De todos os números que foram jogados na gente depois do primeiro título da história do Denver Nuggets, um me chamou mais a atenção: Michael Malone, em seu sétimo ano no comando do time, é o técnico que mais tempo ficou em uma franquia da NBA antes de vencer seu primeiro troféu. Já é raro que um treinador passe tanto tempo no mesmo time, mais raro se ele não vence um título no começo do caminho. Hoje apenas Erik Spoelstra, seu rival do Miami Heat na decisão, Steve Kerr, do Golden State Warriors, e Gregg Popovich, do San Antonio Spurs, estão há mais tempo em um time. Todos tinham conquistas rápidas e múltiplas para justificar a permanência, Malone conseguiu a sua só agora. O Denver Nuggets chegou onde chegou por ser o time da paciência?
Todos nós sentimos e muitos já estudam, especulam e analisam que nossa percepção de tempo tem mudado nos últimos anos. As tecnologias revolucionam o mundo e logo se tornam obsoletas antes que a gente consiga entender o que está acontecendo. Mudanças sociais e conceitos importantes para nos entendermos no mundo aparecem e somem de repente em revoluções que antes medíamos por décadas e hoje contamos dentro de um mesmo ano. E tem as redes sociais, claro, especialistas em fazer algo parecer urgente e, de repente, ultrapassado num piscar de olhos.
Vemos as consequências disso em nossa saúde mental e na falta de capacidade de pensar nossa própria história no mundo, sempre reagindo ao imediato e com dificuldade de colocar os eventos em ordem, com contexto, propósito e consequências. Logo empurramos esse jeito de ver e viver o mundo para tudo o que fazemos e vivemos, desde relacionamentos apressados até angústias de estar perdendo alguma coisa que você nem sabe o que é. Trazendo finalmente para o nosso mundo, essa relação complicada com o tempo vai parar até em como analisamos e interpretamos nossas equipes esportivas favoritas.
Posso estar exagerando ou talvez só tenha passado muito tempo no Twitter, mas acompanhar as reações e análises de fãs ou comentaristas profissionais nos últimos anos tem sido uma experiência chocante. Uma das coisas mais curiosas e também irritantes está na forma, que muitas vezes é bem mais importante que o conteúdo. Com um presente tão intenso, um futuro tão distante e um passado tão irrelevante (já foi, já passou, e sempre podemos reinterpretá-lo), a forma dos comentários é sempre o da CONCLUSÃO. Não há introdução, argumentos ou desenvolvimento, muito menos dúvidas ou questões em aberto. É preciso ser rápido e ter certeza. Se o time perdeu hoje, concluímos que X, Y ou Z não funcionam e precisam mudar. Para quem está vivendo o presente intenso, tudo até pode parecer fazer sentido, mas basta dar um passo pra trás que o caos toma conta. Acompanhe qualquer esporte de longe por um tempo e você vai enlouquecer ao ver alguém que ontem você tinha certeza que era um gênio amado por todos sendo ridicularizado pela multidão.
Não que o esporte fosse antes a terra da paciência e agora, na era das redes sociais, todos ficaram malucos. O esporte não é ciência exata, muda o tempo todo e mexe demais com nossas emoções, sejamos torcedores ou não. É um prato cheio para reações exageradas. O que as redes sociais oferecem é uma plataforma para externar essas emoções para o mundo e receber em troca validação, confirmação ou a revolta de outra pessoa, que vai em seu perfil reagir com a mesma intensidade no sentido contrário.
A gente fantasia com um esporte profissional e sério onde só os adolescentes emocionados agem assim, mas não é o caso. Só na NBA já temos, por exemplo, casos de jogadores (Kevin Durant), dirigentes (Bryan Colangelo) e até árbitros (Eric Lewis) com contas falsas no Twitter para se defender de haters, tentar espalhar suas ideias ou acalmar a fúria. Na NBA há planos, há estrategistas e o formato da liga, com teto salarial, contratos estruturados e garantidos, pede por frieza e planejamento a longo prazo. Mas mesmo assim o que não faltam são decisões tomadas com o fígado, no calor do momento, por pessoas com dificuldade de lidar com o imediato, com o presente urgente e com as conclusões que elas acabaram de tomar, de novo.
