No clássico livro “1984”, de George Orwell, os cidadãos da Oceania devem, todos os dias, participar de um evento chamado “Dois Minutos de Ódio”. Nele, todos se juntam para assistir imagens de Emmanuel Goldstein e demais inimigos do Estado enquanto gritam e xingam em direção à tela.
A passagem mostra a fabricação de inimigos com rostos que, como o do Grande Irmão, são tão onipresentes e reais quanto vagos e simbólicos. Mas se em “1984” os “Dois Minutos de Ódio” se referem a inimigos políticos e manipulação de um Estado totalitarista, ele também pode ser uma estranha alegoria sobre o esporte. Pense bem: de maneira organizada e com lugar marcado, grande parte da sociedade vai para um ambiente fechado e controlado onde pode, sem ressalvas, despejar todo o ódio que está guardado no peito. “Vou lá me exaltar por uns minutinhos e já volto, ok?”. Não é o que eu digo, mas é o que eu faço quando vou ver um jogo do meu time.
Esse aspecto do esporte já foi explorado de diversas formas. Críticos já tentaram vender a paixão pelo futebol, por exemplo, como um caso de “pão e circo” em que a sociedade é condicionada a jogar sua atenção, energia -e ódio- aos campos ao invés dos reais problemas do mundo. Outros veem o esporte como uma válvula de escape fundamental e saudável, um lugar onde as emoções ficam à flor da pele de maneira sincera, mas sem reais consequências para o mundo real. Sim, ninguém vai me convencer DURANTE um jogo que o resultado de Corinthians e Palmeiras não quer dizer nada para o planeta, mas sabemos que não vai.
Dizer isso é diferente de dizer que o esporte não faz parte do mundo real. Ele faz. Há o impacto social e pessoal que a prática esportiva traz em qualquer um de nós, existe a importância econômica do esporte profissional e as questões sociais que ele consegue explorar por ser esse ímã gigante de atenção. Quando negros conquistam espaço para jogar na NBA, quando LeBron James diz que não vai só “calar a boca e driblar” ou quando atletas levam eventos políticos para suas comemorações ou falas, tudo isso é o esporte influenciando e sendo influenciado pelo mundo a sua volta.
Curiosamente, algumas vezes é nesse ponto que os “minutos de ódio” desaparecem. Dificilmente vemos aquela exaltação apaixonada das torcidas, dos cantos aos xingamentos, quando o assunto é a relação do esporte com o mundo real. Pelo contrário, o que vejo são pessoas que esbravejam barbaridades contra LeBron James na internet, que xingam o cara de tudo o que podem, baixarem a guarda ao ver seu impacto no mundo de verdade. Nem o crítico mais feroz ou irracional, nem quem acha que ele destrói times, técnicos e franquias, conseguiu criticar a construção daquela escola infantil em Akron. Até quando é para falar mal, como em algumas manifestações e comemorações de viés político, elas trazem o tom de crítica do mundo real, não do esporte.
Dito isso, existem sempre os outros. Nesta última semana o Utah Jazz baniu dois torcedores de seu ginásio por ofensas racistas contra Russell Westbrook. Um ainda na temporada passada, durante os Playoffs, com o vídeo sendo viralizado depois que um novo caso aconteceu há alguns dias.
To Russell Westbrook’s defense, here is even further proof of his previous interactions with Utah Jazz fans. In this video, @russwest44 is called a “boy” by a Jazz fan ahead of Game 4 of OKC’s first-round playoff series against Utah on April 23, 2018 at Vivint Arena. pic.twitter.com/lc6slA7fTo
— Eric Woodyard (@E_Woodyard) March 13, 2019
Casos de ofensas pessoais e racistas em jogos do Utah Jazz não são novidade, pelo contrário, mas os tempos são outros. Dessa vez Westbrook não ficou quieto e jogou o assunto para o alto, indiretamente pedindo para o mundo real reagir. A resposta foi rápida: primeiro com Donovan Mitchell, jogador negro do Jazz que reforçou que essa não era a primeira vez, que isso o machuca e disse que vai pensar em maneiras de trabalhar com o time e com a NBA para fazer “nossos ginásios mais inclusivos e abertos” e ” banindo discursos de ódio e racismo.” A dona do Utah Jazz, Gail Miller, leu uma declaração antes do jogo seguinte ao do ataque com uma linha parecida. Ela reforçou o pedido por respeito no ginásio, por respeitar os convidados que estão lá para jogar e reforçou a importância de “torcer para o Jazz e não pelo mal do adversário.”
Não precisamos nos estender ao comentar o caso dos torcedores banidos. Eles falaram o que falaram, há testemunhas e é tudo claramente racista. Não tem desculpa em qualquer lugar, muito menos em uma liga que tem como parte essencial da sua história a batalha dos negros por inclusão na sociedade.
A questão interessante sobre esses torcedores não é, portanto, se eles são racistas ou não. Isso eles deixaram claro. Mas sim por que foram racistas naquele momento. Por que em um ginásio cheio de negros, onde os próprios negros dominam o esporte e onde negros formam praticamente todo o elenco do próprio time do torcedor, eles buscaram expressões racistas na hora de ofender alguém que conhece apenas de ver jogar bola na televisão?
Nós torcemos para um time, em parte, porque queremos fazer parte de um grupo. É legal ver alguém nos representando num campo e ver outros semelhantes em nossa volta com um objetivo em comum. Faz bem para a autoestima e cria uma forma de identificação que hoje é ainda mais necessária já que o sobrenome familiar e a religião perderam essa força de significado para a maioria das pessoas.
