O doping e a nobreza no esporte

Sorriso simpático do novo inimigo dos
defensores da nobreza do esporte

O Danilo tratou um dos aspectos do caso de doping do Rashard Lewis no seu último post, mas eu acho que o assunto é tão complexo que merecia um texto só sobre isso.

Devemos começar entendendo o caso do Rashard Lewis em si antes de vermos o caso do doping em toda a NBA. Ele foi pego por ter tomado um composto chamado DHEA, que não é em si uma substância ilegal. Ela se torna, depois de ingerida, androstenediona, que depois se transforma em testosterona, substância essa achada além do nível permitido no teste do Rashard Lewis.

Segundo a lei americana, por mais características de esteróides que a substância tenha, é considerada um suplemento alimentar, por isso é encontrado em lojas do ramo. O Rashard Lewis diz que apenas tomou um suplemento, sem a intenção de melhorar desempenho.

Pela WADA, a Agência Mundial Anti-Doping, o DHEA é considerado um tipo de esteróide e por isso é proibido. As discrepâncias entre as leis nacionais e as leis anti-doping, portanto, fazem com que substâncias proibidas para a prática do esporte sejam tão facilmente encontradas em qualquer lugar.

Um médico entrevistado pelo jornal Orlando Sentinel diz que o produto não é lá muito eficiente na hora de melhorar o desempenho de um atleta do nível de NBA. Essa opinião reforça a idéia de que o Rashard Lewis foi apenas descuidado e não é alguém que se dopa regularmente para melhorar o desempenho. Segundo o mesmo médico, existem até substâncias de características semelhantes e que dão um resultado muito maior, se o Rashard foi infiel aos princípios do esporte, foi burro ao fazê-lo dessa forma tão ineficaz.

O Shaquille O’Neal deu uma entrevista recentemente à rádio da ESPN dizendo que acredita que o Rashard simplesmente deu azar. Ele diz que muitos jogadores da NBA, incluindo ele mesmo, vão nessas lojas de suplemento esportivo e simplesmente compram qualquer coisa que tenha um rótulo bacana que diga alguma coisa que eles querem. “Se diz que emagrece a bunda gorda em dez dias, compramos, mas agora teremos que ter mais cuidado depois desse caso”, em uma tradução livre do que o Shaq disse.

O testosterona é uma das formas mais antigas do doping, foi famosa nas décadas de 70 e 80 junto com os anabolizantes e eram bem óbvios em atletas de esportes femininos. Testosterona é um hormônio masculino e se tomado por mulheres resultam em algumas características masculinas. Em caso famoso, nas olimpíadas de Montreal em 76 as nadadoras da Alemanha Oriental, com estranhas vozes muito grossas, dominaram todas as provas da competição. Quando incomodadas pelas americanas que questionavam suas vozes masculina, as alemãs responderam “Nós viemos para nadar, não para cantar”.

Na NBA, onde todo mundo tem voz grossa, principalmente o Mutombo, não é tão fácil perceber quem toma e quem não toma. Para isso existem os exames anti-doping. Na NBA eles são feitos 4 vezes por temporada, sem aviso prévio da data, em cada atleta. Para muitos críticos é muito pouco, mas a maior crítica está no fato de que não são feitos testes durante a offseason, entre junho e outubro. Para alguns médicos seria tempo o bastante para o atleta usufruir de algumas substâncias que tem poder a longo prazo e ao mesmo tempo se ver livre dos rastros dessa substância quando a temporada começar.

Certa vez o Nowitzki deu uma entrevista a uma TV alemã dizendo não conhecer nenhum envolvido com doping na NBA mas que “alguém pode provar que ele está errado”, seguido de um sorriso que pode ser interpretado de várias maneiras. É comum ver jogadores, principalmente os mais jovens, mudarem bastante o corpo entre uma temporada e outra. Eles chegam magros das universidades, encorpam um pouco antes da sua primeira temporada e para a segunda aparecem já com aquela cara de jogador da NBA. Eles dizem que é apenas musculação e ninguém tem como provar o contrário, mas a falta de testes nesses meses deixa um espaço amplo para as suspeitas.

