Em pleno domingo à noite a NBA poderia estar dormindo, curtindo sua pré-temporada ou promovendo a viagem de diversos de seus times ao redor do mundo para amistosos. Ao invés disso, porém, a liga estava preocupada em redigir uma declaração cuidadosa para tentar resolver um problema diplomático, comercial e cultural que pode afetar a imagem da liga no mundo todo.
Tudo começou quando Daryl Morey, General Manager do Houston Rockets, decidiu publicar uma mensagem de apoio aos protestos que acontecem em Hong Kong há meses: “Lute pela liberdade, apoie Hong Kong”.
O estrago foi imediato. Logo ele apagou a mensagem e o dono da franquia, Tilman Fertitta, postou uma mensagem dizendo que Morey não falava em nome do Houston Rockets. Foi como um copo d’água tentando apagar um prédio em chamas. Não demorou e o fogo se alastrou China afora: a Liga Chinesa de Basquete, presidida por ninguém menos que Yao Ming, anunciou corte de relações com o Rockets. A Tencent, detentora dos direitos digitais da NBA no país, disse que não iria mais cobrir nada relacionado ao time e ofereceu que os chineses que assinaram o pacote para ver jogos apenas da franquia poderiam mudar de time. Empresas parceiras do Rockets, que tem a maior torcida da NBA no país com um mercado estimado de 500 milhões de fãs, também entraram em contato para cortar ações com o time. Para se ter uma ideia do mercado chinês, a Nielsen diz que a audiência do Jogo 6 da Final da NBA foi de 21 milhões de pessoas na China contra 18,3 milhões nos próprios Estados Unidos.
Pode parecer exagero para quem vê de longe, mas a questão territorial na China é assunto complexo, pesado e um tabu que ninguém pode sair quebrando por aí. Os protestos em Hong Kong começaram há alguns meses após a aprovação de uma nova lei que facilitaria a extradição de cidadãos de Hong Kong para a China continental. Desde que foi devolvida pelos britânicos em 1997, Hong Kong é considerada uma “região administrativa especial” chinesa que opera sob a política do “um país, dois sistemas”. Ela tem certa autonomia econômica, legal e administrativa, mas ainda responde à China em inúmeras áreas. A população de Hong Kong, muito mais ocidentalizada que o resto do país, viu a lei de extradição como uma forma de coibir protestos e de possivelmente punir opositores ao regime chinês, que poderia levar adversários políticos ao continente sob qualquer alegação. Como nos acostumamos a ver mundo afora nesta década, os protestos cresceram, perderam controle e hoje já vão além do pedido de revogação de uma lei específica. O ponto mais grave aconteceu na última semana, quando protestos gigantes tomaram conta da ilha justamente durante o aniversário de 70 anos do regime comunista chinês. Enquanto Pequim celebrava com uma parada militar gloriosa, um manifestante foi atingido por uma bala de verdade pela primeira vez na região autônoma.
Mesmo que Daryl Morey não tenha diretamente apoiado a independência completa de Hong Kong, com sua mensagem podendo ser interpretada apenas como um apoio ao direito do protesto ou mesmo ao vago de pedido de “mais liberdade” na região, ela falou diretamente com quem deseja essa separação e com acha que isso é uma ofensa ao país. Na noite de domingo o manager se pronunciou após a polêmica:
2/ I have always appreciated the significant support our Chinese fans and sponsors have provided and I would hope that those who are upset will know that offending or misunderstanding them was not my intention. My tweets are my own and in no way represent the Rockets or the NBA.
— Daryl Morey (@dmorey) October 7, 2019
“Eu não tinha intenção de ofender qualquer torcedor do Rockets ou amigos na China. Estava apenas dando voz a um pensamento, baseado em uma interpretação de um evento complicado. Tive muita oportunidade desde então de ouvir e considerar outras perspectivas. Sempre apreciei o apoio significativo de nossos fãs e patrocinadores chineses e espero que estes que estão chateados saibam que não foi minha intenção ofendê-los. Meus tuítes são apenas meus e não representam o Rockets ou a NBA”, escreveu o cartola.
