Kobe Bryant como ídolo

Eu gosto de basquete há muito tempo, desde que me lembro por gente. Embora minha infância gravitasse em volta do futebol e da Fórmula 1 (morar perto de um autódromo tem dessas), gostava de ver quando passava na televisão e improvisava uma cesta na garagem de casa usando um troço que ficava preso junto ao portão para, a princípio, armazenar sacos de lixo. Pra mim era um aro e eu era Michael Jordan ou Oscar Schmidt. Das poucas e marcantes memórias que tenho dos Jogos Olímpicos de 1992 estão os jogos do Dream Team, que me pareciam épicos e históricos mesmo sem eu saber os motivos para isso. As pessoas falavam, eles pareciam sobre-humanos, já bastava. Os video-games, com ‘Lakers vs. Celtics and the NBA Playoffs’ e, depois, o NBA Jam, mantinham a liga sempre a meu alcance.

Mas por qualquer motivo que seja, não me entregava a NBA ou ao basquete por completo. Era diversão paralela, não um vício ou uma paixão que tomasse conta do meu imaginário. As coisas foram só mudar pra valer em 1999, quando, trocando de canais, parei na ESPN durante um ‘NBA Action’ que mostrou uma impressionante ponte aérea com passe picado, que acabou em uma enterrada do armador Darrell Armstrong, do Orlando Magic. Achei aquilo a coisa mais espetacular da Terra!

Empolguei tanto que resolvi ficar no canal e assistir a partida que eles iam começar a transmitir, já que fazia um tempinho desde que não via um jogo. Calhou que era um jogo do Los Angeles Lakers, e calhou de eu me apaixonar perdidamente por um jovem jogador atlético, veloz, empolgante e com o cabelo afro mais legal que eu já tinha visto na vida. Se eu gosto do Darrell Armstrong? Era um armador OK, mas é mais importante ainda por me fazer apaixonar por Kobe Bryant.

Eu sabia da existência de Kobe porque a NBA queria que eu o conhecesse. Ele era um jovem jogador no popular Los Angeles Lakers, que fazia jogadas de efeito e era meio convencido e carismático. Era tudo o que eles queriam para transformar em marketing e atrair novos torcedores. Lembro de ter cadernos escolares aqui no Brasil com fotos dele, mesmo ele não sendo ainda campeão ou até um cara com mais de 20 pontos de média! O plano é arriscado, no passado recente isso poderia ter resultado em cadernos do Dion Waiters, mas no caso de Kobe foi uma aposta certeira. O meu caso é emblemático: eu conhecia todas as estrelas que tinham vindo antes, mas não resisti à tentação de ter o meu próprio Jordan, um que não só era parecido e sonhava em ser melhor, mas que eu poderia acompanhar de perto desde os seus primeiros anos.

Dezessete temporadas depois, aqui estamos. Kobe Bryant conquistou 5 títulos, se tornou o terceiro maior cestinha da história da NBA e marcou 81 pontos em um jogo. Eu passei pelo colégio, desisti de umas faculdades, terminei outra, comecei a trabalhar e comecei meu próprio blog de basquete para falar para as pessoas que elas também deveriam aproveitar Kobe Bryant. Depois do choque de ver os 60 pontos na sua despedida, uma das partidas mais espetaculares e surreais que já vi, já estava mais do que convencido da sua história de sucesso como jogador e do seu legado para os jovens jogadores, mas como foi Kobe como ídolo?

No começo de sua carreira eu não estava nem aí para nada que acontecia fora da quadra, ou às vezes até dentro dela. Não me abalava em nada as histórias dele se enfurecendo com Shaquille O’Neal por uma suposta falta de seriedade nos treinos, e nem achava nada de estranho nele sair na mão com o Reggie Miller no meio de um jogo. Os tempos eram outros e eu era só um jovem adolescente, meu medo era que meu ídolo fosse um cara “soft” ou que fugisse de uma briga.

