Comprometimento

Assim que Kyrie Irving pediu uma troca (por motivos que abordamos longamente nesse post aqui) a posição do Cavs foi afirmar que o jogador ainda estava sob contrato e que portanto, se fosse necessário, ele jogaria normalmente a próxima temporada. Uma série de relatos mostravam que isso seria impossível, que o clima interno era irremediável e que LeBron James nunca mais seria capaz de dividir uma quadra com Irving, mas o posicionamento do Cavs era simplesmente uma mensagem em código, que poderia ser traduzida como “NÃO VAMOS ACEITAR TROCA MERDA”. Irving tem ainda mais 3 anos de contrato com o time, apenas 25 anos de idade, é um dos melhores jogadores da NBA e não faz nenhum sentido para a equipe abrir mão dele em troca de nada apenas para melhorar o clima dos vestiários. A situação do Cavs fica ainda mais delicada porque LeBron James, com apenas mais um ano de contrato, só decidirá seu futuro na equipe ao final da temporada de acordo com os resultados obtidos e o esforço da diretoria em melhorar continuamente o elenco. É difícil planejar a longo prazo quando o jogador principal do seu time assina contratos a conta gotas, podendo ir embora frente a qualquer pequeno deslize.

Ao contrário de Paul George e Jimmy Butler, que tiveram pouco valor de troca, o Cavs esperava conseguir com Kyrie Irving o impossível: tanto um jogador que fosse capaz de ajudar o Cavs imediatamente (para que o time possa lutar por título e assim aumentar as chances de manter LeBron James para a temporada seguinte) quanto peças capazes de ajudar o time num futuro hipotético em que eles precisem reconstruir sem LeBron, incluindo jovens promessas, contratos longos e baratos ou escolhas de draft. Qual time tem as possibilidades de oferecer esse tipo de pacote? Times assumidamente interessados, como o Phoenix Suns, não conseguiriam abrir mão de todas essas peças nem se quisessem. Por não estar (ao menos em teoria) desesperado, sem correr o risco de perder Irving por nada já que seu contrato é longo e na pior das hipóteses disposto a reconstruir outra vez ao seu redor se LeBron James partir, o Cavs teve a possibilidade de simplesmente recusar o Suns e esperar a proposta ideal. Que, sejamos sinceros, apenas o Boston Celtics poderia dar.

Há 10 anos atrás, o Celtics era um time em reconstrução que abriu mão de seus jovens jogadores e escolhas de draft para formar um super-time com Paul Pierce, Ray Allen e Kevin Garnett, ganhando um título da NBA no processo. Desde que esse time desmontou, o Celtics tem mantido a filosofia de que a melhor maneira de construir um time vencedor é estocar jovens talentos, contratos baratos e escolhas de draft futuras, apenas esperando o momento certo para transformá-las em estrelas consagradas e tentar agarrar o troféu de campeão. Esse plano só saiu um pouquinho do trajeto porque o Celtics acumulou tantos jovens talentos que eventualmente começou a vencer jogos de verdade e, sob comando do muitas vezes desacreditado Isaiah Thomas, alcançou as últimas Finais da Conferência Leste.

De certa maneira as Finais do Leste redimiram os últimos anos de trabalho de Danny Ainge, General Manager do Celtics, duramente criticado por estar segurando DEMAIS seus jogadores de valor e correr o risco de morrer com todas essas peças, eventualmente desvalorizadas, na mão. A lógica por trás dessa crítica é simples: escolhas de draft e jogadores recém-draftados ainda não entraram numa quadra da NBA e portanto têm seu valor medido NO SONHO, no infinito e maravilhoso universo das possibilidades. Sem nunca ter visto o jogador profissionalmente em atividade, é possível acreditar que todos eles serão estrelas insuperáveis. A cada ano que passa, no entanto, o peso da REALIDADE recai sobre esses jogadores, expondo seus defeitos e suas limitações. A não ser que o jogador seja de fato uma estrela, um dos grandes talentos de sua geração – o que, estatisticamente, não faria sentido acontecer com todos os jovens ou escolhas de draft do Celtics – seu valor só tende a diminuir com o tempo. Em busca sempre da troca ideal, da situação perfeita, Danny Ainge foi estocando novos jogadores e eventualmente se viu numa situação complicada: ou os jogadores perderam valor de troca ou então se valorizaram demais, tornando a possibilidade de mantê-los a longo prazo virtualmente impossível. Avery Bradley foi trocado para abrir espaço salarial já na certeza de que o Celtics não teria condições de reassiná-lo, por exemplo. Isaiah Thomas, vindo da melhor temporada de sua carreira, deixou claro estar interessado num contrato máximo que o Celtics, tendo que manter todas as suas outras jovens peças, teria muita dificuldade em pagar.

