Em 2003, tive uma aula de game design. Eu e o Danilo estávamos no Ensino Médio e éramos completamente bitolados na NBA, só parávamos de falar de basquete na hora de JOGAR basquete nos intervalos da escola. Um dia, discutindo estatísticas de alguns jogadores, decidi que iria criar na base da CARTOLINA o nosso próprio Super Trunfo da NBA. Para os perdidos, o Super Trunfo é um jogo de cartas para dois jogadores em que cada um começa com metade do baralho e precisava conquistar a metade do adversário. Os temas eram variados (de dinossauros a países), mas lembro que os de carros eram os mais populares. Você olhava a carta no topo do seu monte, observava todos os dados do veículo (velocidade máxima, potência, peso) e escolhia a categoria que acreditava que tinha mais chance de superar a carta do seu rival. Se desse certo, você ficava com as duas cartas e continuava com a seguinte. O segredo da vitória era, portanto, saber a média das cartas e descobrir se fazer de zero a 100 km/h em nove segundos era muito ou pouco.
Cortei 66 cards de cartolina e coloquei neles as estatísticas da temporada anterior da NBA, a 2001-02, de três jogadores de cada time que foi aos Playoffs e dois jogadores do restante das equipes. Eventualmente percebi que eram jogadores demais e que o jogo ficava muito longo, mas nem era essa a lição que eu ia aprender. Os problemas começaram na hora de escolher os números que iriam para as cartas, as categorias que você teria que escolher na hora do desafio ao rival. Para deixar o jogo mais complexo, fui com média de pontos, rebotes, assistências, roubos, tocos, turnovers, total de double-doubles e total de triple-doubles. Achei que colocar aproveitamento de arremessos seria esquisito (quantas casas decimais de porcentagem?) e que beneficiaria jogadores ruins que arremessam pouco, os caras mais desinteressantes para um fã de 15 anos.
O jogo foi um sucesso de público, se você considerar como público as menos de vinte pessoas da minha turma. Até algumas pessoas que nem ligavam para basquete acharam que nosso carteado era mais interessante do que a aula de Espanhol ou de Química e pediam o deck emprestado para matar o tempo. Só que não demorou muito para que descobrissem um terrível erro de design no projeto: os triple-doubles. Se sua carta era ruim ou se não tinha certeza do que pedir, era só chamar “TRIPLE-DOUBLE” e falar que seu jogador tinha zero. Provavelmente o jogador da vez do adversário também tinha zero triple-doubles e com o empate as duas cartas iam para a mesa, te dando mais uma chance de jogar com mais segurança. Às vezes a gente ouvia umas sequências de “triple, zero, zero” que duravam dez rodadas e juntavam um bolo gigantesco de cartas a serem vencidas de uma vez só.
Uma pequena alteração na regra, como passar a vez para o adversário em caso de empate, teria ajustado o problema, mas a lição principal é que o triple-double era tão raro naquela época que não deveria ter sido considerado para o jogo. Em 2001-02, apenas SEIS jogadores conseguiram triple-doubles em toda a temporada: Jason Kidd (8), Andre Miller (3), Steve Francis, Gary Payton, Antoine Walker e Jamaal Tinsley (2). Na minha cabeça era legal que esse feito extraordinário fosse premiado, era como ter o próprio Super Trunfo em mãos (uma carta que ganha de todas), mas a verdade é que ele simplesmente não fazia tanto parte do basquete para participar da brincadeira. Na segunda edição do jogo, com as estatísticas de 2002-03, tiramos double-doubles e triple-doubles para colocar aproveitamento de arremessos (FG%) e de lances-livres (FT%), carinhosamente chamado pela turma de “fritão”. Nosso público aprovou.
A anedota serve não só pra falar do nosso amor ao basquete e do tédio em relação aos estudos na adolescência, mas para reforçar a aura que o triple-double tinha até algum tempo atrás. Eu era bitolado neles, sabia de todos os jogos em que tinha acontecido nos últimos anos, sofria quando alguém ficava a um rebote ou assistência de chegar na marca e achava que alcançá-lo era sinônimo de um jogo completo. Eu não estava sozinho nessa, a imprensa da época e mesmo jogadores o levavam muito a sério, alguns a ponto de tentar uma CESTA CONTRA só para garantir um rebote a mais e garantir a marca.