Eu gostava que Kobe Bryant fosse um cara assim porque achava que era assim que um jogador, ou qualquer pessoa, deveria ser. Focado, que levava as coisas a sério e não tinha medo de ninguém. Tem coisa mais legal, para um adolescente, do que um ídolo jovem que não tem o menor pudor em encarar as pessoas já consagradas do seu meio? Acho que devem existir ao menos uma dúzia de filmes de Hollywood com esse plot, onde um jovem invade um meio do qual ele supostamente não pertence e ganha o respeito dos que vieram antes. Kobe era um filme ambulante, e atuando justamente na cidade do cinema, e fazendo questão de atacar a jugular de qualquer grande astro que ele enfrentava, especialmente Jordan.

Foi como um jovem querendo se mostrar que fazia parte do panteão da NBA que Kobe Bryant viveu dois momentos icônicos nos seus primeiros anos de carreira. Em 1997, na derrota do Lakers para o Utah Jazz nos Playoffs, ele tentou fazer mais do que devia e meteu QUATRO air balls tortas e sem direção, algumas nos minutos finais do jogo decisivo.

Mas depois, em 2000, abraçou o mesmo ato de heroísmo e garantiu a decisiva vitória contra o Indiana Pacers no Jogo 4 das Finais: o time da casa buscava empatar a série contra o Lakers e, na prorrogação, Kobe assumiu o jogo após Shaquille O’Neal ser obrigado a deixar a disputa após a sua sexta falta. Foi um heroísmo com melhor timing e melhor resultado.

Como torcedor do Lakers e fã de Kobe, tenho arrepios vendo esses lances. São jogadas espetaculares num momento decisivo por um jogador ainda muito jovem e com um estilo sedutor demais para qualquer pessoa que goste de basquete. Mas vendo isso anos depois, mesmo com a carga emocional, não consigo deixar de pensar em uma coisa: meu deus, que mala! As caras e bocas, o gingado no andar, tudo carrega aquela ultra confiança que ajudou Kobe a se tornar um dos melhores da história, mas a que preço?

Com o passar dos anos, senti que Kobe Bryant não era mais o modelo de sucesso. O tempo passou, virei adulto e a vida começou a me presentear com derrotas e perdas, minhas e dos outros. Era cada vez mais difícil conciliar o mundo em minha volta, as minhas experiências e o discurso de Kobe Bryant de que ele era o melhor só porque ele treinava mais do que os outros, porque queria mais. O que não me faltavam eram exemplos de pessoas com mais sorte, oportunidade ou simplesmente um talento puro para alguma coisa que estavam se dando bem em cima de outros que ralavam todo dia, sem resultado. Também foi um pouco devastador começar a conviver com pessoas que eram como Kobe, esses seres obsessivos, competitivos, que precisam estar sempre derrotando alguém para buscar motivação para as suas próprias coisas. Não lembro exatamente quando isso aconteceu, mas lembro de em determinado momento dizer que eu nunca queria conhecer Kobe e muito menos entrevistá-lo. Eu queria continuar gostando dele, afinal.

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Eu não estava sozinho nessa. Durante um bom tempo era bem conhecido do público que Kobe era um dos jogadores mais isolados da liga, um cara com vários colegas de trabalho, alguns até simpáticos a ele, mas basicamente nenhum amigo. Não é à toa, ser amigo de um rival era sinal de fraqueza, e dentro do seu time ele se sentia na obrigação e no papel de cobrar sempre e xingar de vez em quando, era como se ele fizesse o sacrifício pessoal de dizer o que ninguém queria dizer em prol da equipe. Não tenho amigos porque sou chefe, não tenho amigos porque digo o que deve ser dito. Acho que conheci pessoas assim, vocês não? E não gostava delas.