Danny Ainge, que de certa forma empurrou com a barriga esse time rumo a uma Final de Conferência, começou a ter que tomar decisões sobre o futuro da franquia. Uma das possibilidades seria simplesmente insistir no elenco atual, seja pagando pelos jogadores que se valorizam demais (na esperança de que os outros jogadores mais jovens melhorem com a experiência e o time evolua naturalmente, já que o time ainda não parece pronto para vencer um título), seja abrindo mão dos jogadores mais caros e substituindo-os pelos jogadores mais jovens que forem ganhando espaço, o que acaba sendo um desperdício de talentos. A outra possibilidade seria se aproveitar da visibilidade, do fato de que o time já está na elite do Leste, para começar a assinar grandes estrelas e trocar essas promessas futuras por jogadores consagrados. Nesse caso, contratos máximos seriam oferecidos – mas não para Isaiah Thomas, coitado.

Sou um grande admirador do “Pequeno Gigante” que nos assombrou com sua armação na temporada passada e times normais em reconstrução que encontrassem um armador desse nível certamente o agarrariam com unhas e dentes. Mas o Celtics está numa situação diferente: ele não precisa ficar com NINGUÉM simplesmente porque esse jogador deu certo. Como não faltam ao time moedas de troca e Danny Ainge pode se embriagar eternamente na cachaça que é a POSSIBILIDADE de suas futuras escolhas de draft, jogadores mais jovens ou UMA TROCA QUE PODE SURGIR A QUALQUER MOMENTO, não há qualquer motivo para se comprometer em relacionamentos sérios e duradouros com a primeira pessoa que parece estar dando certo, especialmente se ela tem uma preocupante lesão no quadril. Basicamente, Danny Ainge transformou o Celtics num SOLTEIRÃO ENDINHEIRADO. E como nos mostram todos os filmes bregas de Hollywood, essa é a melhor maneira de se morrer sozinho.

O primeiro passo rumo a um comportamento redentor foi se comprometer com Gordon Hayward, um dos jogadores mais completos de toda a NBA com apenas 26 anos de idade. O contrato máximo exigiu a troca de Avery Bradley, diminuindo os valores eternamente guardados ali na gaveta. Mas a incapacidade (ou falta de interesse) do Celtics em conseguir trocas por Paul George e Jimmy Butler, especialmente porque eles saíram incrivelmente baratos, ainda nos dava indícios de que Ainge queria se ater às possibilidades infinitas de um elenco promissor. Até que, na tarde de ontem, Ainge saiu completamente da zona de conforto ao trocar por Kyrie Irving. Agora é oficial: Ainge é um homem casado.

O pacote que o Celtics enviou era o único que o Cavs aceitaria por abordar simultaneamente presente e futuro: Isaiah Thomas tapará o buraco imediato no elenco deixado por Irving, Jae Crowder dará uma profundidade defensiva que o Cavs atual nunca experimentou, e a escolha de draft do Nets em 2018 prepara a equipe para a eventual saída de LeBron James. Não consigo lembrar de outra estrela que tenha sido trocada por um pacote tão OBVIAMENTE BOM num passado recente. Embora o Cavs perca algumas coisas na troca – os arremessos de longa distância de Irving são a primeira coisa que vem a cabeça, já que Irving é o melhor arremessador de três pontos vindo do próprio drible em toda a NBA – o resto do pacote é suficiente para que a troca fosse irrecusável. O Cavs bateu o pé afirmando que não aceitaria trocas ruins, então o Celtics foi obrigado a oferecer a MELHOR TROCA POSSÍVEL.

Não restam dúvidas de que o Celtics teve que abrir mão de muitas coisas – Jae Crowder com um contrato minúsculo de cerca de 7 milhões por ano e mais 3 temporadas, Isaiah Thomas e todo seu esforço e dedicação nos Playoffs passados, e mais uma escolha de draft que potencialmente pode ser o melhor jogador da história do Universo conhecido – mas olhar as peças que estão sendo enviadas individualmente é perder o real SIGNIFICADO dessa troca. O Celtics está abrindo mão de suas promessas e sonhos de grandeza para dar o maior passo em uma década rumo a REALIZAR ESSA GRANDEZA. Quando tornamos uma coisa real, é normal abrir mão de promessas e possibilidades – até porque, se a realidade der certo, essas promessas sequer farão sentido mesmo. É muito dolorido abrir mão de uma escolha de draft, mas o Celtics com Ray Allen, Paul Pierce e Kevin Garnett não sentiu falta do draft quando ganhou seu anel de campeão.

