Nos últimos anos um excelente texto começou a ficar famoso pela internet. Ao contrário da maioria dos que se viralizam na rede sob falsa autoria de escritores consagrados, esse era realmente de verdade e realmente excelente. Se trata do “Isto é água“, um discurso de paraninfo feito pelo escritor David Foster Wallace no Kenyon College em 2005. Além da qualidade do discurso, às vezes confundido com autoajuda mesmo com os apelos do escritor para que não seja lido assim, ele ganhou fama também por um trecho que às vezes é reprimido em reproduções. Nos últimos parágrafos ele diz que “A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos trinta, ou quem sabe aos cinquenta, sem querer dar um tiro na cabeça”. Wallace se suicidou três anos depois, aos 46, por enforcamento.
Por que raios um discurso desse é relevante num blog sobre a NBA? Por dois pontos. O primeiro diz respeito a outro trecho do discurso onde Wallace fala sobre a necessidade humana de se venerar alguma coisa para ser capaz de atravessar a vida adulta, e que uma educação autêntica pode ser o caminho para você simplesmente ter a liberdade de decidir o que venerar, “nas trincheiras da vida adulta, não existe isso de ateísmo”, diz ele. Mas indo além de religiões e crenças, ele fala da veneração ao dinheiro, poder, beleza e inteligência, assim como as consequências disso. Sobre a veneração do intelecto ele diz que “quem o venerar, quiser ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada”.
O segundo ponto diz respeito ao próprio escritor David Foster Wallace. Ele sofria de depressão, ansiedade e, segundo seu pai, apenas os remédios antidepressivos permitiam que ele conseguisse produzir alguma coisa. Mas com os efeitos colaterais das drogas, Wallace decidiu se afastar do remédio, com apoio de seu médico. Tentou outras terapias, que não deram certo. Mas ao tentar voltar para sua droga original, ela não teve o mesmo efeito e a depressão piorou, culminando no suicídio.
Eu me identifico mais do que gostaria com o primeiro ponto. Por diversas razões pessoais, sempre usei o intelecto como uma maneira de me afirmar, geralmente me sinto (ou me forço sentir) mais inteligente do que as pessoas ao meu redor e isso faz eu conseguir interagir socialmente de maneira decente. Mas o medo de ser pego em flagrante, de descobrirem que na verdade não sei tudo isso, é constante. Quando o assunto é basquete o medo é um pouco menor, já sei como embasar minhas opiniões de maneira respeitável, mas eu estava querendo falar de um assunto que só tem um pouco a ver com basquete. Durante o Draft, Summer League e no Twitter, falei e repeti meu amor ao ala Royce White, escolha 16 no Draft desse ano pelo Houston Rockets. White, em quadra uma mistura hipnotizante de Lamar Odom, Charles Barkley e Magic Johnson, sofre de um distúrbio de ansiedade que eu nunca soube explicar ou entender completamente.
Ao contrário das milhões de pessoas que sofrem de distúrbio semelhante, Royce White decidiu que seria completamente aberto em relação a isso. Nada de se esconder atrás de sorrisos falsos e desespero contido, ele iria falar a verdade e em público. Entrou no Draft da NBA dizendo das suas dificuldades e de como elas eram explicitadas quando ele enfrentava um de seus maiores pavores, as viagens de avião. Algo também chamado de “rotina” na vida de um atleta profissional. Considerado um dos maiores talentos entre os novatos de 2012, White estava jogando fora suas chances de ser uma escolha Top 10, ou até escolha de 1ª rodada, por ser sincero. Como mostrado no documentário do Grantland com White no dia do Draft 2012, se não fosse a aposta do Houston Rockets, era capaz de White ser esquecido devido aos receios em relação à sua saúde mental.
Achei o documentário um tesão. Achei Royce White um cara corajoso, diferente, mas ainda humano, sem aquele ar de super herói que atletas talentosos costumam passar. Sua criatividade e estilo estranho dentro de quadra pareciam um reflexo da pessoa pouco comum que ele era. Não que os distúrbios de ansiedade ou de saúde mental não sejam comuns, eles são em todos os lugares, sua honestidade que é rara. Keyon Dooling passou uma década na NBA sem ninguém perceber que ele estava quebrando por dentro, foi de repente, para nós, que ele decidiu se aposentar dizendo que não aguentava mais, citando dificuldades psicológicas que começaram com abusos sexuais sofridos na infância. Qualquer um que já deixou o preconceito de lado e viu um episódio de Lamar Odom e sua Kardashian na TV também já percebeu que lá existem problemas a serem resolvidos. E o que dizer de Stephon Marbury comendo vaselina em uma sessão de webcam que durou 24 horas? Ou o diacho da história de vida inteira de Kwame Brown. Diversos tipos de ansiedade e depressão consomem a cabeça de muita gente e nós não nunca queremos falar disso.
