A NBA divulgou em agosto o seu calendário da temporada. O assunto pode parecer burocrático demais para interessar o fã casual, mas sua montagem diz muito sobre os interesses da liga, as prioridades dos times e a busca por equilíbrio no campeonato. É também uma forma de ver como existe um batalhão de heróis (quase) anônimos que fazem funcionar o esporte que mais gostamos de ver no mundo.
Contamos anos atrás aqui no Bola Presa que a NBA costumava ter um único e solitário homem fazendo o calendário de 82 jogos dos 30 times do campeonato. Mas em 2015, depois de décadas no cargo, Matt Winick deixou finalmente os computadores assumirem o que ele chamava de “um quebra-cabeças de 1.230 peças”. Hoje a NBA conta com uma equipe de quase 20 pessoas para fazer seu calendário sob o comando do vice-presidente de Game Schedule Tom Carelli e o vice-presidente de estratégia Evan Wasch.
O trabalho dura quase o ano inteiro: começa bem aos poucos, em outubro, quando eles começam a receber as datas disponíveis de cada arena que recebe jogos da NBA (muitas são usadas também para shows e jogos de hóquei ou basquete universitário), e se intensifica em julho, quando se sabe finalmente os elencos de cada equipe e assim pode-se determinar os confrontos de datas importantes como a semana de abertura, a rodada de Natal e os jogos do dia de Martin Luther King. É o pontapé inicial para um período de dois meses onde a equipe se reveza ao longo de quase 24 horas por dia até resolver todos os problemas.
Se antes Winick fazia tudo na mão, hoje a equipe numerosa aposta pesado nos computadores. Como a dupla de líderes do projeto disse em uma entrevista ao podcast Full 48, do jornalista Howard Beck, hoje o processo é um sanduíche de algoritmo e humanos. Primeiro vem a camada humana que determina as rodadas-chave e algumas regras básicas que o calendário deve seguir, aí o computador começa a rodar e fazer versões e mais versões da tabela até achar alguma que bata com todas as exigências humanas, depois os humanos checam as opções dadas, fazem ajustes pontuais e finalizam o processo.
Segundo Tom Carelli, o computador produz MILHÕES de variações do calendário que vão sendo eliminadas por não atender a alguns critérios da liga. A equipe então analisa algumas centenas de opções manualmente e dessas algumas dúzias passam por um escrutínio mais aprofundado, com direito a consulta com diversos times, para ser eleito como o calendário oficial da temporada.
A NBA divulga com orgulho alguns resultados dessa combinação homem-matemática-de-computador:
- Pelo quinto ano seguid0 a NBA quebra o recorde de menos back-to-backs, os temidos jogos em dias consecutivos para o mesmo time.
- Cada equipe terá em média 12.4 back-to-backs na temporada 2019-20, 36% a menos do que em 2014-15
- Pelo terceiro ano seguido NENHUM time terá que jogar quatro jogos em cinco dias
- Pelo segundo ano seguido NENHUM time jogará oito vezes em doze dias
OS BACK-TO-BACKS
A diminuição dos back-t0-backs ano após ano acontece por ao menos três razões: a primeira é o pedido antigo dos times, que detestam os jogos em dias consecutivos já que os números comprovam que há uma queda real de desempenho dos jogadores nestas situações. Depois vem o uso de uma equipe maior e de computadores para fazer o calendário, algo surreal que seja tratado como elemento recente em 2019 mas que é verdade. Por fim, desde o ano passado a liga cortou o tamanho da pré-temporada, dando quase duas semanas a mais de espaço para encaixar os 82 jogos de cada time.
Após cinco anos de baixas vem a óbvia pergunta: chegamos no limite dos back-to-backs? Tom Carelli e Evan Wasch dizem que não, mas que não é necessariamente desejável cortar ainda mais os jogos em dias seguidos. Apesar de serem vistos como vilões do desempenho e até da saúde dos jogadores, eliminá-los por inteiro pode criar outros problemas. Nos últimos anos os treinadores tem reclamado de menos chances de treino porque os períodos de dois ou três dias sem jogos caiu. Com mais espaçamento entre as partidas, virou comum os times terem um dia de jogo, um dia de recuperação e/ou viagem e logo outro jogo no dia seguinte.