A mensagem é curiosa porque ele não pede desculpas pelo tuíte original, apenas diz que não quis ofender ninguém. Ele também afirma que teve a chance de “considerar outras perspectivas”, mas não conta se mudou de ideia sobre o tema. A sensação de em cima do muro se repetiu minutos depois, quando a NBA publicou seu próprio comunicado sobre o tema:
NBA statement on @dmorey tweet pic.twitter.com/rMWFu2EILR
— Marc J. Spears (@MarcJSpearsESPN) October 7, 2019
“Reconhecemos que as visões expressadas pelo General Manager do Houston Rockets Daryl Morey ofenderam profundamente muitos de nossos amigos e fãs na China, o que é lamentável. Mesmo que Daryl tenha deixado claro que seu tuíte não representa o Rockets ou a NBA, a liga tem em seus valores o apoio a qualquer um que queira compartilhar suas visões em assuntos importantes a eles. Temos imenso respeito pela história e cultura da China e esperamos que os esportes e a NBA possam ser usados como uma ponte para unir diferenças culturais e pessoas”, disse a mensagem publicada pelo chefe de comunicação Mike Bass.
A verdade é que a NBA não poderia vencer essa batalha: só declarar apoio total a Daryl Morey significaria alienar um mercado enorme em nome de uma causa que sequer diz respeito à liga. Punir o manager seria um tiro no pé que minaria anos e anos de trabalhos que construíram a imagem da liga mais progressista dos EUA e uma das únicas que sempre liberou e até incentivou seus membros a se expressarem. O resultado é essa mensagem que reconhece a dor da China ofendida, tira o seu da reta mas reforça que Morey pode, como qualquer outro, dizer o que quer sobre um tema que ache importante. Só que estamos nos anos 2010 e ninguém pode simplesmente não assumir um lado sem ser massacrado por todas as partes.
Pré-candidato democrata à presidência em 2020, Beto O’Rourke e o senador republicano pela Flórida Marco Rubio atacaram a NBA por “priorizar lucro sobre direitos humanos” e por só se posicionar quando “se fala sobre política e questões sociais dos EUA”:
I thought the @NBA was proud to be the “wokest professional sports league”?
I guess that only applies to speaking out on American politics & social issues. https://t.co/iS7uhqIAfA
— Marco Rubio (@marcorubio) October 7, 2019
The only thing the NBA should be apologizing for is their blatant prioritization of profits over human rights. What an embarrassment. https://t.co/bbiwCBTwc1
— Beto O'Rourke (@BetoORourke) October 7, 2019
Jornalistas americanos também correram para condenar a “salada de palavras” da liga. Outros, como o colunista da Time David French, disse que “a opressão comunista chinesa não é uma mera ‘divisão cultural'”. Foi quase unânime a posição de que a liga se acovardou diante de um tema delicado e que colocou o negócio à frente dos valores. Não é nem a primeira vez que o assunto vem à tona: em 2018 a Slate publicou um texto onde criticou a NBA por sediar clínicas e escolas de basquete em regiões da China acusadas de perseguir violentamente comunidades muçulmanas.
Houve também descontentamento com a tradução da declaração da NBA. Enquanto a versão em inglês usa apenas a palavra “lamentável”, a versão divulgada na China fala em declaração “inapropriada” e “sentimentos feridos”, expressão sempre resgatada pelo Partido Comunista quando autoridades internacionais cometem gafes ao tratar de temos delicados do país.
