Chris Paul é o Chris Paul desde 2005. Quando o armador entrou na NBA há uma década e meia, ele já tinha o mesmo estilo de jogo que vimos brilhar agora nos Playoffs de 2021: os mesmos dribles in-and-out, a mesma manha de usar o corpo para ganhar espaço contra defensores mais altos, o mesmo domínio do pick-and-roll e os mesmos arremessos mortais de meia distância. Houve muita evolução (seu melhor aproveitamento nos tiros de meia distância aconteceu agora em 2021, por exemplo), mas a IDENTIDADE nunca mudou.
Em parte isso aconteceu porque Paul é um caso raro de jogador que chega entre os profissionais muito à vontade e sabendo o que e como fazer numa quadra de basquete. Em parte também porque ele chegou à NBA numa época em que o estilo de jogo da liga mudava a seu favor. Quando CP3 foi draftado pelo New Orleans Hornets, Steve Nash começava a mostrar para o mundo os prazeres e facilidades de ter um sistema ofensivo baseado no pick-and-roll. Paul não só se beneficiou da estratégia e fez sua parte em impor à NBA uma nova era de armadores dominantes, agressivos e também pontuadores.
Só que na Final da NBA de 2021 entre o Phoenix Suns e Milwaukee Bucks, Paul era a exceção. Do outro lado da quadra, os campeões Khris Middleton e Giannis Antetokounmpo, a espinha dorsal, o alfa e o ômega do sistema ofensivo do Bucks, são resultados de anos de mudanças, evoluções e adaptações táticas. Ambos são muito diferentes do que eram quando chegaram na NBA: de competidores por minutos numa mesma posição há alguns anos, a dupla mudou até se tornar mortalmente complementar.
Em uma matéria no The Athletic, o repórter Eric Nehm escreveu sobre o início da relação entre Giannis e Middleton lá quando se tornaram companheiros de time em 2013-14. “Você não imagina como eram duras nossas batalhas nos treinos. Eu ia para casa e mostrava os arranhões que ele me dava nos braços”, disse Giannis. “Eu o puxava com força e ele me empurrava. Eu o odiava. Eu dizia ‘foda-se esse filho da puta, vou roubar seus minutos'”. O amor era recíproco, como confirma Middleton: “Nos odiávamos porque estávamos brigando por minutos. Jogávamos na mesma posição, então todo treino era uma batalha. Estávamos nos ajudando a melhorar, mas na hora a gente estava mesmo era brigando por um espaço na rotação”.
É importante lembrar que nenhum dos dois chegou com muita moral em Milwaukee. Middleton foi um mero detalhe numa troca onde os maiores nomes eram Brandon Jennings e Brandon Knight, o ala havia sido selecionado só na segunda rodada do Draft 2012 e tinha tido um primeiro ano de carreira discreto no Detroit Pistons. Sua primeira temporada no Bucks era essencial para ele provar para o time que merecia continuar com emprego na NBA. Já Giannis era uma aposta mais cara da equipe, mas era uma de longo prazo. A briga de Giannis era para tentar provar que merecia jogar desde já e não mofar no banco por duas temporadas a espera de desenvolvimento físico e técnico.
Lembrar disso e ver agora ambos como líderes de um Bucks campeão é uma bonita história de superação, mas é também motivo de confusão. Quem descobriu o time agora e viu a jornada deles nestes Playoffs deve ler o causo e pensar “como assim eles brigavam por espaço na MESMA POSIÇÃO?”. Em diversos momentos nos últimos meses vimos Middleton como o responsável por levar a bola da defesa para o ataque e criar as jogadas, enquanto Giannis era quase um solitário pivozão fazendo corta-luzes e caçando rebotes ofensivos. Não dá para serem mais diferentes em estilo e função.
O ponto é que Giannis não é chamado de freak à toa. O fato dele ser uma aberração física pode até ser algo positivo hoje, mas no começo também foi motivo de dúvida para o time. Em que posição ele joga? Apesar de rápido, era alto demais e não tinha o domínio de bola necessário para ser armador, mas era magricela demais para entrar no garrafão também. Sobrava a genérica posição do small forward, a três. Já Middleton não tinha jamais mostrado visão de jogo e muito menos capacidade de drible e infiltrações, então só o víamos como um ala da mesma posição 3, mas um do estilo que se mexe sem a bola e manda arremessos de longe.
Foi só com o passar dos anos que ambos foram descobrindo novas funções e talentos: Giannis desenvolveu um ótimo controle de bola e chegou a ser usado em momentos como um criador de jogadas, alguém que recebia a bola no meio da quadra para atacar a cesta, atrair defensores e a partir disso gerar passes. Só que nos últimos anos o técnico Mike Budenholzer percebeu que isso também limitava o seu jogador. Sem bom arremesso de longa distância, os times recuavam e formavam um paredão na frente do garrafão. Ele até poderia dar passes para o perímetro, mas seu jogo se resumia então a correr, bater na parede e passar para o lado. Nos Playoffs os adversários estavam mais que satisfeitos em usar essa abordagem e Giannis acabava sumindo do jogo quando não conseguia arranjar um contra-ataque pra chamar de seu.
