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Nesta edição discutimos o capítulo disponibilizado abaixo do livro Onze Anéis, do técnico Phil Jackson. O trecho aborda a temporada 2003-04 do Los Angeles Lakers e em especial a relação do treinador com Kobe Bryant, que naquele ano foi acusado de estupro, brigou com Shaquille O’Neal, ameaçou jogar no Los Angeles Clippers e armou a saída do treinador da equipe. Discutimos como o técnico relata tudo isso e como ele lida com a raiva que sentiu ao longo do ano.
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DEBATE AO VIVO
No dia 29 de Outubro fizemos um Debate no YouTube para ler comentários e mensagens enviadas pelos assinantes sobre o capítulo:
O técnico Phil Jackson sempre foi famoso por distribuir livros para seus jogadores ao longo das temporadas. Ele tentava perceber as características da personalidade dos atletas, no que se interessavam e então o treinador pensava em um livro que se encaixaria naquele momento da vida do comandado. Muitos adoravam a interação, outros tantos nunca tocavam o livro, mas isso nunca impediu o Zen Master de tentar.
A paixão de Phil Jackson pelos livros fez dele também um escritor. Ele já publicou o Cestas Sagradas, uma união do seu espiritualismo com ensinamentos do basquete; More Than a Game, ao lado de Charley Rosen, sobre sua jornada no basquete sobre a amizade com escritor; The Last Season fala da temporada 2003-04 no comando do Lakers; e finalmente Eleven Rings traz casos e histórias dos seus ONZE títulos treinando Chicago Bulls e Los Angeles Lakers.
Em tempos de palestrantes motivacionais e “life coaches“, o discurso de Phil Jackson unindo espiritualidade, basquete e lições para a vida pode soar batido ou forçado, mas em meados dos anos 1990 era quase revolucionário. Era um homem, num ambiente competitivo e másculo, dando valor para a espiritualidade e tentando encontrar significado maior meros em jogos de basquete. Embora muitas de suas conquistas envolvam o simples fato dele estar nos times de Michael Jordan, Scottie Pippen, Shaquille O’Neal e Kobe Bryant, ele conseguiu imprimir no imaginário de todos a ideia de que um técnico culto, inteligente e profundo pode ser essencial para tirar o máximo desses jogadores.
Nesta edição do Clube do Livro vamos fugir das parte muito espirituais, mas ainda vamos ter uma história sobre monges para discutir. Escolhemos o Capítulo 18 de Onze Anéis, onde Phil Jackson relembra a temporada de 2003-04 no comando do Los Angeles Lakers, praticamente um resumo do seu livro The Last Season. A passagem relembra o caso de acusação de estupro contra Kobe Bryant, as brigas via imprensa do jogador com Shaquille O’Neal, o desafio de integrar Gary Payton e Karl Malone no grupo e como foi ver seu período com o Lakers acabar de maneira melancólica.
Escolhemos discutir um capítulo ao invés de toda a obra por ser mais fácil (e legal) de compartilhar o conteúdo gratuitamente com vocês, além de facilitar a participação de todos. Se já foi difícil para muitos encontrar tempo para assistir às três horas de Hoop Dreams na última edição, o que dizer de um livro inteiro em poucas semanas? De qualquer forma, quem quiser tudo pode comprar o Eleven Rings na Amazon por menos de 20 reais em versão digital e em português.
ONZE ANÉIS | CAPÍTULO 18 – A SABEDORIA DA RAIVA
Era para ser um verão tranquilo. Eu estava feliz por ter deixado a temporada de 2002-03 para trás enquanto atravessava as Montanhas Rochosas de moto no final de junho. O ano tinha sido difícil e marcado por muitas lesões – no dedão do pé de Shaq, no joelho de Kobe e no pé de Rick Fox. O time chegara mancando às finais e quase não sobrevivera à esgotante primeira série contra os Timberwolves. Em relação a mim, o clímax dos problemas de saúde ocorreu durante a semifinal contra o San Antonio Spurs. Foi quando soube que uma de minhas artérias coronárias estava bloqueada em 90% e que me fariam uma angioplastia de emergência. Um procedimento cardíaco com um final mais feliz do que a disputa com os Spurs. Pela primeira vez nos meus quatro anos com os Lakers não chegamos às finais da Conferência Oeste e perdemos a chance de conquistar outro anel.
