosse considerado uma promessa de elite, ele não precisaria passar pelo Draft de G-League, jogaria no especial Select Team e ainda ganharia muito mais dinheiro.
Mas por que, em meio a duas crises financeiras seguidas, a do imbróglio com a China e a do coronavírus, a NBA vai se dar ao trabalho de entrar nessa briga por pirralhos? Vendo de fora parecia que a situação da NBA era até bem cômoda, com as universidades fazendo todo o trabalho sujo de escanear os EUA em busca dos melhores talentos colegiais e prepará-los para o basquete profissional. Mas a verdade é que a NBA se incomodava com a falta do controle: lembram quando Zion Williamson EXPLODIU seu tênis e machucou o joelho num jogo de Duke? Ou quando Ben Simmons, por motivos bizarros, jogou um ano fora ao parar num time muito do sem vergonha da LSU? Ou nessa temporada mesmo, quando o promissor James Wiseman foi simplesmente CHUTADO da Universidade de Memphis por acusações de estar recebendo dinheiro por fora? A NBA sabe que seu futuro depende das estrelas que vão assumir o jogo nos próximos anos e não pode se dar ao luxo de vê-las sendo mal preparadas ou correndo riscos desnecessários. As pesadas acusações de fraude contra a NCAA que viraram alvo de uma gigantesca investigação do FBI também não ajudam, claro.
Todos os problemas da NCAA e sua arcaica regra de proibir que os atletas ganhem dinheiro já haviam levado outros jogadores a buscarem rotas alternativas: onze anos atrás Brandon Jennings foi jogar basquete profissional na Itália por um ano para cumprir o pré-requisito de uma temporada entre o ensino médio e o Draft. Emmanuel Mudiay fez a mesma coisa na China, RJ Hampton e LaMelo Ball foram para a liga australiana no ano passado e Darius Bazley foi ainda mais inovador e fez um ESTÁGIO PAGO na New Balance, onde treinou, trabalhou e ganhou um milhão de dólares. Dava pra farejar facilmente no ar que tinha gente querendo uma nova opção, faltava alguém para oferecer. Incomodou a NBA que a AUSTRÁLIA, do outro lado do planeta, tenha tomado essa frente, não só com Ball e Hampton, mas até com nosso brazuca Didi Louzada, enviado pra lá pelo New Orleans Pelicans para um ano de adaptação após o Draft. Não era função da G-League fazer esse trabalho? Além da NBL manter a falta de controle da NBA na situação, a distância geográfica atrapalhava o trabalho das franquias na hora de fazer o scout dos jogadores, já que uma viagem até lá é longa, cara e trabalhosa.
O principal responsável por desenvolver o plano que levou Jalen Green à G-League foi Shareef Abdur-Rahim, ex-jogador de sucesso na NBA que assumiu como comissário da liga de desenvolvimento em Janeiro de 2019 justamente para realizar esta missão de transformar o campeonato em um novo caminho para os jovens mais promissores do basquete colegial . Até então os propósitos da liga eram apenas como ferramenta para desenvolver e dar rodagem a promessas que já estavam entre os profissionais ou para dar chance a outros jovens que tinham passado em branco pelo Draft e buscavam uma nova chance de chamar a atenção das franquias. Com experiência nos bastidores da NBA e um filho cotado para brilhar como profissional daqui alguns anos, Abdur-Rahim rodou todo os EUA para observar como funciona o basquete colegial, AAUs e todos os altos e baixos do recrutamento das grandes universidades e dos desejos dos jovens jogadores hoje em dia.
Obviamente que uma das primeiras coisas que Abdur-Rahim percebeu foi o desejo dos jovens jogadores de ganhar dinheiro. Todos querem, claro, mas é questão de urgência para alguns desses meninos que crescem em famílias pobres e são a esperança de muita gente para mudar de vida. Ele também observou que muitos jogadores não nutrem mais aquele sonho de disputar o basquete universitário e que veem a NCAA apenas como um caminho para a NBA. E não é segredo pra ninguém que rola muito dinheiro escondido no mundo universitário, como revelou uma hilária conversa entre Bradley Beal e Jayson Tatum nesta semana quando ambos estavam anunciando um pacote de ajuda para a cidade natal deles de Saint Louis. Os dois acabaram falando sobre o caso de Jalen Green e Tatum afirmou que acha que teria jogado pela Universidade de Duke mesmo que fosse oferecido a ele 500 mil dólares pela G-League; “Duke te deu 600 mil então?”, respondeu Beal e Tatum defendeu sua escola dizendo que ela talvez seja uma das únicas que joga dentro das regras. “Eu nasci, mas não nasci ontem”, foi a resposta final da estrela do Washington Wizards.