Às vezes me parece que o Celtics e seus torcedores são o exemplo típico de um adolescente na “Modernidade Líquida”: vai para uma festa mas não dura mais do que meia hora por lá porque a festa em que ele NÃO ESTÁ pode estar melhor ainda, e assim migra de lugar em lugar porque a PROMESSA de amor, sexo e diversão é sempre maior do que aquilo que ele encontra no lugar em que está em qualquer dado momento. Sonhar com as coisas que o Celtics poderia alcançar, draftar, trocar ou segurar é sempre mais PODEROSO do que ter que olhar para um time real, pronto, estabelecido na sua cara, e ter que MORRER DE CAGAÇO porque talvez ele não seja bom o suficiente para ganhar do Golden State Warriors. Todo comprometimento é um ato desesperado de coragem e sempre abrimos mão de mais coisas ao pisar na realidade do que a própria realidade jamais seria capaz de nos dar.

É claro que o Celtics deu coisas demais por Irving, mas essa era o preço NECESSÁRIO para ter um jovem armador de 24 anos, um dos melhores pontuadores da NBA, excelente arremessador, no auge de sua forma física e disposto a provar que é capaz de brilhar e comandar longe da sombra de LeBron James. Por melhor que tenha sido a temporada passada de Isaiah Thomas, Irving é uma melhora imediata em vários aspectos. Primeiramente, Irving está saudável, enquanto o quadril de Thomas ainda preocupa. Além disso, Irving é um defensor individual bastante sólido, sendo um desastre apenas na defesa coletiva por se confundir o tempo todo com seu posicionamento, enquanto Thomas era, por conta do seu tamanho diminuto, uma eterna nulidade defensiva que causou problemas nos Playoffs por ter que ficar constantemente escondido nos piores jogadores adversários. Por fim, Irving produz basicamente o mesmo número de assistências e quase o mesmo número de pontos, mas tocando consideravelmente menos na bola – Irving tem um “usage rate” 4% menor que Thomas. Isso faz muita diferença quando lembramos que os piores momentos do Celtics nos Playoffs passados vieram quando as defesas adversárias impediam Isaiah Thomas de armar o jogo, colocando a bola nas mãos de Al Horford. Nessas condições Irving é mais eficiente, especialmente no perímetro, e muito mais constante – seja durante os jogos, seja durante a própria carreira.

Por sua vez, a situação de Irving não poderia ser melhor: Gordon Hayward é uma estrela, mas uma estrela duramente criticada em Utah por não assumir a liderança da equipe e que tem o estranho hábito de sumir por alguns momentos da partida; Al Horford, um dos jogadores mais sólidos de sua posição, tem o poder mutante de ser INVISÍVEL, produzindo com pouco tempo de posse de bola, dando passes simples e eficientes, ajudando onde for possível e nunca exigindo qualquer papel de primazia ou liderança. Aqui está um elenco de estrelas em que Kyrie Irving não terá que se preocupar com EGOS INFLADOS, disputa pela bola ou brigas pela liderança, tanto dentro quanto fora das quadras. Se a sabedoria popular dizia que o que Irving desejava, ao fugir da presença incrivelmente opressiva de LeBron, o levaria a um time fracassado em que teria que amargurar anos fora dos Playoffs, o que vemos acontecer é o exato oposto. Irving tem o que quer, a situação psicológica ideal, e deveria estar – no PAPEL – garantido nas Finais da Conferência Leste mais uma vez, possivelmente contra o próprio LeBron, numa historinha que por si só já fará a temporada valer a pena.

O Celtics terá que amargar algumas dificuldades, a defesa precisará encaixar sem Avery Bradley e Jae Crowder e jovens promessas como Jaylen Brown e Jayson Tatum terão que ser alçadas a grandes minutos logo de cara, como foi o caso de um jovem Rajon Rondo na hora de compor aquele elenco com Allen, Pierce e Garnett. Mas é o preço a se pagar para ser um time real, com três estrelas jovens e chances palpáveis de título. Talvez os torcedores sofram um pouco, afinal as possibilidades são sempre perfeitas e a realidade terá inevitavelmente seus defeitos, mas para quem está de fora é bom ver o Celtics finalmente se comprometer com um elenco verdadeiramente poderoso, ao invés de um projeto com quase uma década de duração.

E para os fãs de basquete, o mais incrível é que isso tenha acontecido sem comprometer o atual campeão do Leste: o Cavs não deve ter dificuldades de encaixar Isaiah Thomas no elenco e com LeBron em quadra, além de Derrick Rose no banco de reservas, Thomas pode finalmente descansar como seu corpo necessita. Na temporada passada, o Celtics tinha MUITAS dificuldades sem ele em quadra, coisa que o Cavs não deve enfrentar nem mesmo com sua política de descansar seus jogadores sempre que possível. Faremos um post com as consequências táticas dessas trocas em breve. Mas por enquanto, basta saber que temos uma nova e revigorada rivalidade no Leste, um confronto que abrirá a temporada regular e possivelmente fechará as Finais de Conferência, e que apenas fortalece uma Liga que vê cada vez mais forças organizarem-se, assumindo o banho de realidade, para enfrentar a supremacia do Warriors.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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