Só não leve muito ao extremo essas linhas a cima. Foi com uma estratégia mais ou menos assim que Giannis levou o Bucks a duas melhores campanhas de temporada regular e foi assim que somou números absurdos e conquistou dois troféus de MVP. A ideia de ter Giannis atacando a cesta com arremessadores o cercando é SENSACIONAL, mas as defesas exageradas, específicas, fortes e planejadas dos Playoffs pareciam feitas para travar esse trator. É preciso mais variedade para ficar menos previsível. E foi nesse cenário de ataque empacado que Middleton passou a mostrar para o mundo o que vinha desenvolvendo aos poucos ao longo da sua carreira. Quando o ataque do Bucks freava, a bola muitas vezes caía na mão dele, que usava seu jogo em câmera lenta para criar lances para si ou para os companheiros.
Em seu primeiro ano na NBA, ainda no Pistons, 7% das cestas dos companheiros de Middleton vinham de passes dele, contando apenas os minutos em que ele estava em quadra, claro. No ano seguinte, já em Milwaukee, o número subiu para 11%, depois 12% em 2014-15. Na temporada seguinte pulou para 18% e foi crescendo aos poucos até o auge agora em 2020-21, quando nada menos que 22,6% das cestas do Bucks vinham de passes de Middleton. É um número altíssimo, especialmente para quem não é criador de jogadas o tempo todo.
Suas assistências não são eletrizantes como as de Luka Doncic nem surgem depois de passar voando por três defensores como Russell Westbrook, mas Middleton desenvolveu seu controle de bola a ponto de ficar confortável navegando entre corta-luzes e brincando com o medo constante da defesa de que ele pode simplesmente parar a qualquer momento para um arremesso. Para qualquer jogador que desenvolve esse talento é necessária só mais uma coisa para brilhar, alguém que faça excelentes corta-luzes.
E é aí que entra Giannis. Parece contra intuitivo, mas o técnico Budenholzer descobriu nesta última temporada que para envolver seu MVP mais vezes no jogo, especialmente em momentos decisivos da partida, o ideal era TIRAR a bola da mão dele. Ao invés de só congestionar o garrafão, os adversários agora teriam que marcar Middleton, Jrue Holiday e as ações criadas pelos potentes corta-luzes de Giannis, que usava dos movimentos para ganhar espaço e tração rumo ao garrafão. O jogo que chamou a atenção de todos para essa mudança aconteceu lá em Janeiro, quando Giannis fez 36 corta-luzes em um duelo contra o Brooklyn Nets. Nas últimas duas temporadas, seu recorde tinha sido 21. Foi um ponto fora da curva, aquele acabou sendo seu máximo no ano, mas mostrou uma tendência e um experiento. Outro número mostra isso, o das screen-assists. Esse é o termo criado para designar os corta-luzes (screens) que criam o espaço para arremessos certos. Em 2019-20, Giannis teve média de 2,4 screen-assists por jogo (55º da NBA), nesta última temporada a média subiu para 2,8 (41º no geral da liga). Nos Playoffs, o número saltou ainda mais: 3,4 arremessos certos em média vinham diretamente de corta-luzes de Giannis, décima melhor marca da pós-temporada.
Se a parte tática e estatística dessa mudança de uso de Giannis não te fisgou, leve para o lado psicológico. Giannis vinha de duas temporadas onde venceu com alguma tranquilidade o prêmio de melhor jogador da NBA e então seu técnico pede para que ele fique menos com a bola na mão e passe a fazer coisas que são vistas no basquete como “trabalho sujo”. Giannis não só aceitou como o fez em altíssimo nível, cedendo protagonismo para Middleton no caminho. “Tenho o resto do jogo inteiro para ser o cara”, disse o grego durante os Playoffs, indicando que não se vê rebaixado ao ver o companheiro, amigo e cara que ele queria matar há alguns anos ganhando os holofotes nos momentos críticos das partidas.
A história da evolução de Middleton também é um pouco curiosa. No fim da temporada 2014-15 ele foi meio que obrigado a assumir um papel maior no sistema ofensivo do Bucks após algumas lesões na equipe e uma troca que levou embora Brandon Knight. Nessa nova função ele passou a driblar mais e criar mais jogadas ao invés de só se movimentar sem a bola em busca de um arremesso. Ao Milwaukee Mag, em outra matéria de Eric Nehm, dessa vez em uma conversa antes do início da temporada 2015-16, o ala disse: “Acho que ano passado fui forçado a assumir aquele papel. Neste ano isso não deve acontecer, não serei mais colocado nessa função de forçar arremessos. Com Greg Monroe e Jabari Parker de volta, devo voltar ao meu papel de jogar a partir das jogadas dos outros”.