Os chineses estão felizes, então? Uma pesquisa nas redes sociais deles mostra que as reações mais comuns à declaração da NBA foram palavrões, exigências para que a NBA afirme que Hong Kong é parte da China e pessoas dizendo que a declaração de Morey é equivalente às falas racistas que forçaram a expulsão de Donald Sterling da liga há alguns anos. Nem o pedido de desculpas de James Harden, estrela do time e um dos maiores ídolos do basquete no país, serviu para amenizar o clima:
Most common reactions on Chinese social media:
1. Curse words
2. The NBA must post on Twitter and Instagram to affirm that HK is part of China
3. Morey's words are the equivalent of making racist remarks in the U.S. Morey must be sanctioned the same way as Donald Sterling. pic.twitter.com/CQ0mvKucpg
— Yiqin Fu (@yiqinfu) October 7, 2019
Em 2014 a NBA enfrentou uma inesperada e gigante crise interna: gravações de Donald Sterling, dono do Los Angeles Clippers, com declarações incontestavelmente racistas foram publicadas pelo TMZ. Não que o mundo não conhecesse o cara, mas ter os áudios explícitos pra todo mundo ouvir era demais para seguir escondendo sob o tapete. Para piorar, a NBA estava sendo comandada pelo novo comissário Adam Silver há menos de 4 meses, ele teria a habilidade política de lidar com o fato? Afinal o comissário não manda na NBA, ele é apenas o nome que representa e trabalha para os 30 donos das franquias da liga. Silver teria que agir contra um de seus 30 chefes em nome dos outros 29 que desejavam responder à crise mas sem abrir precedente para que eles mesmos estivessem do outro lado um dia.
A decisão de Adam Silver foi energética e ditou o tom que seguiria a usar nos próximos anos: ele BANIU Sterling de qualquer atividade do Los Angeles Clippers e da NBA por toda a vida, obrigando o bilionário a vender a franquia. Ele saiu com alguns bilhões a mais no bolso, é verdade, mas a liga limpou sua imagem, se livrou de uma dor de cabeça e compensou anos de olhos fechados ao comportamento do seu dono mais controverso.
Banir o racista com o discurso de que “não há espaço para isso em nossa liga” ditou uma fase de NBA mais ativa politicamente nos anos seguintes. Ainda em 2014 os jogadores foram liberados para não usarem os uniformes durante hino e aquecimento de jogos quando alguns decidiram usar camisetas com os dizeres “eu não consigo respirar” em referência às últimas palavras de Eric Garner, negro vítima de violência policial nos EUA. Em 2016 foi a vez da NBA se tornar a primeira liga americana a fazer parte da Parada Gay de Nova York. Adam Silver também surpreendeu ao conversar diretamente com os atletas e dar liberdade de decisão a eles na polêmica sobre se ajoelhar ou não durante a execução do hino americano.
A liga também foi ativa e usou a voz do próprio Adam Silver para atacar a decisão do presidente Donald Trump de banir a entrada nos EUA de imigrantes de diversos países, a maioria muçulmana. “As restrições do governo me deixam preocupado. A decisão vai contra valores e ingredientes fundamentais do que faz a NBA ser grande, que é a chance de ter os melhores do mundo vindo até aqui”. Na época dezenas de jogadores, incluindo LeBron James, se posicionaram contra a decisão e a liga chegou a entrar em contato com o Departamento de Estado dos EUA para checar se Luol Deng e Thon Maker, jogadores de origem sudanesa, poderiam ter problemas em retornar ao país após viagens ao Canadá para enfrentar o Toronto Raptors. E isso sem contar as inúmeras entrevistas dos técnicos Steve Kerr e Gregg Popovich, sempre dispostos a dar sua visão política, crítica (e sempre bem articulada) de todos os grandes eventos políticos e sociais americanos. Punição pra eles só quando o assunto era crítica de arbitragem, claro.
Na temporada passada foi a vez da NBA encerrar o contrato com a empresa terceirizada da Turquia que se recusava a postar fotos e até estatísticas de Enes Kanter, pivô hoje do Boston Celtics e inimigo público do governo de Recep Erdogan. “Apoiamos totalmente nossos jogadores a usarem suas plataformas para defender seus princípios e crenças”, disse declaração da liga.
Há algo em comum em todos esses casos: concordância. Desde Sterling até Trump, víamos donos de times, a direção da NBA, jogadores e patrocinadores na mesma página. Até podem existir eleitores do republicano entre os atletas (alô, Spencer Hawes!), mas são minoria e não parecem dispostos a defender os decretos mais agressivos do presidente. Outros jogadores turcos podem não se bicar com Kanter e algumas empresas ligadas ao campeonato podem não estar entusiasmadas com os protestos e falas políticas dos jogadores, mas nunca era algo grande o bastante para alguém ter disposição de gerar uma crise.