Claro que me determinei a deixar essa temporada para trás. Fazia alguns anos que não me sentia tão bem como depois daquela cirurgia, e enquanto atravessava as montanhas refletia sobre o capítulo seguinte. Nós havíamos perdido Robert Horry para os Spurs depois da temporada, mas tínhamos adquirido Gary Payton e Karl Malone, um futuro integrante do Hall da Fama. Como quintessência do ala de força, Malone podia fazer mais de 20 pontos e pegar oito ou 10 rebotes por jogo, e ocupava grande parte do garrafão com o seu considerável tamanho. Payton não era apenas um dos melhores armadores da liga, mas também tenaz na defesa (seu apelido era “a Luva”) e uma esperança para arrefecer o ritmo das traquinagens de alguns armadores da liga. O que de certa forma me preocupava era como engrenar esses grandes talentos com Shaq e Kobe sem ferir os egos. De todo modo, isso era um problema positivo e me deixava animado. Fiquei perambulando na moto BMW ao longo de L.A. e Arizona por um bom tempo, e depois subi ao Four Corners até Durango, Colorado, onde encontrei um amigo e um primo. Depois de atravessar a estonteante passagem da montanha até Ouray, a próxima parada seria Eagle, Colorado, uma cidadezinha nos arredores de Vail. Eu pegaria um amigo dos tempos de ensino médio e juntos seguiríamos para um quadragésimo reencontro de escola em Williston, Dakota do Norte. A essa altura nem me passava pela cabeça que alguns dias depois as manchetes de Eagle me envolveriam em um pesadelo de dor e desinformação. Nós dois já tínhamos cruzado Deadwood, Dakota do Sul, e acabávamos de chegar a um motel de minha cidade Williston quando recebi o telefonema. Era uma chamada de Mitch Kupchak para me alertar que Kobe acabara de ser preso em Eagle por suposta agressão sexual.
Sem comunicar para mim ou para qualquer outro membro de nossa equipe, ele programara uma cirurgia no joelho com um especialista de Vail. Pelo que fiquei sabendo, na noite que antecedeu a cirurgia, Kobe levara uma mulher de 19 anos ao seu quarto de hotel, próximo a Edwards, para um sexo “consensual”. No dia seguinte, a mulher queixou-se na polícia de um estupro violento. Observando o desenrolar da trama ao longo das semanas seguintes, era difícil avaliar o que realmente tinha acontecido. Eu não acreditava que Kobe havia cometido um estupro, e, na melhor das hipóteses, a evidência parecia superficial. No dia 18 de julho o acusaram formalmente e ele concedeu uma entrevista coletiva com sua esposa Vanessa. Negou veementemente o estupro, mas admitiu chorando que tinha praticado o adultério com a tal mulher. Ao ouvir a notícia, tentei me comunicar com ele para me solidarizar, mas sem êxito. Era um peso enorme para um jovem que acabara de completar 24 anos e que sempre se gabava com os companheiros que planejava ser monogâmico pelo resto da vida. Ele estava sendo acusado de um crime que poderia colocá-lo atrás das grades por alguns anos. E o pior é que Kobe era meticuloso em relação à sua imagem pública e, da noite para o dia, transformara-se em assunto para os tabloides e as piadinhas dos comediantes de fim de noite.
No que me dizia respeito, o incidente abria uma velha ferida ainda não de todo curada. Fazia alguns anos que minha filha Brooke tinha sido vítima de um abuso durante um encontro com um atleta da faculdade onde estudava. Mas fiquei indeciso e sem saber claramente como reagir. Brooke esperava que eu ficasse com raiva e a fizesse se sentir protegida, mas em vez disso acabei reprimindo a raiva – como fora condicionado a fazer quando pequeno. Na verdade, não havia muito a ser feito, o caso estava nas mãos da polícia, e uma intromissão provavelmente seria ruim e não boa. Enfim, enterrei a raiva e aparentei serenidade. Isso não apenas não trouxe qualquer conforto a Brooke, mas também a fez se sentir vulnerável. (Tanto é que, depois de ter registrado a ocorrência na polícia, ela optou por retirar a queixa.) O incidente com Kobe detonou uma velha raiva ainda não processada e contaminou minha percepção sobre ele. Confidenciei o embate emocional para Jeanie, e ela me surpreendeu com uma visão pragmática sobre a situação de Kobe. Argumentou que se tratava de uma batalha legal e que ele era um dos nossos atletas e uma estrela, ou seja, teríamos que apoiá-lo o máximo possível e ajudá-lo a vencer a batalha. Mas o caminho a seguir ainda não estava claro para mim. Embora soubesse que tinha a responsabilidade profissional de ajudá-lo a atravessar aquela provação, me era difícil reprimir a raiva por conta do ocorrido com Brooke.