Ele não poderia estar mais errado em sua previsão. O técnico Jason Kidd deve ter gostado do que viu, porque Middleton seguiu como um dos focos do ataque do time, comandando pick-and-rolls e achando passes para seus companheiros. Não foi fácil nem isento de turnovers estranhos, mas eventualmente ele foi ficando mais confortável na função. Em 2014-15, Middleton fazia 0,64 ponto por lance em que finalizava após comandar um pick-and-roll, em 2015-16 o número pulou para 0,74 ponto. Nesta última temporada? 0,95 ponto por pick-and-roll, número igual ao de caras como Trae Young e Donovan Mitchell.
Muitos desses pontos chegam em arremessos de meia distância, um tipo de jogada que também passou por adaptações ao longo da carreira de Middleton. Na Era Kidd, a maior parte dos arremessos de Middleton vinham em Long 2s, aqueles tiros de meia distância mais próximos da linha dos 3 pontos. Em algumas temporadas, 32% dos arremessos tentados pelo ala vinham dessa distância. Só que quando Budenholzer chegou para assumir o time, a mentalidade toda mudou. O técnico queria abraçar o basquete contemporâneo e tirar os arremessos de meia distância da dieta do Bucks, focando tudo em bolas de 3 pontos e bandejas.
A estratégia revolucionou o time, mas Middleton não foi totalmente convertido. Cerca de 39% de seus arremessos ainda foram de meia distância em 2018-19, primeiro ano de Budenholzer no comando. Muito para o gosto de um Daryl Morey, mas bem menos que a marca de 52% (!) das temporadas anteriores. Middleton não se adaptou logo de cara e chegou a ficar no banco em quartos períodos importantes, mas no fim tudo deu certo. Middleton topou ser um pouco mais moderno e trocou os Long 2s por bolas de meia distância mais próximas da linha de lance-livre, e o treinador admitiu no ano seguinte que era exagero tirar um jogador totalmente da sua zona de conforto. O resultado final é que alguns dos maiores arremessos do time nos Playoffs vieram dessa posição. Como o FiveThrityEight já tinha avisado, Middleton é o melhor jogador no pior arremesso da NBA:
No caso de Giannis, vale lembrar uma outra mudança que ajudou ele a encontrar sua identidade. Enquanto o grego ficava monstruosamente mais forte, a NBA ia se tornando uma liga cada vez mais baixa. O sucesso que Draymond Green no meio da década passada é o símbolo maior de um basquete baixo que exige versatilidade dos jogadores de garrafão, cenário perfeito para Giannis parar de brigar por minutos com caras como Middleton e assumir seu lugar como um ala/pivô da posição 4. Foi assim que jogou e brilhou nos últimos três anos. Como no caso de Chris Paul que abriu o texto, é ótimo quando o jogador chega na liga justo quando ela passa por mudanças táticas que pedem o que ele pode oferecer. Com Giannis não foi tão imediato, mas logo tudo se alinhou.
O que mais assusta nessa história toda é que talvez Giannis nem tenha ainda se encontrado totalmente. O cara já venceu tudo o que se pode vencer na NBA, mas às vezes parece que ainda está só começando a descobrir todo seu potencial. Algumas assistências que ele mandou nesses Playoffs mostram uma capacidade de comandar o ataque a partir de passes de dentro do garrafão que podem revolucionar seu jogo, assim como o desenvolvimento dos arremessos de meia distância e da linha do lance-livre, que eram quase que garantia de ao menos 40 pontos quando resolviam entrar. Sem contar os experimentos de Giannis como pivô que podem ser um dos caminhos para quando ele não conseguir mais dar piques atrás de piques em direção à cesta.
A história da dupla Giannis e Middleton serve de exemplo para técnicos que buscam ajeitar seu time ou General Managers que estejam construindo elencos. É também um exemplo para quem está loucamente analisando o Draft desta quinta-feira (29). Os jogadores estão (ou ao menos PODEM estar) em constante evolução. Esses caras aprendem coisas novas, se adaptam a mudanças no basquete, aos companheiro ou a novos planos táticos. E quer saber? Esse texto não seria muito diferente se o Phoenix Suns tivesse sido campeão, a história deles passa muito por Devin Booker evoluindo de mera arremessador para pontuador versátil, de como DeAndre Ayton descobriu como atacar a cesta a partir da chegada de Chris Paul e de como ambos os jovens demoraram um pouco, mas se acharam na defesa.
Talvez o próximo campeão seja alguém que a gente já acha que conhece bem, mas que só agora está dominando algo que nunca o vimos fazer antes.