O problema é que família, tradição e religião são, além de pilares da sociedade por séculos, também causa de muitas brigas, conflitos e até guerras. Se algo se torna sua identidade e alguém entra em conflito com ela, sua reação dificilmente será racional. Quando estamos em um estádio e ginásio, estamos no nosso templo e lá nos damos a liberdade de adotar suas regras próprias: podemos vestir roupas coloridas, usar máscaras, chapéus e gritar absurdos. Ninguém vai te condenar, todos ao seu redor são do mesmo time. O Draymond Green, ao comentar o caso de Westbrook, questionou essa liberdade de uma maneira divertida: “eu não entendo por que um homem adulto vai no trabalho de outro para falar merda”.
Draymond can't relate to the hecklers 🤷♂️
➡️ https://t.co/MY9whx8N6y pic.twitter.com/G6XiPckFPV
— Yahoo Sports (@YahooSports) March 17, 2019
A experiência é viciante porque é difícil ter essa sensação catártica em outro lugar. Num mundo de religião em segundo plano, o único outro lugar onde eu já vi pessoas ficarem tão fora de si e parte de um grupo foi em grandes shows de música. O público de um jogo de basquete não se sente “entrando no trabalho de alguém”, mas sim entrando em seu território. Para a torcida, o jogador é um representante das suas cores e paixão, não um mero trabalhador no expediente. É um conflito que se repete muito e geralmente acaba com a torcida condenando um atleta por não se importar tanto pelas vitórias quanto ele. Recentemente o Paris Saint-Germain até suspendeu o meia Adrien Rabiot porque ele ousou SAIR PARA UMA BALADA e se divertir na noite em que o time foi eliminado da Champions League. É aquela história: “o time numa situação dessa e o cara jantando?”
Mas se essa irracionalidade traz um lado divertido que dá ao esporte um status importante na nossa vida, ela também pode trazer o nosso pior. Isso acontece de as famosas brigas de estádio até o caso de racismo envolvendo Westbrook e os torcedores do Utah Jazz. Não são atitudes racionais -racismo nunca é-, são a paixão religiosa e catártica do esporte arrancando coisas que normalmente somos capazes de esconder. Eu sou calmo, mas xingo e me irrito vendo jogos. Tem gente que só é violenta em ambientes de multidão em estádios e esses caras, para tristeza da sociedade, viram o racismo deles sair pela garganta na frente de tudo e todos.
O esporte é uma ótima válvula de escape para nosso dia-a-dia, mas eventualmente ele bate de frente com o mundo real. Vaiar um rival ou o juiz é ainda se manter no espectro do jogo, um insulto pessoal ou racista ultrapassa essa barreira. E estamos tão acostumados a ver o jogo de longe, muitas vezes pela TV, que os envolvidos nem parecem pessoas de verdade. O Westbrook não é muito diferente, por exemplo, de tantos personagens de séries e filmes: alguém que eu só vejo na TV, sempre fazendo a mesma coisa e com características pessoais bem definidas pelo narrador. No caso do esporte, nós, a mídia.
Outro caso envolvendo a torcida e o armador do OKC Thunder aconteceu pouco antes daquele jogo contra o Jazz. Em Denver, Westbrook estava muito próximo da primeira fileira e acabou sendo tocado por um torcedor, o que não é permitido pela NBA. Ele se sentiu ofendido e virou para trás agressivo até perceber que era uma criança que havia quebrado a regra sagrada da interação atleta-torcida. Ele controlou a exaltação, mas deu lição de moral no pai:
Russell Westbrook pulled the dad card on a Nuggets fan after the kid gave him a little push. pic.twitter.com/b4nBTXlV9r
— ESPN (@espn) February 27, 2019
O mais interessante é o fim do vídeo, com o replay do toque do garoto. A impressão não é de que ele queria bater, agredir ou provocar Westbrook, ele está com o rosto de um curioso que quer saber se aquilo é mesmo de verdade. Parece uma criança que vê o Mickey (ou um ser humano vestido de Mickey, claro) num shopping e fica obcecado por chegar perto e colocar a mão. Muito das reações das torcidas para com os jogadores passa pelo fato de não vermos eles como pessoas de verdade.
Em uma coluna do Financial Times, o Simon Kuper, que escreve sobre política e futebol e é autor do ótimo Soccernomics, fala sobre como o populismo tem tomado conta da política mundial. Ele aponta que os populistas sempre têm um inimigo em especial, que muda dependendo da região do mundo, e que tudo funciona na base do ataque e da propaganda de medo contra esse inimigo. A estratégia, como vemos bem, tem dado certo. O próximo e perigoso passo, ele indica, é que os outros lados estão identificando essa estratégia e já a veem como essencial para futuras vitórias eleitorais. No exemplo da coluna: da mesma forma que Donald Trump elege os mexicanos como vilões, a sua oposição elege o próprio Trump como vilão central e passa a atacá-lo com a mesma fúria, paixão e exageros que levaram o presidente americano até onde está. Nas palavras de Kuper, “somos todos populistas agora”.
Assim como os insultos racistas contra Westbrook foram o esporte ultrapassando a fronteira para o mundo real, essa descrição de Kuper é o mundo real importando de maneira deturpada coisas do esporte. São os “dois minutos de ódio” transformados pelas redes sociais em muito mais do que só alguns minutinhos e são contra pessoas reais, não personagens que fingimos ser “do mal” porque vestem outro uniforme. É ódio real no lugar do ódio de mentirinha que gritamos na arquibancada.
Vivemos em uma época onde vemos jogadores aceitarem melhor seus papeis como membros da sociedade e querendo influenciá-la. Isso é fantástico, mas é importante saber separar os dois mundos, saber como funcionam e seus papeis para as pessoas. Os “minutos de ódio” podem ser saudáveis ou podem expor o pior lado da sociedade, torcer por um grupo pode ser uma experiência incrível no esporte, mas pode dividir uma sociedade sem diálogo fora dele.