Eu não quis falar disso. Fiz meus comentários sobre Royce White, mas nunca me aprofundei no assunto por puro medo de ser considerado um ignorante. Li muito sobre meu mais novo jogador favorito, mas era comum eu adorar o texto e ver os comentários de gente aparentemente gabaritada dizendo que aquilo era um monte de merda. Eu não sabia no que acreditar. Comecei a ficar perturbado quando o assunto Royce White passou a ser mais central. Primeiro ele não apareceu na primeira semana de training camp, depois não foi escalado para os jogos, apareceram as notícias de que ele faltou a treinos e, no dia que ele foi transferido para a D-League, a liga de desenvolvimento da NBA, White usou sua conta no Twitter para desabafar de maneira confusa e furiosa. Ignorante mais uma vez, não consegui interpretar tudo o que foi dito por ele, mas saquei que as críticas se baseavam em duas coisas, (1) o Houston Rockets não estaria cumprindo com as promessas feitas anteriormente em ajudá-lo com seus problemas psicológicos e (2) ele não aceitava ficar quieto em uma liga onde os jogadores são tratados como mercadoria.
Fiquei pensando se isso tinha a ver com sua ansiedade. Algumas pessoas dizem que quando o momento é difícil para pessoas nessa condição, agir de impulso pode ocasionar situações de fúria como essa. Mas isso não serve também para pessoas sem distúrbio algum? E se fosse outro jogador, em outra situação, reclamando de um time que não cumpre o prometido? E, porra, todos sabemos que jogadores são mercadorias no esporte profissional. O quanto dessa enxurrada de mensagens era consequência da tão falada ansiedade, o quanto era só verdade dita por um jogador que se comprometeu de maneira quase religiosa a tratar tudo publicamente, de maneira aberta e honesta, nas palavras dele. Será outro tipo da veneração de David Foster Wallace? Pessoas que veneram a verdade e a honestidade aberta e viram reféns dela, transformando situações ruins em catástrofes públicas?
Curiosamente, ao ler os desabafos de Royce White, eu só conseguia pensar em uma coisa: Lady Gaga. Para desespero de alguns leitores de cabeça de azeitona (não no sentido Mo Williams), que ficam bravos ao saber que gosto de ver novela, eu sou fanático pela cantora pop e estava no Morumbi há algumas semanas para assisti-la ao vivo. White dizia falar em nome e para a causa dos que sofrem distúrbios de ansiedade, a sua AnxietyTroop, da mesma forma que Gaga fala a seus Little Monsters sobre bullying, os dois com a bandeira do “não deixe os outros mudarem quem você é”. As mensagens de incentivo a White no Twitter são de pessoas que sofrem de problemas parecidos e que dizem ver nele um exemplo de superação. Não difere muito do que a comunidade gay diz sobre a cantora na ajuda para sair do armário sem medo e sem o receio de que a sexualidade seja o único fator determinante em sua personalidade.
É impressionante, para não dizer encantador e inexplicável, como um dos grandes talentos de Lady Gaga é parecer honesta e pura em tudo o que fala. Isso atrás de quilos de maquiagem, camadas de roupas bisonhas e muita interpretação e performance. Parece armado, mas nunca ensaiado. Parece uma paródia de um amigo da escola, só que com a produção de Hollywood. Como White, Gaga não parece uma super heroína, mas uma pessoa que você esbarra no metrô e que calhou de virar uma estrela como num filme cômico e surreal da Sessão da Tarde.
Essa humanidade, porém, não atrai só fanáticos, mas também raiva. Durante o discurso twitterístico de White, não faltaram mensagens contra ele, dizendo para “virar homem” e ir jogar. Ou para deixar de frescura, que “você está recebendo milhões para isso” e que “se fosse eu no seu lugar, estaria aproveitando melhor essa chance”. Curiosamente essa raiva do “se fosse eu no seu lugar” tem um pouco de Lady Gaga também. Por não parecer ter a beleza de Katy Perry ou o glamour atemporal de Madonna, pela história comum, as pessoas veem na Gaga uma coisa de “poderia ser eu lá, mas essa aí deu sorte.”
O ódio anti-White resultou numa ampliação da discussão, que rendeu um ótimo post no HoopsWorld escrito por um psicólogo. A palavra profissional publicada ontem é que me deu o mínimo de confiança para finalmente escrever sobre o assunto mesmo com o medo de ser desmascarado. Travis Heath, o psicólogo, começa o texto falando de um paciente seu que liga para ele desesperado, dizendo não querer viver mais. Descobrimos depois que ele tem um distúrbio supostamente igual ao de Royce White. Digo supostamente porque o próprio Heath lembra depois que apesar das definições clínicas oficiais, cada caso é um caso e que ele nem iria comentar o caso de White em específico por nunca ter se encontrado com o jogador, “a ciência de diagnosticar uma doença mental existe em um sistema complicado e imperfeito”, diz ele.
