O dia 30 de Junho de 2019 deveria ter sido o da volta por cima do Brooklyn Nets: depois de ter sido o time chacota da década pelos seus negócios desastrosos e ter sido considerado o “time sem futuro” por não ter jovens talentos ou escolhas de Draft por anos a fio, o time conseguiu na base de um trabalho sério, inteligente e paciente, atrair Kevin Durant e Kyrie Irving, duas das maiores estrelas da NBA e dois dos Free Agents mais disputados de um ano recheado de talento disponível.
Não era apenas ter superado o rival New York Knicks na briga pela dupla de All-Stars, o mais simbólico era ter vencido pela competência. Nos últimos anos, enquanto o time de James Dolan só virava notícia por decisões desastradas, polêmicas surrealistas e ofensas gratuitas, o Nets construiu uma CULTURA admirada NBA afora. A palavra “cultura” é vaga e batida no mundo da NBA, mas a gente percebe quando um time tem e quando um time não tem. A tal da cultura é uma identidade que guia todo o funcionamento da franquia, desde sua hierarquia, tomadas de decisão, trocas, contratações, estilo de jogo e personalidade dos atletas. Sem chance de contratar estrelas durante anos pela folha salarial cara e sem selecionar novatos nas primeiras posições do Draft por ter enviado todas suas escolhas para o Boston Celtics, restou ao Nets tirar leite de pedra: dos confins da NBA e da G-League saíram Joe Harris e Spencer Dinwiddie, de escolhas nem tão altas de Draft vieram Jarrett Allen e Caris LeVert. Já D’Angelo Russell foi a última peça conseguida em uma troca inteligente envolvendo um time desesperado. Tudo isso coordenado por Sean Marks, General Manager que se formou no sempre exemplar San Antonio Spurs, e pelo técnico Kenny Atkinson, que vinha de um tempo como assistente no Atlanta Hawks e que fez sua parte na hora de tirar sempre o melhor de jogadores claramente limitados.
A chegada de Durant e Irving foi, portanto, ao mesmo tempo um sinal de sucesso do projeto e o maior desafio dele. Por um lado, a dupla disse claramente que escolheu o Nets sobre o Knicks pelo fato da franquia ser mais organizada, preparada e por ter melhores jogadores de apoio que tinham acabado de disputar os primeiros jogos de Playoff de suas carreiras. Por outro, a mera existência de duas estrelas tão dominantes e centralizadores em termos de talento, estilo de jogo e influência iam diretamente contra a própria cultura que levou o Nets a essa posição. Por mais adaptações táticas feitas para incluir D’Angelo Russell na última temporada, o estilo de jogo de Kenny Atkinson era democrático, de tarefas divididas, sem estrelismo e com uma hierarquia bem definida.
Mas se havia uma receita para conflitos, também havia promessa de sucesso: Irving e Durant procuraram esse time sabendo como ele funcionava. E com o ala se recuperando de uma lesão no tendão de aquiles, sua integração com o time seria lenta e gradual, antes fora da quadra e só depois dentro dela. E será que Irving realmente iria querer manchar ainda mais sua reputação de destruidor de times depois das saídas turbulentas de Cleveland e Boston?
Pulamos então para o último sábado, dia 7 de março, quando o Brooklyn Nets pegou a NBA de surpresa ao anunciar a saída do técnico Kenny Atkinson a menos de 25 jogos do início dos Playoffs. Segundo notícia inicial, as duas partes entraram em um acordo após chegarem à conclusão de que não haveria continuidade no trabalho após esta temporada.
Tudo na nota do Nets gritava “TEM COISA AÍ”. Primeiro que Atkinson e toda sua comissão técnica já tinham assinado uma extensão contratual de dois anos em abril de 2019, depois que mesmos treinadores que estão com a corda no pescoço geralmente conseguem ao menos o direito de dirigir o time nos Playoffs para ver o que conseguem fazer, até porque não vai ser agora que o Nets vai achar e contratar o seu novo líder no longo prazo. Se houve um divórcio a essa altura do campeonato é porque as desavenças foram maiores e mais irreversíveis do que imaginávamos.
Segundo Shams Sharania, do The Athletic, a causa da queda de Atkinson foi o constante atrito com os jogadores. Ele cita primeiro a vitória heroica sobre o Boston Celtics, fora de casa, quando Caris LeVert marcou 51 pontos. O time perdia feio no intervalo e tomou um esporro do treinador, que colocou só LeVert e diversos reservas em quadra para o quarto período, quando o time conseguiu o empate e, depois, a vitória na prorrogação. A bronca seguida de vitória, porém, teve sequelas: poucos dias depois o time foi DESTROÇADO pelo Memphis Grizzlies, em casa, por humilhantes 118 a 79. Depois do jogo, ainda segundo Sharania, técnico e jogadores sentaram para discutir a relação e botar tudo pra fora. Não deve ter saído muita coisa boa, já que mesmo após uma boa vitória sobre o San Antonio Spurs na sexta à noite, técnico e time decidiram encerrar a história ali mesmo.
