Por muitos anos a NBA se manteve distante das apostas esportivas, temendo os riscos que qualquer envolvimento poderia representar para a imagem e integridade da liga. A resistência era tamanha que a mera ideia de ter um time em Las Vegas, a meca das apostas, era impensável. A sombra do escândalo envolvendo o ex-árbitro Tim Donaghy, que apostava em jogos que ele próprio apitava, e cuja solução muitos ainda acham que deixou a desejar, era o grande símbolo deste receio.
Mas o mundo mudou. Em novembro de 2014, em um ato hoje considerado histórico para o setor das apostas nos EUA, o comissário da NBA Adam Silver publicou um artigo no The New York Times defendendo a legalização e regulação das apostas esportivas em todo o país. O apelo, que contou com o apoio de muita gente grande, deu certo e as apostas foram finalmente legalizadas em inúmeros estados americanos, logo se espalhou pela internet e hoje temos até quatro ginásios da NBA com locais para aposta lá mesmo, para torcedores tentarem fazer uma grana no jogo que vão assistir. Hoje, Las Vegas tem um time da WNBA, já sediou o All-Star Game, é palco anual da Summer League e se tornou casa da nova Copa NBA. A expansão para 32 times é questão de tempo e um time na cidade é dado como certo. O site da NBA tem uma página especial com dicas e discussões sobre apostas e nesta última semana foi anunciado que em breve o League Pass, serviço oficial de streaming da liga, terá a opção de aposta em tempo real enquanto você assiste as partidas. A transição de uma postura de aversão para a de aceitação reflete uma realidade que todas as modalidades parecem estar descobrindo: as apostas são inevitáveis. O mundo quer apostar e tem muito dinheiro rodando com ou sem o aval das ligas, times ou atletas, a decisão é só a de participar e tirar uma parte disso ou ficar de fora. A NBA mergulhou de cabeça.
Mas o mergulho não vem sem consequências. No nosso texto sobre arbitragem falamos sobre Rudy Gobert recebendo uma multa de 100 mil dólares –a maior permitida na NBA– por fazer o famoso sinal de “dinheirinho” aos árbitros em um jogo e depois insinuar que eles poderiam estar envolvidos em esquema de aposta. Depois foi a vez de JB Bickerstaff, técnico do Cleveland Cavaliers, reclamar da pressão de apostadores nas arquibancadas, atrás dele, cobrando por uma diferença maior ou menor no placar para cobrir sua aposta. Ele também disse que chegou a receber mensagens de apostadores que descobriram seu número e apelou por proteção:
“Temos que tomar cuidado com o quão perto deixamos isso chegar do jogo e com a segurança das pessoas envolvidas nele, porque isso tem peso. Muitas vezes, pessoas que estão apostando contam com esse dinheiro para a conta de luz ou para seu aluguel, aí as emoções tomam conta. Acho que estamos caminhando em uma linha muito tênue e temos que ser extremamente cuidadosos ao proteger todos os envolvidos”
O técnico Erik Spoelstra, do Miami Heat, quando perguntado sobre o assunto, lembrou de um torcedor que precisou ser retirado do ginásio após um ataque de fúria contra o banco do time porque Victor Oladipo não tentou um arremesso de 3 pontos no fim de uma partida que já estava decidida. O armador Tyrese Haliburton comentou que já conversou com um psicólogo sobre como ele às vezes sente que só se tornou uma plataforma para outros faturarem: “Ninguém se importa em ouvir como nos sentimos. Para meio mundo eu só estou ajudando eles a fazer dinheiro no DraftKings ou qualquer coisa do tipo. Sou um ‘prop’. A maior parte do que recebo nas minhas redes sociais é sobre isso”. O termo ‘prop‘ é usado para designar apostas feitas no desempenho de apenas um jogador, não no resultado da partida.