Mas o grande ponto do texto do psicólogo é sua conclusão, essa ligada diretamente ao caso de White. Ele diz que muitas pessoas estão preocupadas com a carreira de White, de como essa situação de confrontar o Rockets em público irá causar problemas. Que ele pode dar adeus à NBA sem que ninguém se arrisque nunca mais a dar um contrato para ele. Como o próprio White sabe, ele é uma mercadoria e está perdendo valor a cada dia que falta no treino. Lembra Lady Gaga ao fazer sua entrada triunfal pendurada como uma peça de carne bovina num açougue dizendo que “se vocês me acham só um pedaço de carne, serei um pedaço de carne”. Mas Heath diz que nossa preocupação não deve ser essa da carreira, do commodity que ele virou, mas sim a saúde de White. É o que conta, é o que faz a gente chegar aos trinta ou cinquenta sem querer dar um tiro na cabeça. Talvez, e digo isso com dor no coração, o mundo machista, baseado em resultados, do jogador-mercadoria e da competitividade sem limites da NBA não seja para ele. Não seria nada vergonhoso ele viver de outra coisa ou de outra forma.
Largar a NBA, porém, traria consequências à sua mensagem. Ele não diz querer só jogar basquete, o discurso de Royce White envolve usar o basquete como plataforma para falar sobre sua condição, que ele compartilha com tantos outros. Podemos interpretar isso como a Lady Gaga querendo falar que seus Little Monsters não tenham medo de serem quem são, mas depois se aposentar por causa das críticas ao seu estilo. É David Foster Wallace mostrando que, no fim das contas, ele mesmo não conseguiu o que venerar para ultrapassar a banalidade da vida adulta sem acabar com a própria vida.
Um outro texto, este escrito por Derek James no Hardwood Paroxysm, coloca o lado de uma pessoa da Tropa de Ansiedade de White. O autor sofreu com depressão e ansiedade a vida toda, largou um emprego que antes parecia o dos sonhos por isso, mas hoje consegue trabalhar escrevendo sobre basquete em 3 sites diferentes. “As ações de White tem ajudado alguém até agora? A maneira com que lidou com Adrian Wojnarowski e o texto escrito sobre ele, os ataques ao Houston Rockets e a maneira com que tem interagido com seus seguidores. Ele não está fazendo nada para mudar a percepção que as pessoas tem de quem tem problemas psicológicos”. Para mostrar isso, ele apresenta a mensagem de um seguidor de White no Twitter que diz que achava que pessoas com distúrbios de ansiedade conseguiam trabalhar normalmente, mas que o jogador está mostrando o contrário.
Algumas pessoas chegaram a dizer que Royce White estaria insatisfeito por não estar entrando nos jogos, e que estaria achando que o Rockets não o faz por sua condição psicológica. E que assim ele estaria usando seu distúrbio para ganhar privilégios como minutos em quadra. Ele nega, claro, e do lado de fora no meu medo de ser ignorante, não tomo lado algum. Acho que Derek James e Adrian Wojnarowski tem razão ao dizer que Royce White está jogando sua carreira no lixo ao agir desse jeito, seja esse o jeito certo ou errado. Mas concordo mais ainda com o psicólogo Travis Heath de que sua carreira não é a coisa mais importante em jogo aqui.
O Danilo não me zoa por gostar da Lady Gaga, ele parece até gostar do estilo dela, mas certamente não gosta da música. Segundo ele, e devo concordar, por trás do visual de outro planeta (ela se diz de outro planeta no show) está uma música pop que não tem nada de revolucionária ou diferente. Não existem vestidos de carne ou declarações inteligentes nas canções. Não sei se de maneira consciente ou não, Lady Gaga é bizarra-mas-nem-tanto, no ponto ideal para atingir o máximo de pessoas e assim passar a sua mensagem. Se as roupas fossem um pouco mais estranhas, se a música fosse um pouco mais experimental, ela seria uma aberração artística idolatrada por meia dúzia de intelectuais. O pop faz ela passar sua mensagem para milhares de pessoas que, como eu, gostam desse tipo de música.
A decisão de Royce White tem muito disso. Se ele quer falar em nome de um grupo, terá que engolir sapos que o indivíduo não parece aceitar até agora. Isso envolve ser um pedaço de carne e jogar garbage time. Envolve não conseguir tudo o que ele acha necessário para levar uma vida completamente saudável. Tudo para poder lutar para que isso mude no futuro, para que todos os times tenham um dia, como sugere o psicólogo Travis Heath, uma equipe psicológica assim como tem preparadores físicos. Royce White não estará errado se abrir mão disso para simplesmente viver uma vida saudável, mas para ser quem ele diz querer ser, essa voz da sua Tropa da Ansiedade, ele terá que se tornar um pouco mais pop.
Não culpo White por se debater dentro do mundo da NBA, sou mais parecido com ele do que gostaria. Ele só não quer fazer parte do que não aprova e tem um compromisso de veneração com a sua honestidade, não vai deixar quieto. David Foster Wallace diz que “a verdade com V maiúsculo (ela de novo) tem a ver com aquilo que é real e essencial”, e conclui falando que “mais um clichê se prova verdadeiro: a nossa educação leva mesmo a vida toda e ela começa agora”. Royce White acabou de sair da faculdade como os que foram destinatários do discurso do escritor, a mensagem deveria servir para ele. O que é essencial e real para ele? Isso definirá a continuação de sua carreira.