Minha luta interna para chegar a um acordo com a raiva me fez lembrar de uma antiga história zen: Certa noite chuvosa dois monges caminhavam de volta para o mosteiro e de repente avistaram uma bela mulher que não estava conseguindo atravessar as poças da estrada. O monge mais velho ofereceu ajuda e a carregou até a beira da estrada. Mais tarde, naquela mesma noite, o monge mais jovem aproximou-se do outro monge e disse: – Senhor, nós somos monges e não devemos tocar nas mulheres. – Sim, irmão – disse o monge mais velho. – Então, por que o senhor carregou aquela mulher até a beira da estrada? O monge mais velho sorriu e respondeu: – Eu a carreguei até a beira da estrada, mas você ainda a está carregando. Fui então o monge mais jovem que com uma ideia fixa na cabeça acabou distorcendo a percepção a respeito de Kobe na temporada 2003-04. Fiz de tudo para dissipá-la, mas a raiva se manteve latente. Infelizmente, isso deu o tom para grande parte da estranheza que se seguiu.
Claro, o suposto crime de Kobe e minha reação a isso não foram os únicos fatores em jogo naquele ano, pois, quando retornei a L.A. em setembro, uma tremenda tormenta eclodiu na equipe. Teríamos que lidar com as questões legais de Kobe, e ele por sua vez teria passe livre no final da temporada. Isso obrigaria Buss a tomar algumas decisões difíceis sobre o futuro da organização. Os primeiros sinais indicavam que Kobe queria se transferir para uma equipe onde pudesse ser o atleta principal sem ter que competir com Shaq por essa honra. A equipe aparentemente mais interessada na negociação era o nosso adversário local, os Clippers. No início da temporada Kobe tinha feito uma tentativa desajeitada para discutir seu futuro com Mike Dunleavy, o técnico dos Clippers – uma violação das regras da NBA. Mas ainda bem que Mike não deixou que a conversa se estendesse muito. Por outro lado, Shaq não estava lá cheio de amores. Chegou ao centro de treinamento e pediu 60 milhões de dólares por dois anos de contrato a ser terminado em 2006, um preço alto a pagar por uma estrela que começava a perder a forma. Dr. Buss, que sempre era generoso com Shaq, hesitou diante da proposta. E Shaq então agiu exatamente como Shaq. Fez uma enterrada espetacular durante um jogo de exibição contra o Golden State Warriors e gritou para o dr. Buss que estava sentado ao lado da quadra: – E agora, vai me pagar?
Outro aspecto da tormenta era o meu contrato que expirava naquele ano. Encontrei-me com o dr. Buss antes do início da temporada para discutir as linhas gerais de um acordo e decidimos bater o martelo mais tarde em relação aos detalhes. No fundo, eu queria me afastar por um tempo do basquete para clarear a cabeça e me concentrar em outros interesses. A decisão dependeria em grande parte do resultado das negociações com Kobe e Shaq. Se os Lakers tivessem que fazer uma escolha entre as duas estrelas, eu optaria por manter Shaq porque seria mais fácil construir um time competitivo em torno dele. Mas, à medida que a temporada avançou, se tornou claro que o dr. Buss tinha outro ponto de vista. Antes de iniciar o trabalho no centro de treinamento me encontrei com Kobe para avaliá-lo. Ele estava magro, cansado e com uma tensão nunca vista até então. Depois de assegurar que faria o possível para facilitar a estada dele ao longo da temporada, perguntei como estava se sentindo. Ele se fechou em copas porque sua maneira de lidar com o estresse era escapar para dentro de si. Mas ali pelo fim da conversa me olhou com ar determinado e disse que não queria mais aguentar a merda do Shaq. Kobe estava falando sério. Depois de sua estreia bisonha em um jogo de exibição, Shaq o alfinetou dizendo que ele precisava modificar o jogo e confiar mais nos companheiros até que estivesse com as pernas fortalecidas. Kobe rebateu dizendo que Shaq devia se preocupar com a própria posição e não com a posição do armador. Mas Shaq não deixou isso de lado. – É só perguntar para Karl e Gary por que vieram para cá. Por uma única pessoa. Não duas. Uma. Ponto. Mas ele está certo, se bem que não fiz referência alguma sobre a posição dele. O que eu disse é que ele devia jogar em equipe.