Embora existam dados sobre pontos, rebotes e assistências desde muito antes, a NBA só começou a contabilizar triple-doubles com esse termo em 1980, quando Magic Johnson popularizou o feito. O grande talento do armador do LA Lakers era justamente ser completo, fazer um pouco de tudo, e os triple-doubles viraram uma forma de mostrar isso. Alcançar dois dígitos em três categorias diferentes é uma marca completamente arbitrária e baseada no nosso gosto por números redondos, mas é também impressionante. Por muitos anos, achávamos repetir o feito de Oscar Robertson de ter média de triple-double ao longo de um ano todo tão inimaginável quanto bater os 100 pontos de Wilt Chamberlain em uma partida.
Pulemos então para 2016-17, quando Russell Westbrook fez o impossível: ao longo de uma temporada inteira, seu primeiro ano após a saída de Kevin Durant, ele teve médias de 31,6 pontos, 10,7 rebotes e 10,4 assistências por partida, alcançando triple-doubles em 42 das 81 partidas que disputou, um recorde. Quando ele sustentava a marca no meio da temporada chegamos a gravar um podcast só para discutir se era possível imaginar que duraria o ano todo. Parecia surreal, mas rolou não só em 2016-17 como nas duas temporadas seguintes também! E neste 2020-21, embora com apenas 14 jogos disputados, Westbrook tem médias de 19,4 pontos, 9,2 rebotes e 9 assistências pelo Washington Wizards. E sabe quanto tempo gastamos discutindo isso? Nem um segundo sequer. Foi rápido, mas triple-doubles agora são banais.
Além de Westbrook, outros jogadores nessa temporada flertam com médias de triple-double, como Nikola Jokic (26,8 pontos, 11,8 rebotes e 8,6 assistências), Luka Doncic (27,4 pontos, 9,2 rebotes e 9,4 assistências), Ben Simmons (13,3 pontos, 8,2 rebotes e 8 assistências) e até James Harden, que começou o ano devagar mas que desde que chegou no Brooklyn Nets tem médias de 24,3 pontos, 11,4 assistências e 7,8 rebotes. O ano também viu LaMelo Ball se tornar o mais jovem jogador a conseguir um triple-double na NBA, superando Markelle Fultz, que tinha batido Luka Doncic, que tinha ultrapassado Lonzo Ball. Tudo isso nos últimos três anos!
LeBron James congratulates LaMelo Ball on becoming the youngest NBA player to record a triple double 👑
LaMelo vs. Hawks: 22 points, 12 rebounds, 11 assists pic.twitter.com/NestusoxlO
— ClutchPoints (@ClutchPointsApp) January 10, 2021
Se no ano do meu Super Trunfo tivemos SEIS jogadores fazendo 19 triple-doubles, neste ano já são 40 marcas por DEZESSEIS atletas diferentes em apenas um quarto de temporada. No ano passado, mesmo com o campeonato encurtado, foram CEM triple-doubles por 28 jogadores. O último ano completo, 2018-19, viu 127 triple-doubles por 32 nomes diferentes. Como diabos pulamos de 19 triple-doubles em 2003 para 127 em apenas 15 anos?
Existe muita especulação para tentar entender essa mudança, mas hoje vamos usar dois estudos para ver se conseguimos uma resposta. Um é uma análise do Jeremy Brooks, do grupo de estudos analíticos da Universidade Northwestern, o outro é do Ahmed Cheema, que usa suas habilidades em programação para fazer análise de dados sobre a NBA no The Spax.
Ambos começam com a mesma ideia: será que o jogo hoje em dia não é simplesmente mais rápido e o maior número de posses de bola por partida facilitam os triple-doubles? Quanto mais posses, mais arremessos, mais rebotes e mais chances do seu passe virar uma assistência. Não só faz todo o sentido como um gráfico mostra como o número de triple-doubles subiu junto com a disparada do ritmo de jogo das partidas de 2015 para cá:
Se pegarmos só dos anos 2000 para hoje, vemos que parece mesmo haver uma relação entre triple-doubles e ritmo de jogo, mas como explicar que no começo dos anos 1980, mesmo com partidas tendo ainda mais posses de bola do que hoje, as marcas eram tão raras? Brooks ainda argumenta que embora o número de posses disputadas por jogo tenha crescido nos últimos anos (de 94 em 2013 para 100 em 2019), o total de minutos disputados pelos principais jogadores da NBA caiu, fazendo com que eles não disputem muito mais posses de bola do que há cinco temporadas, quando os triple-doubles começaram a deslanchar. Há algo além da velocidade do jogo, mesmo que ela pareça ajudar.