O Denver Nuggets acaba de ganhar seu primeiro título da NBA. Depois de 46 temporadas de derrotas, o time chegou à sua primeira Final e superou o Miami Heat em cinco jogos para levantar o caneco, coroando o excelente trabalho do técnico Michael Malone, consagrando os retornos de Jamal Murray e Michael Porter Jr. após um ano de lesões graves e, claro, colocando Nikola Jokic no panteão dos grandes pivôs que já lideraram um time ao título. Na temporada marcada pela paridade e pela imprevisibilidade, onde havia favoritos demais e ninguém sobrando, o Nuggets sobrou. Liderou o Oeste desde dezembro, ganhou 16 jogos e perdeu apenas 4 em todos os Playoffs e o fez com um saldo positivo de 8 pontos a cada 100 posses de bola ao longo da campanha, algo repetido só por Golden State Warriors (2015, 17 e 18), Cleveland Cavaliers (2016), San Antonio Spurs (2014 e 1999), LA Lakers (2001 e 2002) e Chicago Bulls (1998) nos últimos 25 anos. É uma lista não só de campeões, mas de times históricos, dominantes e que chegaram em múltiplas decisões em um período curto de tempo.
A temporada da paridade foi dominada por uma ideia de percepção de tempo bem imediatista, como virou moda na NBA. O desmanche do Utah Jazz foi bem sucedido graças a propostas obscenas de Minnesota Timberwolves e Cleveland Cavaliers, que mandaram inúmeros jogadores e escolhas de Draft valiosas para levar Rudy Gobert e Donovan Mitchell. Os dois times julgaram não só que esses jogadores iriam ajudá-los, mas que valia a pena pagar caro para ter essa ajuda AGORA, que ambos estavam prontos para arriscar ativos futuros para tentar ganhar algo já, mesmo que a maioria dos críticos e torcedores não vissem Wolves e Cavs como times tão prontos assim para isso, como era, por exemplo, o Milwaukee Bucks quando pagou caro para tirar Jrue Holiday do New Orleans Pelicans.
Só que em uma NBA de contratos curtos, com jogadores exigindo trocas a qualquer momento e novos donos comprando times e demitindo todo mundo no embalo de uma torcida que reclama diariamente na internet, qual o incentivo para não ter essa pressa toda também, certo? Meu eu do futuro lida com isso, provavelmente pensou todo o Atlanta Hawks ao pagar caro por Dejounte Murray também antes dessa temporada começar. Se quem toma as decisões, quem julga, quem critica e até quem joga está focado no curto prazo, por que vou simplesmente sentar e esperar? Pois essa é a história desse Denver Nuggets. O campeão da NBA de 2023 é o time que esperou, que deu tempo ao tempo, que não desesperou nem se animou demais. O time que deu chance para as coisas acontecerem mesmo quando algumas deram errado numa primeira ou segunda vez.
O técnico Michael Malone assumiu o time no início da temporada 2015-16, o mesmo ano em Nikola Jokic estreou na NBA como um novato de 20 anos de idade. Jamal Murray chegou no ano seguinte, em 2016-17, e o Nuggets só alcançou os Playoffs lá em 2018-19: foram três temporadas sem sequer chegar na pós-temporada, mas Malone sobreviveu no emprego. Os primeiros anos não foram sem solavancos. Embora Jokic tenha começado bem e sido o terceiro na votação de novato do ano, atrás de Karl-Anthony Towns e Kristaps Porzingis, ele ainda não tinha papel tão definido no time, que já tinha um ótimo pivô em Jusuf Nurkic. Os dois grandalhões chegaram a jogar juntos por um tempo, o que não deu nada certo e fez Jokic ir até Malone dizer que preferia vir do banco. Mas depois de uma sequência de resultados negativos, em 16 de dezembro de 2016, Malone decidiu inverter os papéis e ter Jokic não só como titular, mas como o centro de tudo:
“Fiquei pensando comigo. Esse menino entrou na seleção dos novatos como pivô e eu estou aqui trazendo ele do banco e jogando ele na posição 4. Então disse ‘dane-se tudo’, Nikola é um pivô e ele é nosso pivô. No jogo seguinte comecei com ele de pivô titular e daquele momento em diante nosso ataque, nosso time, nossas vitórias, tudo disparou. Ele iria se tornar o ponto principal de tudo o que iríamos fazer, de todas as decisões que iríamos tomar”, disse o treinador em entrevista à ESPN.