Há também a questão das viagens, que são elementos importantes na hora de se pensar um back-to-back. Evan Wasch dá um exemplo interessante que eu vou adaptar com times de verdade para fazer mais sentido: entre as opções A e B abaixo, qual é a mais interessante para o New Orleans Pelicans? Na primeira o time enfrentaria o Orlando Magic em um dia, o Miami Heat no dia seguinte, aproveitando a viagem para a Flórida, e o Atlanta Hawks dois dias depois antes de retornar a New Orleans:
A opção B poderia eliminar esse back-to-back entre Miami e Orlando. Seria possível jogar contra o Magic primeiro, dois dias depois contra o Hawks e dois dias depois ir para Miami antes de voltar para casa. Os dias livre entre os jogos, porém, valem as muitas milhas extras de avião?
É um quebra-cabeça sem uma única resposta certa, cheio de escolhas e de cobertores curtos. Uma diminuição ainda mais brusca dos back-to-backs tem, portanto, um preço. E além de menos tempo de treino e possivelmente mais viagens, às vezes o custo é financeiro mesmo. Muitos times pedem um certo número de jogos em casa em finais de semana e feriados contra times de renome, como o Golden State Warriors, para poder cobrar caro pelo ingresso, encher a arena e ganhar rios de dinheiro. Alguns times fazem questão de jogar em casa em semanas nas quais a cidade recebe outros eventos para atrair os turistas, empresários ou quem mais esteja por lá interessado em pagar para ver a NBA ao vivo. Um time pode topar um back-to-back cansativo se for em nome de um sábado à noite contra LeBron James em quadra, por exemplo.
A maior preocupação da NBA agora deve ser ter o que eles chamam de “quality back-to-backs” ao invés de só evitá-los a qualquer custo. Um exemplo é um home-and-home, por exemplo, que é quando um time joga em sua casa em dois dias seguidos. Ou quando vai para Los Angeles e enfrenta Clippers e Lakers em sequência, sem precisar do desgaste da viagem entre as partidas. É possível fazer o mesmo em Nova York com Knicks e Nets.
VIAGENS
Por falar em viagens, tá aí um assunto onde é difícil ser igual e justo com todo mundo. Os times ficam em cidades diferentes, algumas ficam mais longe e não há nada que se possa fazer. Todo ano se divulga os campeões de milhas viajadas e invariavelmente o líder está na divisão Noroeste. Isso acontece porque ela é uma divisão que não faz muito sentido geográfico, ela é o RESTO do Oeste. O Portland Trail Blazers faria mais sentido na divisão Pacífico ao lado dos times da Califórnia, mas não há mais espaço. O Oklahoma City Thunder faria mais sentido com a galera do Texas e o Minnesota Timberwolves está mais perto dos times da divisão Central, que é do Leste. Mas eles se juntam entre si e ainda colocam Denver Nuggets e Utah Jazz, as duas cidades com altitude da NBA, para fechar a brincadeira.
Como cada time joga QUATRO vezes contra cada rival de divisão dá pra ver no mapa acima o que leva o Noroeste a sempre ser a mais condenada às viagens e por que os times do Leste viajam menos que os do Oeste. Neste ano o time campeão das milhas é o Utah Jazz, no ano passado foi o Portland Trail Blazers e um ano antes havia sido o Minnesota Timberwolves:
Uma curiosidade é que nos últimos anos os times de Los Angeles sempre estiveram lá no topo da lista e nesta temporada finalmente despencaram. Localizados no extremo oeste do país, uma organização de suas viagens ao leste pode significar mudanças extremas na lista.
TELEVISÃO
Como se o trabalho não fosse difícil o bastante mesmo sem pedidos dos times e da NBA, o grupo ainda precisa encaixar os jogos certos nas datas em que as televisões transmitem partidas em rede nacional. Toda quarta e sábado é preciso ter jogos bons para a ESPN, enquanto a quinta é dia da TNT nos EUA. A ABC domina os fins de semana, que a partir desta temporada também terão jogos no período da tarde para que o mercado europeu finalmente possa assistir basquete americano sem precisar ficar acordado até altas horas da madrugada.
A televisão também foi personagem decisivo para outra mudança importante. O número de jogos que começariam às 22h30 no horário da costa leste diminuiu de 57 para 33 na temporada 2019-20! O lado leste do país concentra mais da metade do público da NBA nos EUA e a audiência dos jogos estava sendo impactada por partidas acabando quase a uma da manhã. E é no Oeste que se encontram as peças mais importantes da liga para atrair telespectadores: LeBron James e Stephen Curry. A ideia é adiantar o horário das partidas para que mesmo rodadas duplas com jogos no Leste e depois no Oeste acabem em horários decentes para a maior parte da população. A mudança ajuda também o público brasileiro, já que nosso horário é bem mais próximo daquele da Costa Leste dos EUA do que do Oeste.