Bastavam essas declarações para todos acenderem seus alertas sobre a relação da NBA com o mundo das apostas, mas aí veio o caso Jontay Porter para piorar tudo. Na noite de segunda-feira (25), o Woj reportou na ESPN que a liga estava investigando o pivô do Toronto Raptors, irmão de Michael Porter Jr, do Denver Nuggets, por um possível envolvimento em um esquema ilegal. Casas de apostas alertaram as autoridades sobre atividades pouco usuais envolvendo números do pivô do Raptors: no dia 26 de Janeiro, em um jogo contra o LA Clippers, foi registrado um volume acima do normal de dinheiro em apostas nos números individuais de Porter. Todas elas contavam que ele faria MENOS do que os números dados pela casa de 5,5 pontos, 4,5 rebotes, 1,5 assistências e 0,5 bola de 3 pontos. Na hora do jogo, Porter jogou apenas 4 minutos e saiu dizendo que havia sentido dores no olho que ele havia lesionado alguns dias antes. Porter acabou o jogo sem pontos, com 3 rebotes e 1 assistências, premiando todos que apostaram no “under” em todas as categorias. No dia seguinte, ainda segundo a matéria do Woj na ESPN, o DraftKings disse que uma aposta nas bolas de 3 de Porter foi a mais lucrativa do site naquele dia.
No dia 20 de Março, contra o Sacramento Kings, Porter jogou apenas TRÊS minutos antes de sair dizendo que estava se sentindo mal. Ele não marcou pontos e pegou apenas dois rebotes. No dia seguinte, de novo, o DraftKings reportou que o maior lucro do dia havia sido em uma aposta de que Porter ficaria abaixo dos números propostos pelo site. Uma das casas de aposta disse que vários apostadores tentaram colocar até 20 mil dólares nessas apostas em Porter, o que chamou atenção já que normalmente existe um limite de até 2 mil dólares que já é raro de ser alcançado.
A NBA está investigando o caso e Porter não jogou os últimos jogos do Raptors por “motivos pessoais”. É um desses momentos onde fazemos toda a força do mundo para focar na presunção de inocência, mas é difícil pensar em um cenário onde Porter não tenha culpa no cartório. O hobby de todo mundo agora é observar todos os segundos da transmissão desses jogos e desconfiar da cara que ele faz depois de uma bola de 3 ou da sua lesão no olho onde o olho parece normal. É tudo o que a liga NÃO queria, uma crise acontecendo justo quando o público, jogadores, técnicos e imprensa parecem sem paciência para o crescimento das apostas no mundo esportivo.
Dito isso… talvez o escândalo não seja algo tão ruim assim. Veja o que Adam Silver escreveu no seu artigo no The New York Times que citei no começo do texto: “Nessas mudanças é preciso incluir: monitoramento obrigatório e denúncias de apostas suspeitas; protocolo de licenciamento para garantir que os operadores são legítimos (…) Que fique claro, qualquer mudança deve garantir a integridade do jogo. Uma das mais importantes responsabilidades como comissário da NBA é proteger a integridade do basquete profissional e garantir a confiança do público na nossa liga e no esporte. Sou contra qualquer ação que vá contra esses objetivos. Mas acredito que apostas esportivas devem ser trazidas do subterrâneo para a superfície onde pode ser monitorada e regulada”.
O que aconteceu no caso de Jontay Porter é tudo o que Adam Silver pediu em caso de crise: as casas de apostas são enormes, reguladas e funcionam dentro de um sistema com denúncia de cada movimento suspeito. Assim que as apostas estranhas aconteceram, todos foram acionados e a NBA foi capaz de agir. O maior escândalo da história da liga, o de Tim Donaghy, aconteceu “no subterrâneo”, para usar a terminologia do comissário, este acontece a luz do dia. De certa forma, o escândalo de Porter é uma demonstração de que não é tão fácil manipular o jogo e sair impune. Em caso de comprovação, é provável uma punição exemplar que encerre a carreira do jogador.
O assunto é delicado e a NBA, mesmo confiante de que sua integridade está intacta, precisa dar mais atenção ao incômodo que o tema tem causado por todos os lados. As apostas esportivas estão no meio de uma gangorra ainda equilibrada onde uma quantidade enorme de pessoas usa, gosta e se diverte e outras tantas que condenam moralmente a atividade. Há ainda muitos veículos, como nós aqui no Bola Presa, que tiram sustento de um bom patrocínio vindo de casas de apostas. É preciso saber navegar entre esses públicos e interesses. Veremos como Adam Silver lida com sua primeira crise deste tema que ele mesmo quis trazer ao mundo quase dez anos atrás.