Os estudos então divergem na rota para procurar uma outra explicação, um indo para o lado das assistências e outro para os rebotes. Brooks aponta para a alta nas bolas de 3 pontos para explicar o crescimento no total de assistências por partida: chegou a ser de 20 por jogo por time há 15 anos e hoje é de 25. Normalmente arremessos de longe são resultado de passes, enquanto as bolas de meia distância ou post-ups do passado são muitas vezes criações individuais. De novo o argumento funciona no passado recente, mas nos anos 1990 também tínhamos médias de até 26 assistências por partida para cada time e não víamos tantos triple-doubles. Por sua vez, Cheema investe nos rebotes. Para ele, as bolas de 3 pontos significam mais rebotes longos, bolas que caem longe do garrafão e ficam à disposição dos armadores, caras que normalmente não pegavam tantos rebotes.
Aqui parece que ele acha um ponto interessante: um artigo do Kirk Goldsberry já tinha mostrado que realmente arremessos longos geram rebotes mais distantes da cesta, e Cheema foi atrás dos dados e descobriu que a altura de quem pega o rebote também cai quanto mais longo ele é. Talvez as bolas de 3 pontos estejam ajudando a vida de quem está mais propenso a alcançar, eventualmente, as 10 assistências:
O próprio Cheema alerta que essa relação entre mais rebotes de baixinhos e mais triple-doubles não é automática, mas ela é interessante e parece facilitar a vida de armadores que antigamente sequer brigavam por rebotes.
Há, porém, um outro fator que nenhum dos dois aborda: rebotes ofensivos. Nesta temporada 2020-21, apenas 22% dos arremessos errados viram uma nova posse de bola para o time que está atacando, a menor marca da história da NBA empatado com 2017-18. Aliás, todo o TOP 8 de temporadas com menos rebotes de ataque são as últimas oito temporadas disputadas. Três tendências recentes explicam a queda. Primeiro a decadência dos pivôs, normalmente os caras que pegavam os rebotes ofensivos e que agora às vezes sequer ficam na quadra; depois temos o crescimento das bolas de 3 pontos, que colocam muitos jogadores do time atacante no perímetro, longe até dos rebotes mais longos; e por último temos o já citado aumento no ritmo das partidas. É tanta correria, tanto time desesperado para correr para o contra-ataque, que os técnicos mandam seus jogadores voltarem rápido para a defesa assim que um arremesso é disparado.
Essa situação cria rebotes sem contestação, fáceis, ideais para que caiam na mão de um jogador que normalmente não pegaria tantos rebotes. E sabe qual é o melhor jeito de sair na correria e pegar desprevenido até mesmo o adversário que já está voltando para a defesa? Deixar o seu principal criador de jogadas pegar o rebote. É o que o OKC Thunder fazia com Westbrook. Por que perder valiosos segundos com Steven Adams pegando um rebote, procurando pelo armador e então soltando o passe? Era mais fácil Adams apenas fazer o boxout, proteger a bola, e deixar Westbrook agarrar o rebote e sair correndo desesperadamente para frente. Vemos o mesmo acontecer com LeBron James, Luka Doncic, James Harden e tantos outros. Os lances abaixo mostram um pouco de tudo: Doncic se posiciona sozinho para os rebotes, sem contestação dos rivais ou mesmo dos companheiros, que querem que ele pegue a bola e parta para o ataque.
Por fim, os dois estudos cogitam que hoje em dia podemos simplesmente ter mais jogadores CAÇANDO triple-doubles. Para descobrir isso, tanto Brooks quando Cheema usaram a estratégia de ver se um jogador com ao menos 10 rebotes tem mais tendência de chegar a 10 assistências do que alguém que não tem, e a resposta em ambos os casos foi SIM. Cheema ainda faz nossa alegria ao relembrar de um momento hilário, quando Westbrook seguia em quadra contra o Golden State Warriors de Kevin Durant mesmo com seu time vencendo por quase VINTE PONTOS e a menos de dois minutos do fim da partida. O motivo? Ele queria sua décima assistência! O armador então passa a bola para Steven Adams, que ao invés de tentar o arremesso passa a bola para Paul George. Westbrook fica puto enquanto Durant gargalha no banco ao lado de Steph Curry:
Antes eu citei o caso de Ricky Davis arremessando contra a própria cesta para garantir o rebote final, então o tal “stat-padding” não é novo, o que talvez seja mais comum agora são jogadores flertando com o triple-double. Ou seja, os fatores citados acima deixam eles mais próximos da marca e assim eles podem, conscientemente, buscá-la no fim da partida. Na temporada do meu Super Trunfo tivemos 167 atuações com ao menos 10 pontos, 8 rebotes e 8 assistências, em 2018-19 foram 334.
