Sempre que falamos que um time precisa de uma identidade, o exemplo para mostrar o que é isso vêm lá de Memphis. O Grizzlies é time que nunca chegou à final da NBA, que ninguém nunca leva a sério como candidato ao título, que ninguém ao redor da liga sequer costuma se espelhar. Mas se tem uma coisa que eles tiveram nos últimos seis anos, isso é a tal identidade.
Ela nasceu em conceito e em nome com Tony Allen. Quando o ala chegou do Boston Celtics para o Memphis Grizzlies, levou consigo sua tenacidade na defesa, seu estilo pitbull de grudar nos adversários e uma marra que aprendeu com Kevin Garnett no ano do título em 2008. Após uma vitória heroica sobre o OKC Thunder em 2011, Allen então cunhou o termo que iria ajudar a dar forma ao conceito que começava a tomar conta do time: Grit and Grind.
É difícil traduzir exatamente a expressão, mas o ‘Grit‘ é o que nós costumamos chamar de raça, coragem e determinação. O ‘Grind‘, que ao pé da letra pode ser MOER, é usado para expressar luta, esforço bruto, persistente e, geralmente, sem muita inspiração. Na marra. O Grit and Grind, portanto, é a identidade de um time que não é mais talentoso, mais iluminado, mais criativo, mas que supera seus adversários no suor.
Não sou capacitado para entrar no terreno perigoso que tenta explicar o que aparece primeiro, a palavra ou o conceito, mas no caso do Grizzlies, o fato da identidade do time receber um nome tão atrativo serviu para toda a franquia e a cidade se organizarem melhor em volta da ideia. Foi essencial para ela se espalhar. Não era só que os jogadores achavam legal ser a zebra que ganha na marra, a cidade inteira e uma geração de jovens locais abraçaram a proposta de que o time é assim porque A COMUNIDADE é assim. Em uma das mais importantes cidades do sul dos EUA, o povo local se identificou com o conceito de um lugar que não é glamouroso ou atraente, mas trabalhador.
Um ótimo texto do The Ringer sobre o Grizzlies relata um caso interessante sobre a relação cidade e time: um repórter do jornal ‘Commercial Appeal‘ utilizou o termo Grit and Grind em uma matéria sobre um prêmio de ARQUITETURA que um escritório da cidade venceu. Ele adotou o mote da equipe para falar de uma casa feita pelo escritório Archimania que utilizou um tipo de uma liga de aço de aparência enferrujada para o exterior da construção. Depois que oxida, o aço forma uma camada de ferrugem que, embora pareça algo velho e gasto, está protegendo a construção de futuras corrosões.
Para o autor, essa construção transmite o ethos, os traços sociais básicos, da cidade de Memphis. Uma construção nova que se fecha e se protege para o futuro com uma aparência rústica de passado, exatamente como o time de basquete fazia dentro das quatro linhas. A casa, nova, não destoa do resto do ambiente quando vista da rua, mas por dentro carrega o que há de mais moderno na arquitetura.
Dentro da quadra, o Grit and Grind era apresentado com um esquema tático quadrado, tradicional e típico dos anos 90: muita defesa, lentidão para levar a bola da defesa para o ataque, foco nos dois grandes e pesados jogadores de garrafão, muita defesa física, cheia de agarrões e empurrões, e nenhuma confiança na bola de 3 pontos. Era legal no começo e foi ficando mais legal quando o resto da NBA abandonou boa parte destes conceitos, fazendo o Grizzlies se tornar o time teimoso e tradicional. A equipe insistiu na fórmula até o ano passado, mas o que era legal, de repente, ficou num cruzamento perigoso entre a identidade e a ânsia por mais vitórias, que pareciam impossíveis no esquema vigente.
Ninguém queria desmanchar esse elenco, especialmente o quarteto de Zach Randolph, Marc Gasol, Mike Conley e Tony Allen, então todos receberam uma boa grana quando tiveram que renovar seus contratos. Também ninguém queria ver o time imitando a ~modinha~ de Golden State Warriors e Houston Rockets arremessando 40 bolas de 3 pontos, sem pivôs, numa correria alegre, plástica e baseada em planilhas de computador. Mas seria juntar as duas coisas? Ser mais moderno, não perder a identidade, arremessar mais de 3 pontos e ainda se focar em Gasol e Randolph?
O General Manager Chris Wallace escolheu essa perigosa rota do meio termo: adicionar avanços táticos no time para que ele pelo menos possa competir com os outros de seu tempo (3 vale mais que 2, nunca esqueçam), mas sem abdicar da identidade que fez o Grizzlies se tornar relevante pela primeira vez, seja na NBA seja para os próprios cidadãos de Memphis. A escolha para essa função veio com David Fizdale, que até o ano passado era o principal assistente de Erik Spoelstra no Miami Heat, um dos responsáveis por montar o time do “pace-and-space” que levou LeBron James a seus dois primeiros títulos. O xaveco decisivo na entrevista, segundo Wallace, foi Fizdale dizer que não era preciso mudar todo o elenco, que era possível melhorar os atuais jogadores como eles costumam fazer em Miami.
O novo técnico chegou fazendo o que foi pedido: o meio termo. Ele disse que não iria mudar muito porque o time já era vencedor, mas que tentaria impôr mais velocidade, mais passes e, principalmente, mais arremessos de longa distância. A parte dos arremessos veio com a promoção do especialista de 3 pontos Troy Daniels a um papel maior. O resto deveria vir junto com a única grande mudança do grupo no ano, a contratação de Chandler Parsons (por uma singela FORTUNA, diga-se).