Sinto que alguns atletas amadurecem mais rápido que a maioria das pessoas porque tudo na vida deles é mais rápido. São profissionais milionários com 22, vivem seu auge na profissão aos 27, são veteranos com 30, precisam dar exemplo aos iniciantes quando têm 33 e são tratados como idosos veteranos que pensam em aposentadoria quando passam dos 35. A proximidade do fim da carreira e a intensidade das emoções e frustrações de anos de Playoffs também devem mexer bastante com os caras do mesmo jeito que o tédio e a rotina moldam nosso cérebro cotidiano na vida do não-atletas. O conjunto disso tudo fez Kobe Bryant ter uma pequena redenção pessoal na parte final de sua carreira, também aliviada por tirar o peso de ser campeão sem Shaq do seu lado, com o bi-campeonato de 2009 e 2010. Aos poucos Kobe criou laços com Derek Fisher, Lamar Odom e Pau Gasol, e chegou no auge da sua redenção nesta turnê de despedida, quando passou a receber (e aceitar!) homenagens de jogadores da nova geração.

Nos últimos meses de carreira, quando perguntado sobre o que ele gostaria de fazer após parar de jogar, Kobe rejeitou por completo a vida de treinador. Sua resposta de que “não gostaria de lidar com as divas” é, na verdade, um reconhecimento de que ele não teria a cabeça e a paciência para lidar com uma versão jovem dele mesmo. Como Kobe Bryant poderia criticar um jogador que desobedecesse uma ordem e resolvesse decidir um jogo? Ele mudou, ficou mais tranquilo, mas longe de estar arrependido de quem ele foi e de que este é o caminho para o sucesso. Mesmo essa versão aposentada, sossegada e que diz agora focado em “contar história para inspirar pessoas” é, ainda, um cara que eu não sou e nunca vou ser: viciado em trabalho, em sucesso, competitivo, ansioso para ser sempre o centro das atenções e incapaz de aceitar um papel secundário. Posso ainda considerá-lo um ídolo?

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O momento da carreira de Kobe em que esse status ficou mais abalado foi durante o seu julgamento por um suposto estupro. Cheio de segredos e histórias mal contadas, o caso incomoda do começo ao fim. Aconteceu na cidade de Eagle, no estado do Colorado, que Kobe visitou após a temporada 2002-03 para realizar uma cirurgia no joelho. Antes do procedimento, ele ficou hospedado em um spa e, em determinado momento, ele viu uma funcionária de 19 anos que chamou sua atenção. Ele pediu para que ela o mostrasse o local e, após alguns flertes, ele o convidou para seu quarto. No dia seguinte a garota acionou a polícia, acusando o jogador de estupro. Kobe foi detido, mas imediatamente solto após pagar 25 mil dólares de fiança. Em uma constrangedora entrevista coletiva, mais de 15 dias depois, Kobe, ao lado da esposa, admitiu que fez sexo com a garota, mas negou o estupro. Algum tempo depois veio a público a notícia do anel de diamantes de 4 milhões de dólares que ele deu a sua mulher como pedido de desculpas pela traição.

O caso, que volta à tona agora pela aposentadoria de Kobe e por uma acusação semelhante contra outra estrela, Derrick Rose, é exemplo claro de tudo o que as mulheres lutam para exterminar no mundo. A defesa de Kobe, comandada por uma advogada, usou como a principal estratégia de defesa a deslegitimação da vítima. Descobriram que ela já havia tentado suicídio, que tomava remédios pesados e apostaram pesado no fato de que o exame feito por ela no dia seguinte exibia o sêmen de um segundo homem. As lesões vaginais, portanto, não seriam por sexo forçado, diziam, mas por ter relações com mais de um parceiro no mesmo dia. O fato de ter sido encontrado sangue dela na camisa que Kobe usava no dia, de repente, estavam em segundo plano.