Shaq também disse que, se Kobe não gostava de que os outros tivessem opinião própria, ele é que saísse no ano seguinte porque “eu não vou a lugar nenhum”. Alguns dias depois, Kobe replicou em uma entrevista para Jim Gray na ESPN, fazendo uma crítica lancinante sobre a liderança de Shaq. Segundo Kobe, se o time era de Shaq, o próprio Shaq é que precisava dar o exemplo, o que significava não chegar ao centro de treinamento gordo e fora de forma e não culpar os outros pelas falhas do time. – O time não é desse ou daquele apenas nas vitórias – continuou Kobe. – O time é de quem carrega o fardo nas derrotas com a mesma graça de quando ergue o troféu de campeão. Ele acrescentou que, se decidisse deixar os Lakers no final da temporada, uma das razões seria “o egoísmo e a inveja infantis de Shaq”. Shaq ficou furioso e disse para Mitch Kupchak que arrebentaria a cara de Kobe na próxima vez que o visse. Foi quando Mitch e eu decidimos que no dia seguinte deixaríamos Shaq e Kobe separados no centro de treinamento para que nenhum dos dois fizesse alguma coisa estúpida. Fiquei encarregado de Shaq, e Mitch, de Kobe. Mais tarde, em conversa comigo, Kobe me revelou que o que realmente o irritava era o fato de que Shaq marcara a cirurgia no dedão do pé para pouco antes do início da temporada anterior. Para Kobe, isso acabara com nossas chances de ganhar um quarto anel. Era a primeira vez que ele mencionava isso.
Felizmente, as coisas acalmaram depois de uma última rodada de discussões acaloradas. Foi de grande ajuda o convívio com jogadores veteranos como Karl e Gary, que tinham pouca ou nenhuma paciência com esses ímpetos de superioridade juvenil. E tivemos outra ajuda com um começo brilhante de 19 vitórias e cinco derrotas. Infelizmente, um sucesso de curta duração. Em dezembro, Karl machucou o joelho direito durante um jogo em casa contra os Suns e ficou afastado por quase toda a temporada. Como não tínhamos um reserva à altura de Karl, atravessamos uma fase de mal-estar antes de nos recuperarmos no final da temporada. Aparentemente, a estratégia de dar espaço para Kobe não estava funcionando. Quanto mais liberdade recebia, mais agressivo se mostrava. E descontava grande parte da raiva em mim. Se antes adotava uma postura sadomasoquista quando se recusava a fazer o que lhe pedia, agora adotava uma postura puramente sádica. Fazia comentários sarcásticos nos treinos e desafiava minha autoridade na frente dos outros jogadores.
Consultei um psicoterapeuta, que sugeriu que a melhor maneira de lidar com pessoas como Kobe era (1) esquecer as críticas e replicar apenas com comentários positivos, (2) não fazer nada que pudesse constrangê-lo na frente dos companheiros e (3) fazê-lo pensar que as instruções que recebia eram ideias dele. Coloquei em prática algumas sugestões, e isso ajudou um pouco. Mas Kobe estava no modo de sobrevivência barra-pesada e atacava por instinto quando a pressão era insuportável. A certa altura me dei conta de que não havia muito a fazer para transformá-lo e que só poderia mudar as minhas reações aos acessos de raiva de Kobe. Foi uma importante lição para mim. A tarefa mais difícil de qualquer técnico é administrar a raiva. Exige uma grande dose de paciência e gentileza porque a linha divisória entre a intensidade agressiva necessária às vitórias e a raiva destrutiva passa por cima do fio de uma navalha. Em algumas tribos indígenas norte-americanas os anciãos identificavam os guerreiros mais raivosos e os ensinavam a transformar a energia selvagem e descontrolada em fonte de força e poder criativo. Geralmente esses bravos guerreiros tornavam-se os líderes tribais mais eficientes. Era o que eu procurava fazer com os jogadores mais jovens de minhas equipes. A cultura ocidental tende a encarar a raiva como um desvio a ser eliminado. Foi assim que me educaram. Como cristãos devotos, os meus pais a concebiam como um pecado a ser dissipado, mas reprimi-la nunca funciona. Quanto mais se tenta reprimir a raiva, mais virulenta irrompe mais tarde. O melhor a fazer é conhecer