As mudanças internas mais óbvias foram vistas nas bolas de 3 de Marc Gasol –tentou 266 bolas de 3 neste ano contra míseras TRÊS em toda temporada passada– e na mudança de Zach Randolph para o banco de reservas, colocando um time mais ágil, com JaMychal Green no time titular.
Colocar Randolph no banco significou separá-lo de Gasol, desfazendo uma das duplas mais entrosadas da NBA. No ano passado os dois costumavam passar 22 minutos por jogo em quadra, número que caiu pela METADE em 2016-17. A ideia era ter apenas um jogador mais pesado em quadra por vez. No ataque isso significa mais movimentação, menos pessoas congestionando o garrafão; na defesa daria maior liberdade para a grande mudança do time no ano: ao invés de uma defesa mais conservadora, o time passou a pressionar mais a bola longe da cesta e até arriscar, às vezes, trocas de marcação após corta-luzes, algo que dificilmente faziam no passado.
Abaixo é possível ver como Tony Allen faz o que sabe fazer, que é passar pelos bloqueios, mas JaMychal Green segue a instrução de trocar a marcação. Quando ele percebe que os dois ficaram em Russell Westbrook, o ala volta correndo para defender Domantas Sabonis, que estava livre. Sua agilidade e a falta de confiança do lituano no seu arremesso de três pontos salvam a posse de bola:
O exemplo é bom porque mostra o time nesse meio termo de seguir fazendo o que sempre fez e tentando aplicar algumas mudanças. No ataque a alteração foi outra: a equipe passou de tentar 18.5 bolas de 3 pontos por jogo (25º na NBA) para chutar 26.5 por partida (14º), com aproveitamento de 35%, o padrão médio da liga. Mas foi, de novo, uma alteração tática pela metade, já que o time continua sendo MUITO devagar. Com 92.3 posses de bola por jogo em média, é o TERCEIRO time com ritmo mais lento da NBA. Demoram para atacar e são o QUARTO time com menos pontos de contra-ataque por jogo.
Abaixo um exemplo de um ataque comum do Grizzlies:
Veja como Mike Conley demora para começar o movimento de ataque e faz questão de envolver Chandler Parsons, que então coloca a bola em Marc Gasol que, sem espaço, faz um jogo em dupla com Conley.
A ideia do Grizzlies desse ano era ter Parsons como um ajudante de Conley na criação de jogadas, para deixar o time mais ágil e com mais opções de criação. Mas como vemos neste lance, geralmente não deu certo. Parsons não entrou em forma, nunca se recuperou da sua última lesão no joelho e depois de apenas 34 jogos se machucou de novo. Um desastre! A pior contratação da última offseason, pau a pau com Joakim Noah no NY Knicks. O símbolo do novo estilo do time ficou pela metade.
O meio termo encontrado para solucionar esse problema foi simplesmente o cara mais velho da NBA. Depois de uma série de experimentos (Fizdale diz que usou a primeira parte da temporada para juntar dados sobre formações diferentes), calhou que o melhor saldo de pontos do time se dá com Vince Carter em quadra! No alto dos seus 40 anos, ele acertou 38% de seus arremessos de 3 pontos e se mostrou ainda bem valioso no novo-velho Grizzlies.
? RT @memgrizz: Sunday funday windmill ? pic.twitter.com/NcU5f2f5Tx
— Vince Carter (@mrvincecarter15) April 9, 2017
Alguns sites gringos chegaram a declarar a morte do estilo Grit and Grind em Memphis, mas a verdade é que ele não morreu de vez ao mesmo tempo em que não segue exatamente do jeito que era. Às vezes é uma questão de dia até. É cansativo e desgastante ganhar jogos na força, na marra, lutando para cada dois pontinhos, então tem dia que dá tudo errado e eles perdem para o Orlando Magic. Mas também pode dar certo e eles devem se orgulhar de ser um dos poucos times a bater Golden State Warriors, San Antonio Spurs e Houston Rockets. Aliás, bateu cada um deles DUAS VEZES neste ano. E mesmo assim ficaram só em sétimo lugar, é a equipe dos altos e baixos, o time que ninguém quer pegar nos Playoffs, mas que nunca será favorito.
Essa fase híbrida do time provocou até um texto muito legal e criativo que junta o Memphis Grizzlies, o ato de escrever sobre esportes e o escritor russo Vladmir Nabokov. O que o autor diz, entre muitas outras coisas, é que o termo Grit and Grind precisa ser extinto, que quem escreve sobre o Grizzlies, incluindo ele, só consegue ver agora o time sob esse ângulo, sempre em busca da tal “narrativa” que guia os malucos que são obrigados a “criar conteúdo” sobre um time de basquete ao longo de absurdos 82 jogos. Assim como Nabokov não permite uma leitura única, direta e com interpretação óbvia de sua obra, um time como o Grizzlies não permite uma análise tão direta.
Este é um time confuso mesmo, e nisso o rótulo e o slogan legal estão ajudando. Comparar tudo com os últimos anos pode ser frustrante, comparar com a visão de David Fizdale para o futuro, também. O time do meio do caminho pode não encantar, irritar e ser instável, mas ainda mobiliza uma cidade, dá trabalho para os grandes times e estará nos Playoffs pelo SÉTIMO ano seguido, a terceira maior sequência da atualidade. Nada mal pra quem vive uma crise de identidade.