A questão financeira, portanto, era essencial para a G-League assumir a frente do negócio. Pagar os 500 mil para Green foi a chave para levá-lo. A grana é maior do que a da Austrália, China ou mesmo do possível dinheiro secreto da NCAA? Bom, nesse ano sim! Graças ao coronavírus a Austrália está com as fronteiras fechadas e sem saber quando seu campeonato começa, a China mesmo em processo de reabertura não tem basquete nem previsão de retorno e a temporada do basquete universitário pode nem acontecer em 2020-21 dependendo de como as coisas seguirem nos EUA. Mesmo que ela ocorra, ninguém sabe qual vai ser seu calendário de jogos. Nesse cenário de insegurança a oferta da G-League deve ter parecido como um pote de ouro no fim do arco-íris para o jogador. E por mais que a NBA deva estar pensando em economizar agora, não é um dinheiro colossal para os seus ganhos e é algo que pode dar resultado mais pra frente. O mundo pode não dar muita bola para a G-League, mas todos estarão curiosos para ver Jalen Green jogar.
Até o ano passado se falava na imprensa americana que a solução para os problemas da NCAA ou da fuga dos EUA seria acabar com a regra que exige o ano entre a formatura colegial e o Draft. A previsão para essa mudança era 2022, mas as negociações travaram. Segundo Jonathan Givony, da ESPN, há dois fatores para isso: primeiro que os times nem estão lá muito animados em receberem jogadores tão novos e crus de novo. Embora no passado tenha dado certo para LeBron James, Kobe Bryant e Dwight Howard, outros tantos poderiam ter tido carreiras melhores se chegassem na liga mais bem preparados. O segundo ponto seria uma cobrança da NBA que para ter os colegiais no Draft seria necessário que todos os times tivessem acesso aos exames médicos dos garotos, algo que agentes não querem abrir mão de controlar. Hoje em dia a liberação de exames é ferramenta para um jogador mostrar que quer ou não ir para determinado time. Se o Sacramento Kings tem medo do meu joelho bichado, por exemplo, e eu me recuso a mandar meus exames para eles, menor a chance de me draftarem. Com as jovens promessas sob suas asas, a NBA teria mais controle sobre essa situação e agradaria assim os times, além de facilitar o trabalho dos olheiros de cada franquia. E nesse cenário os agentes estariam mais dispostos a cooperar já que podem levar uma grana do contrato do jogador na G-League.
Estes pontos contam, mas são detalhes. Mais importante do que isso na hora de definir se estamos vendo uma nova tendência de verdade será o desempenho de Jalen Green. O que as promessas do ano que vem vão olhar daqui um ano é se a G-League ajudou o ala a ser um melhor jogador e, mais importante, se isso ajudou ele no Draft da NBA. Será que ele pode perder posições porque um outro moleque jogou tão bem no NCAA Tournament que passou ele no olho dos times da NBA? Será que o nível da G-League é bom o bastante nesses amistosos? E se fica a impressão que Green não se desenvolveu ou não teve sequer a chance de mostrar sua melhora? A diferença de ser escolhido na posição DOIS ou CINCO pelas regras salariais da NBA é de DOIS MILHÕES de dólares. Não vão ser 500 mil dólares que vão convencer uma futura promessa caso a G-League acabe atrapalhando um jogador no mercado de ações que é o Draft da NBA.
Mais flexível, a NBA agiu antes da NCAA e conquistou uma importante vitória com Jalen Green e Isaiah Todd. A próxima temporada começará a nos dar respostas sobre como será o futuro do desenvolvimento de jovens jogadores. Não se surpreendam se daqui alguns anos estivermos vendo dois ou três times inteiros com moleques de 18 anos se preparando para a NBA enquanto já estão dentro de uma parte dela. E todos vão ganhar pra isso…