a fundo os seus efeitos sobre o corpo e a mente, e transmutar a energia subjacente em algo produtivo. Como escreve o erudito budista Robert Thurman: “O objetivo é certamente conquistar a raiva e não destruir o fogo desbaratado. Ao exercer esse fogo com sabedoria, nós o transmutamos para fins criativos.” De fato, dois estudos recentes publicados no Journal of Experimental Social Psychology estabelecem uma ligação entre raiva e criatividade. Um dos estudos acentua a descoberta das pesquisas no sentido de que inicialmente a raiva aprimorava os debates dos participantes com um salto de criatividade. O outro estudo destaca a descoberta das pesquisas no sentido de que os indivíduos solicitados a extravasar a raiva produziam ideias mais criativas do que os envolvidos com a tristeza e os estados de inércia emocional. Conclusão: a raiva, além de gerar pensamentos mais flexíveis e mais amplos, é uma emoção que energiza e sustenta a continuidade
da atenção necessária na resolução dos problemas. Sem dúvida alguma a raiva concentra a mente. É um sistema de alerta que antecipa as ameaças contra o bem-estar. Sob esse ponto de vista, a raiva se converte em uma poderosa força que acarreta mudanças positivas. Mas apenas a prática – e não um pouco de coragem – torna-nos imunes aos sentimentos desconfortáveis. Sempre me sento para meditar quando a raiva irrompe de dentro de mim. Simplesmente observo-a indo e vindo e indo e vindo. Aprendi paulatinamente ao longo do tempo que, quando se mantém a raiva, que geralmente se manifesta como ansiedade, resistindo ao reflexo condicionado para suprimi-la, a intensidade emocional se dissipa de modo a se poder ouvir a sabedoria que isso tem a transmitir. Sentar-se junto com a raiva não significa ser passivo. Significa se tornar mais consciente e se familiarizar com a experiência interior, de modo a poder agir com mais consciência e compaixão no calor dos embates. Embora não seja fácil, a conduta consciente é a chave para a construção das relações estreitas de confiança, especialmente quando se desempenha o papel de liderança.
De acordo com a mestra de meditação budista Sylvia Boorstein: “A repressão da raiva gera uma rachadura nas relações impermeável aos sorrisos. É um segredo. É uma mentira. A resposta compassiva mantém as ligações vivas. Isso implica dizer a verdade. E dizer a verdade pode ser difícil, sobretudo quando a mente está conturbada pela raiva.” Fiz um trabalho incessante com minha raiva a partir da prisão de Kobe naquele ano que, por isso mesmo, se tornou meu professor titular. No final de janeiro ele apareceu no centro de treinamento com a mão enfaixada e anunciou que não jogaria naquela noite. Estava com 10 pontos no dedo indicador porque tinha enfiado a mão acidentalmente através de uma janela de vidro enquanto carregava caixas na garagem. Recomendei que corresse durante os treinos e ele assentiu, mas não fez. E quando perguntei por que havia assentido com uma mentira respondeu-me que tinha sido sarcástico. Não achei nada engraçado. Que tipo de jogo adolescente aquele cara estava jogando? Fosse qual fosse, eu faria parte disso. Após o treino comuniquei a Mitch Kupchak que precisávamos conversar sobre a negociação de Kobe antes do prazo de meados de fevereiro. – Já não posso mais treiná-lo – justifiquei-me. – Kobe não escuta ninguém. Não consigo chegar a ele. Foi um apelo inútil. Kobe era o prodígio do dr. Buss, e uma negociação era improvável, mesmo que colocasse em risco a chance de outro anel. Com medo de que a jovem estrela se transferisse para outra equipe, o dr. Buss apareceu em Newport Beach alguns dias depois para convencê-lo a permanecer com os Lakers. Obviamente, não participei da reunião, mas logo depois estávamos no ônibus da equipe e Kobe disse para Derek Fisher: – Seu homem não volta no próximo ano. – O tal “homem” era eu. Fui pego totalmente de surpresa. Claro que o dr. Buss lhe passara informações a respeito da equipe – e do meu futuro – antes de me consultar. Foi um golpe duro, e Kobe parecia se divertir com isso.