O caso, como é de se imaginar, deixou jornais e televisões de todo os EUA em polvorosa. A cobertura de uma acusação séria contra uma figura pública é compreensível, mas os escrúpulos logo foram para escanteio quando produtores e jornalistas começaram a correr atrás e PAGAR pessoas próximas da garota que acusava Kobe Bryant para que revelassem histórias sobre ela. Em pouco tempo, informações que deveriam ser mantidas em segredo, como sua identidade, fotos e todo seu passado sexual estava exposto na mídia. Foi um segundo abuso que acontecia enquanto Kobe Bryant seguia sua carreira de sucesso na NBA. Em dezembro de 2003, Kobe chegou em cima da hora para um jogo depois de uma das audiências no Colorado, entrou com o jogo em andamento e saiu ovacionado para mais um arremesso vencedor no estouro do cronômetro.

Eventualmente, já em setembro de 2004, quando o caso se alongava, tudo se encerrou com um acordo. Muitos acreditam que houve um pagamento à vítima, mas isso foi negado por Kobe na declaração que ele soltou ao público após o fim do caso:

Primeiro, quero me desculpar diretamente com a jovem mulher envolvida neste incidente. Quero pedir desculpas pelo meu comportamento naquela noite e pelas consequências que ela sofreu no último ano. Embora este tenha sido um ano difícil para mim, posso apenas imaginar a dor que ela teve que aguentar. Também quero me desculpar com seus pais e familiares, com a minha família e apoiadores e com os cidadãos de Eagle.

Também gostaria de deixar claro que não questiono as intensões dessa garota. Nenhum dinheiro foi pago a ela. Ela concordou que esta declaração não será usada contra mim em uma ação. Embora eu acredite que nosso encontro foi consensual, reconheço agora que ela não viu o incidente da mesma forma. Depois de meses de revisão, escutando seu advogado e mesmo seu testemunho, agora entendo como ela se sente e que não consentiu o encontro.

Sendo mais claro, Kobe Bryant assume que houve sexo sem o consentimento da garota, mas que ele não viu o caso dessa maneira naquela hora. Ficamos sem saber o lado dela nessa conclusão, a razão do acordo e da desistência do processo. Ela também entende melhor o que aconteceu no dia? Ela aceitou essas desculpas? Essa declaração admitindo o ocorrido causou algum alívio?

Bem mais novo na época, eu não conseguia sequer imaginar como tudo isso era possível. Como acontecia de uma pessoa perceber um consentimento que outra não dava? Mas depois de muito ler sobre esse assunto, por diversos motivos, descobri que alguns casos de abuso são mesmo confusos, às vezes nem para a vítima, enquanto o crime acontece. Isso não faz delas menos vítimas e nem do crime menos crime, é claro, mas mostra a complexidade de alguns casos. Desse não podemos dizer que foi isso o que aconteceu, especialmente pela falta de detalhes. Ao menos no momento da acusação ela disse que havia entendido tudo na hora, que tentou fugir e não conseguiu. Um caso grave.

Eu já tinha me acostumado em não ser Kobe, em não agir como ele. Mas isso era um passo além.

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Eventualmente tudo ficou para trás para as pessoas e a imprensa. Kobe passou a receber críticas, no máximo, por arremessar sobre a marcação dupla quando tinha um companheiro sem marcação. Como fã eu também deixei pra lá, ele era um jogador de basquete e eu estava aqui para vê-lo como jogador de basquete, dentro das quadras. Como jogador, o seu legado é do tamanho da sua turnê de despedida, das homenagens e da sua épica atuação final. Como ídolo, com sua personalidade difícil e um trauma difícil de ignorar, o que Kobe Bryant deixa é a desinteressante, tediosa e adulta convicção de que os nossos heróis recebem essa alcunha só porque apareceram em uma época onde buscamos desesperadamente qualquer tipo de inspiração. Um jovem megalomaníaco e convencido se torna milionário do nada e inspira adolescentes a jogar e escrever sobre basquete pelo resto da vida. Uma insanidade que deu certo, vai entender.

Torcedor do Lakers e defensor de 87,4% das estatísticas.

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