Só que, embora estejamos falando de esteróides, de homens mais bombados e de mulheres másculas, isso é coisa antiga. O doping não é mais só isso, hoje em dia as drogas de melhoria de desempenho podem ser simplesmente para melhor respiração, ganho de potência, recuperação rápida depois de esforço físico, diminuição de peso, etc. O ciclismo, esporte em que mais se fala em doping, é a maior prova de que um cara não precisa ser do tamanho de um armário para estar dopado.

Os testes feitos pela NBA não são controlados pela WADA. A Liga, assim como praticamente todos os esportes americanos, tem sua própria política anti-doping. O David Stern, inclusive, já criticou abertamente a WADA depois de como foi conduzido o caso do ciclista Floyd Landis em 2006. E assim como os testes são outros, a lista de substâncias proibidas é outra e as punições também.

Alguns podem dizer que a punição foi branda para o Rashard Lewis mas ela segue o padrão da NBA. São 10 jogos de suspensão na primeira vez em que se é pego, 25 jogos de punição para a segunda fez, 1 ano de suspensão na terceira vez e o jogador sai da NBA na quarta. O caso do Chris Andersen, banido por dois anos, não se aplica a essa regra porque envolvia uso de drogas ilícitas socialmente, não de melhoria de desempenho esportivo.

Nos EUA, porém, quando o assunto é problema com doping o esporte que vem à tona é o baseball. Há alguns anos a MLB, liga profissional de baseball, viveu um drama descomunal quando inúmeros jogadores foram acusados de doping. A maioria dos casos acabaram se revelando realmente verdadeiros e ídolos do esporte, que poucos anos antes tinham quebrado recordes históricos de home runs, como Barry Bonds, Marc McGwire e Sammy Sosa, ficaram marcados como dopados e seus recordes ganharam um asterisco.

Para o colunista da CBS Gregg Doyel, que cobria o baseball na época em que McGwire e Sosa começaram a quebrar recordes usando substâncias ilegais, a imprensa americana do basquete sofre do mesmo problema que eles sofriam na época que cobriam o baseball no final dos anos 90: são ingênuos. Vêem os jogadores com físico absurdo, vêem poucos casos de doping revelados (foram apenas 6 desde 1999 na NBA) em um mundo esportivo empesteado com casos todos os dias e acham que isso acontece porque no basquete é diferente, é um mundo “sem a cultura do doping”.

O mundo do esporte é realmente entupido de casos de doping. Uso aqui um exemplo dado na matéria “Atletas, dopai-vos” da Dorrit Harazim na revista piauí número 23. A matéria é simplesmente espetacular e trata de vários campos da discussão do doping. Usarei alguns trechos de entrevistas que estão na matéria aqui, mas o ideal é ir lá depois e ler a matéria inteira.

O exemplo dado no início da matéria para mostrar como funciona o mundo do doping é dado pelo fisiologista molecular H. Lee Sweeney. Ele trabalha há anos tentando fazer com que camundongos alterados geneticamente ganhem massa muscular mesmo sem fazer exercícios físicos. A intenção é aplicar esses conhecimentos em humanos com distrofia muscular. Porém, as primeiras ligações que ele recebeu foram de fisiculturistas, levantadores de peso e técnicos e atletas de outras modalidades esportivas que queriam participar de testes mesmo depois de terem sido alertados de que existiam até riscos de morte.

O que leva os atletas a se doparem é bem óbvio: resultados. A grande maioria dos atletas profissionais que chega às grandes competições passa por muitos estágios difíceis e só chega longe por ser obstinada a vencer. Geralmente os que se vêem satisfeitos em competir não chegam longe. Os que chegaram longe também sabem que não chegaram lá só por causa de esforço, chegaram porque o esforço rendeu um resultado. De nada adiantariam as mesmas horas de treino se não rendessem títulos ou medalhas depois. Sem títulos não tem patrocínio, técnicos interessados, clubes interessados e etc.

Porém, nem todos podem vencer, questão estatística. E no desespero por algum resultado se aposta em qualquer coisa, até no doping. Um atleta que veja a si mesmo em vias de perder sua carreria de atleta, à qual dedicou tanto tempo, é uma boa vítima para quem quer vender algum produto e ainda depois lucrar com a vitória. Em um mundo em que o esporte se tornou algo tão grande como negócio e na vida dos atletas, que tem que se dedicar integralmente, o doping tem uma entrada mais fácil.