O rumo dos acontecimentos me fez questionar comigo mesmo se Kobe e o dr. Buss eram confiáveis. Naquele mesmo dia, em conversa com Mitch ao telefone, disse-lhe que ele e o dr. Buss estavam cometendo um grande erro, pois se tivessem que escolher entre Shaq e Kobe era melhor continuar com Shaq porque Kobe se recusava a receber instruções. – Pode levar isso para o dono – acrescentei. Alguns dias depois meu agente me ligou e disse que os Lakers tinham suspendido a negociação do meu contrato. Os Lakers anunciaram a notícia em 11 de fevereiro e os repórteres então perguntaram a Kobe se minha partida afetaria os planos de passe livre dele. – Não me importo – ele respondeu com frieza. Shaq ficou aturdido. Ele não fazia ideia do por que Kobe me jogara debaixo do ônibus depois de tudo que passáramos juntos. Sugeri a ele que não agitasse ainda mais as situações. A última coisa de que o time precisava era outra batalha verbal entre os dois jogadores. Jeanie estava convencida de que os Lakers realmente queriam me prejudicar e talvez estivesse certa. De qualquer forma, o anúncio me soou estranhamente libertador. Já poderia me concentrar no objetivo a ser atingido – ganhar o campeonato –, sem precisar me preocupar com o futuro. A sorte estava lançada.
Após o intervalo do Jogo das Estrelas, o All-Star Game, encontrei-me com Kobe para limpar o ambiente. Obviamente que a minha postura do laissez-faire com ele saiu pela culatra e surtiu um efeito negativo sobre a equipe. Kobe interpretara os meus esforços para lhe propiciar um espaço mais amplo com indiferença. Então, decidi que tomaria outro rumo e trabalharia mais ativamente com ele. O objetivo era ajudá-lo a se concentrar no basquete de maneira que isso se tornasse um refúgio, como tinha sido para Michael Jordan quando a mídia o perseguira pelos problemas com apostas em jogos. Mas a equipe passava por um momento perigosamente frágil. Solicitei a Kobe que deixasse de fazer comentários dissidentes que confundiam os jogadores mais jovens e separavam ainda mais a equipe. A questão do meu contrato estava resolvida, acrescentei, e agora podíamos nos concentrar apenas naquela temporada sem nos preocuparmos com mais nada. – Será que nós dois podemos resolver isso? – perguntei. Ele assentiu com a cabeça. Eu sabia que não era o fim do atrito entre nós, mas era um bom começo.
A questão do término do contrato de Kobe era uma nuvem negra que pairava sobre o time. Ninguém sabia de que lado ele estava. Para complicar, ele se mantinha distante do time de corpo e alma. E quando estava presente se isolava e às vezes retomava o velho hábito de tentar vencer os jogos por conta própria. Não se podia dizer que nos transformamos no “Dream Team IV” previsto no início da temporada pelos comentaristas esportivos. Kobe não era o único problema. Gary Payton estava com dificuldade para se adaptar. Estava acostumado a ter a bola nas mãos a maior parte do tempo e agora a dividia com outros jogadores fominhas de bola. E com isso lutava para encontrar o próprio ritmo. Antes, como armador dos Sonics, sempre procurava a cesta com dribles em penetração e caía no pivô contra armadores mais baixos. E agora tinha que trabalhar dentro do triângulo ofensivo, o que o fazia se sentir sufocado na capacidade de expressar a criatividade. Além disso, ele tinha perdido um pouco do ímpeto no setor defensivo, o que inspirou uma ironia do colunista Mark Heisler, que disse que o apelido de Payton não era mais “a Luva” e sim “o Pegador de Panela”.
Ainda assim, depois que Karl Malone retornou em março, o time ganhou 11 jogos seguidos. Foi quando dei mais tempo de jogo a Fish nos finais das partidas porque captava o sistema melhor do que Payton. E também encarreguei Kobe de comandar a ação na quadra. Mas o abismo entre Kobe e o resto do time era evidente. Na última semana da temporada, Kobe, que nunca tinha sido tímido nos arremessos, fez apenas um arremesso no primeiro tempo de um jogo contra o Sacramento, permitindo que os Kings assumissem a liderança em 19 pontos e vencessem com folga. A mídia concluiu que ele tinha intencionalmente entregado o jogo para tirar proveito na negociação com o dr. Buss. Ele declarou que só tinha feito o que os técnicos haviam mandado fazer – dividir a bola – e que os outros não fizeram isso. Um jogador que se manteve anônimo disse para Tim Brown do Los Angeles Times: “Não sei se poderemos perdoar-lhe.” Isso gerou uma cena feia no treino do dia seguinte. Kobe irrompeu no treino furioso e inquiriu cada jogador em particular na tentativa de descobrir quem tinha sido o responsável pela citação. Foi um episódio violentamente doloroso.