Esse dia 16 de dezembro é até hoje chamado de Jokmas (junção de Jokic com “Christmas”, Natal em inglês) em Denver e celebrado todo ano. Dois meses depois Nurkic foi trocado para o Portland Trail Blazers e todos foram felizes para sempre, certo? Nem tanto. Estamos falando da segunda temporada de Jokic, lembra que eles passaram três anos sem pisar nos Playoffs? Nessa mesma temporada, depois da melhora do time com a promoção de Jokic ao protagonismo do time titular, o Nuggets lutou para chegar perto da pós-temporada, só para ver tudo ir para o ralo em uma derrota para o próprio Blazers, com direito a atuação de luxo de Nurkic: 33 pontos, 16 rebotes e uma entrevista dizendo “boas férias” para o ex-time. O ano seguinte não foi menos dramático: o Nuggets novamente chegou ao fim da temporada regular com chance de ir aos Playoffs, mas para isso tinha que vencer o Minnesota Timberwolves em um confronto direto pela oitava vaga na última rodada, uma coincidência do destino que fez desse jogo, na prática, um duelo de Play-In como conhecemos hoje. Jokic marcou 35 pontos, mas Jimmy Butler fez 31 e comandou a vitória do Wolves na prorrogação.
A derrota foi frustrante não só pelas circunstâncias, mas porque o Nuggets tinha apostado naquele ano em pagar caro pelo veterano Paul Millsap, que eles julgavam essencial para dar cara e seriedade a um elenco jovem que tomava forma. Era a hora de deslanchar, mas o time ficava naquele vaivém de dar ótimos sinais mas sem mostrar consistência. Claramente alguma coisa estava dando certo, mas estava demorando. Hora de esperar ou chacoalhar?
Os resultados iriam vir finalmente em 2018-19. Depois de um tempo na reserva de Emmanuel Mudiay, promessa que nunca vingou, e do veterano Jameer Nelson, Murray se consolidou como o armador principal do time. Ele mesmo já disse que o entrosamento quase perfeito com Jokic nasceu quando ambos eram reservas e batalhavam por espaço dentro do time. Murray veio da Universidade de Kentucky com fama de talentoso e agressivo, mas havia dúvida sobre se era armador mesmo ou só um pontuador. Descobrir sua posição também foi trabalho do tempo. O sucesso do pick-and-roll com Jokic convenceu o time de que dava pra ter ele com a bola na mão organizando o jogo. Foi a paciência no desenvolvimento dos jogadores, foi com temporadas e horas de quadra juntos que o Nuggets descobriu em que nomes estava o futuro.
O salto foi rápido: de três anos sem Playoffs para a SEGUNDA MELHOR campanha do Oeste, atrás apenas do imbatível Warriors de Durant. Na pós-temporada, porém, o time não jogou no mesmo nível. Na primeira rodada precisaram de sete jogos arrastados para bater um envelhecido San Antonio Spurs, depois foram eliminados de novo pelo Portland Trail Blazers em uma derrota em casa no Jogo 7. E Nurkic, machucado, nem jogou dessa vez! Eles perderam mesmo para os inúmeros rebotes ofensivos de Enes Kanter e para os 37 pontos de CJ McCollum no jogo derradeiro. Era o momento perfeito para um discurso de “obrigado Coach Malone por nos trazer até aqui, mas precisamos de um treinador que faça os ajustes certos nos Playoffs”. Mas o Nuggets apostou na continuidade. Faltou defesa e tamanho nas alas? Foram atrás de Jerami Grant. Faltam arremessadores? Selecionaram Michael Porter Jr. no Draft. Como no caso da troca de Nurkic para dar espaço para Jokic, não é que o Nuggets selecionou um grande jogador e esperou a mágica acontecer. O time trabalhou, trocou, tomou decisões (várias erradas, como trocar Donovan Mitchell no dia do Draft), fez mudanças. O legal é que as mudanças não são guinadas clássicas de times frustrados, com demissões para “mudar os ares”. É identificar o problema, atacá-lo e voltar para o próximo ano. Uma daquelas coisas consagradas pelo Spurs que todo mundo elogia mas ninguém copia porque dá trabalho.