Mas tudo bem, o doping é comum e sabemos porque existe, mas há uma pergunta mais importante a ser feita atualmente: por que ele é errado?

Os que defendem o anti-doping acima de tudo dizem que lutam pelo esporte limpo, justo, sempre com o culto do amadorismo, da superação humana. Mas ainda há espaço para isso atualmente? Faz sentido defender isso hoje em dia? Primeiro porque estamos chegando na era do doping genético, a própria WADA acredita que o momento desse tipo de doping está chegando (se ainda não chegou e eles não sabem) e contra ele os testes anti-doping são dificílimos, os atletas podem passar impunes. Em segundo lugar e mais importante, transformar o esporte nessa atividade pura seria colocar o esporte como algo à parte da sociedade da qual ele faz parte.

A matéria da piauí coloca essa questão nas palavras do professor de política comparada da Universidade de Michigan Andrei Markovits: “Me horroriza este ambiente inquisitorial à la Torquemada que cerca a questão do doping hoje em dia. Podemos tomar Viagra, antidepressivos, essa pílula, aquela outra – tudo o que quiser. Só os atletas não podem. E por quê? Devido ao ultrapassado ideal de amadorismo e virtude no esporte – conceitos desenvolvidos pela classe dominante inglesa de Oxford e Cambridge, no século XIX”.

Markovitz pode parecer exaltado e exagerado, mas traz à tona boas questões. Essa nobreza do esporte ainda faz sentido hoje em dia? Ela não funciona apenas como discurso para nos emocionar e valorizar o esporte enquanto mascara como nossa sociedade realmente funciona? Afinal, hoje somos uma sociedade movida a lucro e resultados em que tomamos remédios se queremos deixar de ficar tristes para ficarmos felizes e simplesmente diminuímos o tamanho do nosso estômago se queremos ficar mais magros.

Na mesma matéria é citada uma entrevista do Sylvester Stallone dada à revista Time, em que ele não só diz ter usado o HGH, um hormônio de crescimento proibido pela WADA, como diz que recomenda a testosterona para todos com mais de 40 anos porque faz muito bem à sua saúde. Como deixar o esporte e os esportistas de fora de uma sociedade que cada vez mais apela à farmácia na busca de qualquer coisa? Até empresários, jogadores de pôquer e músicos tem usado drogas que aumentam seu poder de concentração. Apenas os esportistas são considerados vilões quando tomam algo para melhorar seu desempenho.

E ao mesmo tempo alguns esportistas sofrem intervenções que melhoram sua qualidade como praticantes do esporte, mas que não são consideradas doping. O Tiger Woods fez uma operação para ficar com a visão perfeita, enquanto na NBA o Gilbert Arenas usa câmaras hiperbáricas para simular grandes altitudes, criar mais glóbulos vermelhos e melhorar sua resistência física. Tudo isso não só altera o físico do atleta como é caro e não está disponível para todos. Isso sem entrar no polêmico assunto dos maiôs na natação, em que parece haver, em paralelo à disputa dos atletas, uma competição entre empresas de material esportivo.

Isso tudo foi para fazer a gente pensar um pouco na questão do doping que é vista tão “preto-no-branco” pela crítica esportiva em geral. Acho que esse texto serve para entender como funciona o doping na NBA, no esporte em geral, no caso do Rashard Lewis e principalmente para começarmos a pensar no assunto como um todo ao invés de simplesmente fazer a parte mais fácil que é demonizar o atleta e culpar penas brandas.

Se nem sabemos direito mais o que é doping e qual é o real papel do esporte na sociedade atual (negócio ou nobreza?), não podemos sair disparando críticas para todo lado. Para fechar acho que sou obrigado a terminar da mesma maneira que a Dorrit Harazim finalizou a matéria que inspirou esse texto, com a definição de esporte pelo historiador Christopher Lasch: “O esporte, do qual os Jogos Olímpicos representam o apogeu, mistura talento, inteligência e concentração máxima de propósito – numa atividade que em nada contribui para o bem-estar ou riqueza da coletividade, nem para a sua sobrevivência física. Mas ela é, ao mesmo tempo, a atividade que melhor evoca a perfeição da infância, com regras e limites criados só para aumentar o prazer da dificuldade, e aos quais os participantes aderem por livre e espontânea vontade.”

Torcedor do Lakers e defensor de 87,4% das estatísticas.

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