Abaixo a lista com a número de vezes que cada time vai aparecer em rede nacional nos EUA nos canais ABC, ESPN, TNT e NBA TV. Time com mais torcida e com o jogador mais popular, o Los Angeles Lakers lidera a lista com 43 aparições (uma a mais que o Golden State Warriors) enquanto Charlotte Hornets e Cleveland Cavaliers ficam na lanterna com apenas três aparições, sendo duas delas na menos glamourosa e menos assistida NBA TV.
Há um medo de que a mudança atrapalhe justo aqueles que compram ingressos e veem jogos nos ginásios. Uma partida em Los Angeles que começa às 21h30 no horário de Nova York significa que a galera precisa estar no ginásio às 18h30 para ver o tapinha inicial. Isso em uma cidade conhecida pelo trânsito caótico! E mesmo que cheguem a tempo, como fica a questão do consumo de produtos e eventos que são sempre oferecidos antes dos jogos? É algo a ser analisado ao longo do ano.
A equipe de scheduling da NBA disse que neste ano o desafio da televisão ficou especialmente complicado por causa de LA Lakers e LA Clippers. Os times dividem o mesmo ginásio, o Staples Center, o que já é um pesadelo logístico devido aos shows e jogos de hóquei sobre o gelo no local, e ainda pela primeira vez na história ambos são AO MESMO TEMPO relevantes, favoritos e recheados de estrelas. Haja algoritmo para colocar os dois times mais de 35 vezes em rede nacional ao longo da temporada.
DATAS ESPECIAIS
A Rodada de Natal se tornou tão grande para a NBA que até tema de podcast para assinantes ela já virou. Lá explicamos como a data se tornou especial para a NBA e que agora ela tradicionalmente reúne algumas das partidas mais esperadas do ano. Jogar no Natal é receber um atestado de relevância. Segundo Tom Carelli e Evan Wasch, não há time que peça para não jogar na data (embora Gregg Popovich e outros nomes já tenham criticado muito a ideia de jogar no feriado há alguns anos), o que acontece é que todo time faz um lobby para disputar essas partidas EM CASA, claro. A Associação dos Jogadores pediu que o time campeão sempre tivesse um jogo de Natal e isso está sendo cumprido. O Toronto Raptors vai ter seu primeiro jogo em casa nesta data agora em 2019, contra o Boston Celtics. O Philadelphia 76ers talvez fosse um adversário mais divertido pelo histórico dos times nos Playoffs, mas o grupo resolveu colocar o time de Joel Embiid para jogar em casa já que o ginásio deles ficou disponível no Natal pela primeira vez desde 1988.
Here’s the National TV sked for the NBA’s opening week, Christmas Day and MLK Day games. pic.twitter.com/v6sIQs7F8O
— Rachel Nichols (@Rachel__Nichols) August 8, 2018
Outra data importante é a chamada Opening Week, a primeira semana da temporada. O desafio aqui é fazer uma semana recheada de jogos esperados para celebrar a volta da NBA. Mas ao mesmo tempo deve-se fazer de uma forma onde os times possam fazer seu “home opener“, a primeira partida em casa, para receber oficialmente a torcida na nova temporada. Seria legal, por exemplo, levar Kawhi Leonard e o LA Clippers para abrir o ano contra o Toronto Raptors. Não só seria um jogo bom como a chance da estrela do título de 2019 participar da cerimônia de entrega dos anéis de campeão. Mas vale a pena levar o Clippers para uma viagem ao outro lado do país só para isso? Tom diz que se um time viaja tão longe ele deve jogar pelo menos três jogos antes de voltar para valer a pena, o que significaria que o Clippers iria jogar seu primeiro jogo em casa só na segunda semana. Nada feito. O Raptors vai estrear contra o New Orleans Pelicans de Zion Williamson.
Conhecer mais sobre o processo de construção do calendário é, além de uma mera curiosidade, descobrir detalhes de mais um jogo dentro dos vários jogos que compõem a NBA. Há o basquete propriamente dito, há o jogo dos General Managers na hora de montar um elenco e há, vejam só, um quebra-cabeça gigante sem resposta certa para ser montado nos bastidores.