Embora todos esses argumentos sejam relevantes, o principal deles não foi tão aprofundado estatisticamente pela dupla. Ambos falam em uma nova geração de jogadores “mais capazes” de fazer triple-doubles. Cheema cita uma onda (Luka, Giannis, Jokic, Simmons) de caras com menos de 25 anos famosos justamente por fazer um pouco de tudo, enquanto Brooks lembra que os oito primeiros colocados na lista de mais triple-doubles em 2018-19 foram responsáveis por 90 das 127 marcas daquele ano (71%). Ou seja, por mais que a gente discuta isso como uma tendência da liga, é um grupo relativamente pequeno que tem feito o grosso dos resultados. Mas os estudos param por aí.
O ponto que ambos ignoram é que Westbrook, Luka e Jokic não são necessariamente mais completos ou mais preparados para os triple-doubles do que as estrelas do passado, o que eles fazem é jogar dentro de um estilo que não sei se já vimos antes na NBA. Como observou o Seth Partnow em um texto para o The Athletic de 2019, a NBA está mais “heliocêntrica” do que nunca, com sistemas ofensivos inteiros orbitando ao redor de uma grande estrela que coordena sozinha todo o ataque. Seguindo a ideia do Partnow, o Ben Taylor fez um vídeo no seu canal Thinking Basketball mostrando um pouco mais sobre como é essa nova NBA centrada em uma estrela. Ele criou um novo número chamado “offensive load“, ou “carga ofensiva”, que mede quanto um jogador participa da criação de ataque para seu time, seja pontuando ou produzindo para outros finalizarem.
O que Taylor nos apresenta é que vivemos uma era de aberrações. Números de carga ofensiva antes vistos como gigantescos e raros como o de Tiny Archibald nos anos 1970 ou Allen Iverson e Steve Nash no começo dos anos 2000, hoje são fichinha perto das marcas que uma penca de jogadores diferentes faz toda santa temporada. E veja se o gráfico abaixo mostrando a porcentagem de jogadores a alcançar determinada marca de carga ofensiva não se parece um pouco com aquela onda vista acima do total de triple-doubles ao longo dos anos:
Podemos apontar para o ritmo do jogo, para os rebotes longos e para o desejo de fazer alcançar marcas que impressionam. As bolas de 3 pontos também são decisivas em qualquer mudança no basquete nos últimos dez anos, mas a ERA dos triple-doubles parece, mais do que tudo, um efeito colateral de uma tendência tática que bota a bola na mão de qualquer grande jogador, seja ele um armador como Westbrook ou um pivô como Jokic e o manda jogar como um quarterback de futebol americano: todas as decisões do ataque passam pela sua mão. A carga ofensiva começa com o time dando os rebotes defensivos para que a estrela já parta em velocidade e usa o espaçamento dos arremessadores e os infinitos pick-and-rolls no meio da quadra para que a estrela ataque, seja pontuando, seja passando, em toda posse que participa. É a receita ideal para acumular números.
Quem mais tira proveito disso são as grandes estrelas mais talentosas, claro, mas estamos assistindo até jogadores menores assumirem esse papel. É o caso de Julius Randle, que virou faz-tudo do NY Knicks nessa temporada e se tornou líder do time em média de pontos (22), rebotes (11) e assistências (6). E quando um jogador falha em um dos atributos, como Zach LaVine que nunca se achou como criador de jogadas, ele acaba tachado como alguém que nunca será a primeira estrela de um time vencedor. Beirar triple-doubles hoje é pré-requisito para almejar grandes coisas como líder de uma equipe.
Enquanto essa for a moda, teremos que seguir adaptando as nossas expectativas. Se um triple-double já foi prova concreta de grande atuação ou dia inesquecível lá nos tempos do Super Trunfo de 2002, hoje ele é só mais um dia de um jogador de destaque na NBA.