Entre as críticas dos jogadores, havia insatisfação com o estilo de jogar do time e com o papel de cada jogador no sistema ofensivo. Os atletas queriam mais liberdade e protagonismo para Spencer Dinwiddie, enquanto o treinador ainda pregava mais movimentação de bola. Amigo das estrelas e contratados a pedido deles, o pivô veterano DeAndre Jordan também estava insatisfeito em ser reserva de Jarrett Allen. Depois do jogo contra o Grizzlies, Durant interveio na discussão para dizer que o Nets precisava mudar e melhorar seus hábitos se quisesse brigar por um título no futuro próximo. As estrelas do time também deram suas opiniões sobre o técnico para Joe Tsai, dono da franquia, que deu a palavra final sobre Atkinson não continuar no time para a próxima temporada. Sabendo de tudo isso, o treinador disse que não aceitaria interferência externa no seu trabalho e que se não era para continuar, que saísse imediatamente.
Aqui é importante apontar que Joe Tsai comprou o time pra valer em setembro do ano passado, quando adquiriu os 51% do time que ainda eram de Mikhail Prokhorov. Ou seja, ele, como Kevin Durant, Kyrie Irving e DeAndre Jordan, não participou ativamente do processo de reconstrução da equipe que o ex-dono russo tinha deixado inteiramente nas mãos de Sean Marks e Kenny Atkinson, um sinal de paciência depois da pressa atropeladora que marcou seus primeiros anos como dono de time na NBA. A tal CULTURA do Nets, que parecia tão sólida meses atrás, não estava satisfazendo os desejos de gente nova e com poder demais dentro da franquia.
É claro que técnicos não estão sempre certos. Como em qualquer trabalho onde sua função é basicamente lidar com pessoas diferentes e tomar decisões, muitas coisas vão dar errado. Faltou tato, por exemplo, na relação da titularidade de DeAndre Jordan ou Jarrett Allen, o técnico comprou uma briga pequena que acabou custando caro depois. E assim como ele teve paciência para colocar seu sistema de jogo para um monte de caras novas há anos, ele talvez devesse dar uns passos para trás na hora de incorporar novos nomes nesse sistema. E isso inclui Kevin Durant, que podia não estar em quadra mas que assistia e acompanhava tudo imaginando como iria participar no ano que vem. Se ele vê Spencer Dinwiddie não sendo usado do jeito que acha melhor, imagina que acontecerá o mesmo com ele daqui um tempo.
O treinador também sempre foi muito questionado pelas jogadas que chamava nos finais das partidas, um parâmetro que muitos jogadores veteranos levam em consideração na hora de confiar ou não em um técnico. Como sua força sempre foi o desenvolvimento individual dos jogadores e a criação de uma identidade geral, isso ficava de lado nas últimas temporadas. Não mais agora, no time das estrelas, das altas expectativas e do sucesso imediato.
Dentre as comparações com o time da temporada passada, o número que mais chama a atenção é a queda no total de passes trocados por jogo. Em 2018-19, o Nets trocava 310 passes por partida, oitava maior marca da NBA. Neste ano o número caiu para 274 passes, apenas a VIGÉSIMA QUINTA maior marca da liga. No teste visual isso obviamente passa por Kyrie Irving, sempre centralizador, mas temos que lembrar que ele só jogou 20 das 64 partidas do time na temporada. De resto, o perfil de arremesso é bem parecido com o da temporada passada, até com o número de bandejas crescendo em relação aos tiros de meia distância, consequência da saída de D’Angelo Russell. Houve queda no aproveitamento das bolas de 3 pontos, mas não no protagonismo dela no sistema de Atkinson, que sempre mostrou inspiração na intensa movimentação de bola e tiros de longe de times como o Golden State Warriors dos últimos anos e o Atlanta Hawks de Al Horford que ajudou a montar. A queda de aproveitamento pode estar relacionada com a diminuição dos passes? É uma teoria que pode ser analisada mais a fundo.
Para Kenny Atkinson o futuro deve ser promissor. Ele perde a chance de treinar um time que em teoria lutaria por coisas grandes na próxima temporada, mas devem chover propostas depois da revolução que ele fez no Nets: o rival NY Knicks, agora comandado por Leon Rose, pode se interessar por alguém que possa talvez finalmente tirar mais da molecada de lá. O Chicago Bulls deveria sonhar com um técnico assim também. Se Portland Trail Blazers, Indiana Pacers ou Philadelphia 76ers resolverem mudar de liderança, seu nome pode ser considerado também.
O próximo passo para o Brooklyn Nets é simplesmente terminar essa temporada. A vaga nos Playoffs está praticamente garantida, embora ninguém em sã consciência ache que o time tem chance de passar da primeira rodada contra Milwaukee Bucks, Toronto Raptors ou afins. Depois disso é que vem o grande desafio: que técnico vai ser capaz de impedir o time de virar uma bagunça e unir as personalidades de Kyrie Irving, Kevin Durant, Sean Marks e Joe Tsai? Vai ser alguém com experiência para dizer não para esse pessoal ou a ideia é alguém que desde já pense e siga as mesmas ideias dos dois All-Stars? Dizem por aí que Irving já advoga por Tyronn Lue, seu antigo técnico no Cleveland Cavaliers e que hoje é assistente do LA Clippers. Sua chegada seria mais um exemplo do poder gigante que as estrelas têm dentro dos times, mesmo aqueles que vendem a ideia de que são guiados por uma tal cultura profunda e inabalável.