No início da temporada um escritor se referira ao Lakers como “a maior variedade de talentos já reunida em um único time”. E agora chegávamos às finais da Conferência Oeste em segundo lugar e nos sentindo como se estivéssemos com as costuras rasgadas. As lesões se amontoavam. Malone estava com uma torção no tornozelo direito; Devean George, com um estiramento na panturrilha; Fish, com uma contratura muscular na virilha; e Fox, com o polegar direito deslocado. Mas as lesões não eram o pior. A grande preocupação eram as distrações que não deixavam o time encontrar uma identidade própria. Como disse Fish: “Naquele ano era como se realmente nada pudesse ser resolvido. Cada vez que parecia que estávamos mais acomodados, nos entrosando melhor e jogando bem, acontecia alguma coisa que nos fazia retroceder. Talvez tenha sido a grande diferença dessa temporada. Nunca chegávamos a um ponto em que nos sentíssemos confortáveis como time.”
Foi somente quando ficamos atrás em 2-0 nas semifinais da Conferência Oeste contra o San Antonio Spurs que começamos a acordar. No jogo 3, no Staples Center, revertemos a fórmula para o padrão de vitória – com uma defesa ferrenha e alimentando Shaq no garrafão – e oprimimos os Spurs, 105-81. O jogo seguinte contou com um desempenho impressionante de Kobe que chegou de avião do seu julgamento no Colorado para fazer 42 pontos com seis rebotes e cinco assistências, liderando os Lakers na vitória de virada e empatando a série em 2-2. Após o jogo, Shaq referiu-se radiante a Kobe como “o melhor jogador de sempre” – até mesmo o comparando a Michael Jordan. Não era a primeira vez que Kobe levantava o time depois de fazer um voo de volta de uma de suas apresentações em juízo no Colorado. Mas dessa vez era mais inspirador. O basquete, ele próprio diz, era “como um psicólogo. Levava a mente para longe de muitas coisas. Muitas coisas”.
O quinto jogo em San Antonio acabou sendo a própria magia. Estávamos à frente em 16 pontos no terceiro período, mas os Spurs reagiram e recuperaram a liderança nos minutos finais. Com 11 segundos para terminar, Kobe converteu um arremesso de longa distância que nos deu a vantagem de 72-71. Isso era para ter sido o final do jogo com cinco segundos restantes no cronômetro: um arremesso desequilibrado de Tim Duncan dos Spurs, no limite da linha dos três pontos, acabou entrando milagrosamente. Os Spurs começaram a pular como se o jogo estivesse ganho. Solicitei tempo e disse aos jogadores que iríamos ganhar o jogo, embora estivéssemos a menos de meio segundo do fim da partida. Payton pegou a bola à margem da linha lateral, e Robert Horry, que sabia da nossa jogada de arremesso de último segundo, atrapalhou a linha do passe. Com isso, fez Payton solicitar outro tempo e recomendei que procurasse quem estivesse livre. Fish posicionou-se livre no lado esquerdo do garrafão e, com uma fração infinitesimal de segundo para terminar, recebeu o passe e arremessou para uma virada milagrosa. Chuááá[13] Apito. Jogo encerrado. Depois que despachamos os Spurs no jogo 6, desmontamos os Timberwolves em seis jogos e vencemos a final da Conferência Oeste. Mas, no último jogo, Malone sofreu outra lesão no joelho que arrefeceu o nosso ânimo com um grande ponto de interrogação sobre as finais do campeonato contra o time do Detroit Pistons.