Isso ficou claro até nesta temporada, com a contratação de Bruce Brown e a troca por Kentavious Caldwell-Pope. Depois de dois Playoffs sem Murray, machucado, e um ano inteiro sem Porter Jr., que fez uma terceira cirurgia na coluna, o time poderia muito bem ter interpretado as derrotas para Phoenix Suns e Golden State Warriors nos Playoffs como mera consequência de um time desfalcado, mas ao invés disso eles investigaram e identificaram onde foram atacados e machucados. Faltava defesa de perímetro, faltava alguém para marcar bem pick-and-rolls e não deixar Jokic exposto e sozinho marcando Steph Curry na linha dos 3 pontos ou Chris Paul na meia distância. Faltavam arremessadores de 3 pontos depois de anos sofrendo com a inconsistência de Will Barton e Gary Harris. Identificaram o problema, trouxeram especialistas para a função e, de novo, não demitiram um técnico que perdeu dois anos seguidos nos Playoffs de maneira parecida. Na mesma pegada foi a troca por Aaron Gordon, cruelmente realizada semanas antes da grande lesão de Murray. Identificaram um jogador em baixa, num time em saldão, com todas as características que precisavam, um substituto mais que à altura de Jerami Grant, que eles souberam perder no mercado de Free Agents e tiveram calma para achar o substituto ideal meses depois.
E já que falamos da ausência de Murray por dois Playoffs, há maior prova de paciência? O próprio jogador disse que quando machucou o joelho foi perguntar se seria trocado. Fazia sentido, até. A lesão aconteceu quando Jokic era o favorito para ganhar seu primeiro troféu de MVP e já se sabia que o retorno iria demorar mais de ano. Muitos times veriam isso como um desperdício do auge de um jogador histórico. Seria justificável trocar Murray (e até Porter Jr.) para times com mais paciência e planos de longo prazo em troca de ajuda imediata. O time não foi longe mesmo nos Playoffs sem a dupla, como todos esperávamos, mas o entrosamento melhorou, Jokic melhorou e outros problemas identificados foram resolvidos na offseason. Deram um jeito de que os anos de fracasso não fossem anos perdidos. Orgulho do Giannis!
Que não interpretem, porém, que a paciência é o segredo do sucesso na NBA. Não existe um jeito único e definitivo de montar um time campeão, não existe receita para achar os jogadores certos ou para atrair todas as estrelas para sua franquia. O interessante aqui é como o Nuggets foi contra a maré. Como no começo viram um processo dando certo antes dos resultados e decidiram esperar. E depois, na hora da lesão de Murray, como se viram perto de algo grande e decidiram esperar em vez de atirar para todos os lados. Eles até agiram, mas pelas beiradas e deixando o tempo passar. É como se dissessem “talvez Jamal Murray não seja o cara ideal, mas vamos dar a chance dele mostrar isso primeiro”. Nem todo mundo acerta de primeira, nem todo mundo deslancha logo na estreia, nem todo técnico acerta o time na primeira temporada, nem todo General Manager faz todas as grandes trocas logo no início do seu trabalho. O Denver Nuggets deixou todos crescerem dentro de seus papéis ao longo de sete longos anos e agora estão no auge, encharcados de champanhe e sonhando com o título do ano que vem.