O caso deste fim de semana não entra nesse grupo. A China se tornou parte enorme na equação da NBA e ela não ficou satisfeita com a declaração de Daryl Morey. E mais, agora a NBA tem um pedaço da China entre os seus: novo dono do Brookly Nets, Joe Tsai nasceu em Taiwan e viveu boa parte da vida na China. Ele também publicou uma declaração no domingo se posicionando a favor de qualquer um dar suas opiniões, mas dizendo que Daryl Morey tocou num assunto delicado demais. Ele se alonga contando como a História fez o separatismo e a intervenção externa se tornarem tabu no país e finaliza dizendo que vai “continuar a ser um dono de time vocal em temas importantes para a China”. O país, além dos seus bilhões de dólares e telespectadores, tem um dos seus entre as 30 pessoas que mandam na NBA.
NEW: The new owner of the Nets, Joe Tsai, has issued an open letter about the Morey situation: https://t.co/JZAy7EERQg pic.twitter.com/ffVgJMQ3Qx
— Sopan Deb (@SopanDeb) October 7, 2019
Depois de anos defendendo a voz de seus membros, a NBA não poderia simplesmente condenar Daryl Morey, especialmente por sua vaga mensagem falar apenas em liberdade, um conceito que nem com muito malabarismo a NBA poderia condenar. Protestos são caóticos, motivações das multidões são confusas e às vezes contraditórias e seus resultados práticos, como sabemos bem, imprevisíveis. Se pronunciar sobre um tema complexo com um mero slogan trouxe o pior de todos os lados para Morey. Podemos ver o caso como um mal entendido cultural ou ele fere princípios que a NBA precisa defender para o bem de sua imagem e funcionamento?
O tema traz à tona até a discussão sobre a existência de uma posição oficial de empresas sobre questões políticas e sociais. A NBA deveria ter uma posição oficial sobre a China, Direitos Humanos, independência de Hong Kong ou qualquer outra coisa? Ou ela deveria ter uma posição apenas sobre a sua própria política? O comunicado oficial pisa mesmo em ovos bilionários e tenta minimizar danos em sua tradução, mas ao menos reafirma seus valores ao não punir ninguém nem tirar de Daryl Morey o seu direito de fala. O comunicado oficial também não tem desculpas oficiais, então não repete casos icônicos como o da GAP, que foi forçada a pedir desculpas por vender uma camiseta com um mapa chinês que não incluía Taiwan; ou a rede de hotéis Mariott, que também precisou pedir perdão oficial por incluir o Tibete, região chinesa que luta por independência, como uma opção de país numa pesquisa de seu site.
Em entrevista no Japão, onde a NBA sedia jogo do próprio Houston Rockets, Adam Silver diz que “o impacto econômico da crise já é bem claro”, mas reafirma que a liga está, sim, apoiando o manager.
Por enquanto Daryl Morey parece salvo no seu emprego, mas o The Ringer afirma que sua saída foi ao menos discutida dentro do Houston Rockets. Sua demissão seria algo curioso de acompanhar: de um lado é como um All-Star dos cartolas disponível e solto no mercado, do outro é alguém que vai levar consigo todo o desgosto de um mercado central. Quem iria ter a coragem de contratá-lo neste momento? Alguma polêmica na semana que vem vai engolir o assunto? Algum jogador, muitos com contratos e viagens milionárias anuais para a China, vai se pronunciar nem que apenas pelo direito de Daryl Morey se expressar sem represálias?
A NBA fez a sua parte e tentou responder ao caso uma maneira que respeitasse seus princípios sem cortar laços com um país e um público que traz valores diferentes. Nem sempre o malabarismo é possível e nem sempre todos saem ilesos, mas é preciso tentar. A diplomacia bem feita às vezes traz mesmo a sensação de que todos perderam um pouquinho.