Eu já estava ansioso em relação ao Pistons antes do acidente de Malone. Era um time jovem e coeso que chegava ao auge no momento certo depois de ganhar as finais da Conferência Leste contra o time que tinha o melhor recorde da liga, o Indiana Pacers. Nossos jogadores não levavam os Pistons a sério porque eles não tinham muitas estrelas, mas eram treinados por um dos melhores técnicos da liga, Larry Brown, e nos causavam problemas porque eram obstinados na defesa. Chauncey Billups era forte, criativo e poderia superar Payton ou Fisher com facilidade; Tayshaun Prince era um defensor de braços longos com 2,05 metros que daria trabalho para Kobe; e não tínhamos uma boa contrapartida para a dupla ameaça dos alas de força Rasheed Wallace e Ben Wallace. A estratégia de Brown era conter a nossa ofensiva conseguindo faltas de ataque de Shaq, fazendo com que seus homens grandes caíssem para trás em todas as vezes que batesse para dentro do garrafão. Eu sempre visualizava as formas de neutralizar a ofensiva do próximo adversário antes de cada série. E o desenho ainda estava em branco com os Pistons. No jogo 1, em L.A., os Pistons nos manobraram defensivamente e retomaram a vantagem de decidir em casa, embora Shaq e Kobe tivessem somado 59 pontos juntos. Conseguimos uma vitória suada na prorrogação do jogo 2 e nos recuperamos. Porém, quando a série deslocou-se para Detroit, lutamos muito e não conseguimos nos recuperar. A lesão no joelho de Malone agravou-se e o pôs fora de combate. Os Pistons rugiram para a vitória em cinco jogos. Fiquei extremamente desapontado naquela temporada porque não tínhamos conseguido dissipar as distrações, de modo a fazer com que aquele talentoso grupo de superestrelas se tornasse a potência a que estava destinada.
Embora, com grandes atuações individuais de Kobe, Malone e alguns outros, no final só nos restou um conjunto de veteranos envelhecidos de pernas cansadas que se esfolou para enfrentar um time de jovens ávidos e arrojados não muito diferentes dos Lakers de alguns anos antes. Segundo Fox, a razão de nossa derrota era simples: “Uma equipe sempre bate um grupo de indivíduos. E escolhemos um mau momento para ser um grupo de indivíduos.” Mas para Fish a derrocada dos Lakers começou bem antes, na metade de nossa terceira corrida no campeonato. Depois que o sucesso se integrou à cultura do time, ele diz: “Os jogadores começaram a dar mais crédito aos acontecimentos. E, por consequência, menos foco ao que a comissão técnica agregava a equação e mais foco em quem era o dono do time. O time era de Shaq ou de Kobe? No rol daquele grupo quais os que precisavam acelerar e melhorar? Tudo isso começou a rolar no vestiário e acabou com a energia e a coesão que existia nos primeiros anos.” O colapso se deu rapidamente. Encerradas as finais, o dr. Buss reafirmou o que Mitch Kupchak já tinha dito para mim, alegando que a equipe seguiria em outra direção e não renovaria o meu contrato. Claro que não me surpreendeu quando soube que ele planejava negociar Shaq e assinar um novo contrato com Kobe. Argumentei que a perda de Shaq poderia implicar entregar pelo menos um campeonato para o time que o adquirisse. Mas o dr. Buss mostrou-se disposto a pagar esse preço. O que antevi tornou-se realidade. Em meados de julho os Lakers negociaram Shaq para Miami, e dois anos depois ele levou o Heat à conquista do campeonato. No dia seguinte à negociação de Shaq, os Lakers anunciaram a renovação do contrato de Kobe. A seleção do júri para o julgamento no Colorado ocorreu em 27 de agosto e terminou no dia 1º de setembro. O juiz rejeitou as acusações depois que a promotoria arquivou o processo. Aparentemente, a acusadora de Kobe, testemunha-chave da promotoria, se recusou a depor. Certa vez, o lendário treinador Cotton Fitzsimmons afirmou que nunca se conhece um técnico até que seja demitido.
Não sei se isso se aplicava a mim, mas o fato é que uma pausa no basquete me propiciaria um encontro com outras formas de nutrir a mente e o espírito. Comecei a trabalhar no livro The Last Season, que aborda os meus tempos com os Lakers, e depois saí de L.A. em uma viagem de sete semanas pela Nova Zelândia, Austrália e algumas partes do sul do Pacífico a fim de clarear as ideias. Apesar de todo aquele drama me sentia bem a respeito do que tinha realizado nos meus cinco anos de permanência na equipe dos Lakers, embora quisesse reescrever o fim. E fiquei animado com a mudança positiva na minha relação com Kobe quando saí da equipe. Chegar a bons termos com a raiva é sempre traiçoeiro e, inevitavelmente, o coloca em contato com os próprios medos, fragilidades e juízos. Mas os rumos que ambos tomamos naquela temporada, cada um no seu caminho, acabaram por estabelecer as bases para uma futura conexão mais forte e mais consciente. Hoje, olhando para trás, isso me parece o final de um capítulo importante para mim – de um bom jeito. Ser técnico dos Lakers era como ter uma aventura selvagem e tempestuosa com uma bela mulher. E já era hora de seguir em frente e tentar alguma coisa nova.