Depois de perder em janeiro o primeiro confronto com o Warriors na temporada por 30 pontos, vencer a revanche em San Antonio não era apenas questão de honra, era também um atestado de que a temporada não foi em vão, de que a derrota para o Warriors nos playoffs não está já determinada de antemão. Vencer o Warriors em San Antonio, onde o Spurs ainda não perdeu nessa temporada – e onde apenas 3 times conseguiram a façanha de ficar à frente no placar em algum momento do quarto período – com o adversário desfalcado de Andrew Bogut e Andre Iguodala, jogando pela segunda noite seguida e numa sequência de 6 jogos em 9 noites no fundo não quer dizer nada. Mas perder para o Warriors mesmo com todas essas vantagens decretaria a impossibilidade simbólica de derrotar os atuais campeões e um mergulho na total desesperança. Ganhar não mostrou nada, mas perder teria sido o fim. Vencendo em casa, aprendemos que o Spurs ainda vive – e que essa constatação, ainda que um tanto óbvia, mostra que a temporada está longe de acabar.
Gastamos muito tempo cogitando se o Warriors pouparia ou não seus jogadores em busca do recorde histórico de vitórias numa temporada, atualmente do Bulls de 1996. Mas a vitória do Spurs incrivelmente decidiu a questão: o Warriors não descansará seus jogadores porque não pode se dar ao luxo. Com 13 partidas para o término da temporada, Spurs e Warriors possuem apenas 3 vitórias de diferença e ainda se encontram mais duas vezes antes dos playoffs. Caso o Spurs consiga mais duas vitórias, consegue dois feitos simultâneos: encosta na tabela e ainda vence a série contra o Warriors na temporada regular, o que permite que eles tenham mando de quadra na pós-temporada mesmo em caso de terminarem empatados em primeiro lugar no número de vitórias. Ou seja, o Warriors terá que jogar com tudo contra o Spurs no próximo mês, e não poderá bobear com os demais adversários para não correr o risco de bizarramente perder a primeira colocação depois de passear tranquilamente por toda a temporada regular.
Tudo isso porque a temporada histórica do Warriors veio, por simples privilégio do acaso, acompanhada por uma temporada história do Spurs. Isso impede que os dois times se acomodem – com aconteceu com o Cavs lá na outra Conferência – e, mais do que isso, força com que atinjam níveis surreais de qualidade e aproveitamento. De certa forma, a existência desse Warriors criou esse Spurs determinado a vencê-los – a ponto de colocar Tim Duncan no banco e usar Boris Diaw de titular! – e que, no processo, atropela os demais adversários. E o Warriors, por ver esse Spurs determinado vencendo jogo atrás de jogo, não pode colocar o pé um segundo no freio. Em San Antonio, o Spurs venceu nada menos que 44 partidas seguidas, suficiente para, em caso de mando de quadra, colocar um arrepio na espinha do Warriors. Podendo perder apenas mais 2 vezes nos 13 jogos que restam para bater o recorde histórico, o Warriors vai ser empurrado pelo Spurs rumo à meta impensável. Se o recorde rolar, o Spurs vai ser co-autor.
Não resta dúvida de que essas duas equipes tornam melhores uma à outra. É por isso que embora a vitória do Spurs em cima de um Warriors avariado pelas adversidades do calendário e da enfermaria não signifique coisa alguma, ela ao menos mantém vivo o respeito e o ciclo virtuoso que faz um empurrar o outro rumo ao sucesso impensável. Manu Ginóbili percebeu isso ao pedir humildade ao Spurs após a vitória do fim de semana, dizendo que o Warriors estava desfalcado, que o adversário não será o mesmo na pós-temporada, e que eles precisam estar prontos para os dois próximos confrontos entre eles. O que quer dizer que nem o Spurs encontrou a fórmula mágica para vencer o Warriors, e nem o Warriors é uma força invencível imune às adversidades. Somam-se as duas coisas e o que teremos é um time que historicamente descansa seus principais jogadores no fim da temporada (especialmente desde que Duncan e Ginóbili já mostram os sinais da idade) tendo que usar todo mundo para manter viva a possibilidade de terminar em primeiro lugar do Oeste. E que para isso terá que consolidar uma estratégia capaz de derrubar o Warriors nos dois confrontos de temporada regular que restam, quando dificilmente os atuais campeões estarão tão cansados e provavelmente contarão com a volta de Bogut e Iguodala, que planejam retornar ainda esse mês.
Por isso, mais importante do que o fato isolado de que o Spurs venceu o Warriors é pensamos em COMO isso aconteceu – e quais as possibilidades de que essa maneira de jogar funcione novamente dentro daquilo que conhecemos de ambas as equipes. Certamente a mudança mais radical que vimos em quadra foi a ausência proposital de Tim Duncan, que veio do banco de reservas apenas pela terceira vez em toda a sua carreira, e jogou míseros 8 minutos esquecíveis. Essa aberração aconteceu para que Boris Diaw pudesse ser titular e olhar diretamente para dentro dos olhos de sua criação involuntária mas bem-sucedida: Draymond Green.
No post exclusivo para assinantes em que sugerimos que o Cavs deveria experimentar usar LeBron James como pivô, traçamos a linhagem de pivôs que armam o jogo e arremessam de longe que originou Draymond Green e seu estilo essencial para o funcionamento do Warriors. Essa linhagem começa, nos termos atuais, no Boris Diaw em sua passagem como pivô do Phoenix Suns – antes dele, Robert Horry no Rockets já havia estabelecido a importância de alas de força arremessarem de fora, mas pivôs nessa mesma situação nunca haviam tido tanta importância e gerado tantas assistências quanto Boris Diaw provou possível. É interessante então que o Spurs, famoso por sempre forçar os adversários a jogar em seu próprio ritmo e suas próprias regras, tenha aberto mão de Duncan para colocar em quadra alguém que pode emular o jogo de Draymond Green. Quando Diaw era o pivô do Suns, enfrentava um Spurs que o colocava em situações horríveis de ter que marcar jogadores muito mais altos e fortes, e diminuía o ritmo de jogo que era, daquela maneira corra-pela-sua-vida, a marca registrada do Suns. Mas agora, Popovich está lá aceitando as regras do adversário, colocando o criador para enfrentar sua criatura, e tornando o Spurs o mais perto possível do Warriors.
Mas a pegadinha está no fato de que Diaw ainda é mais alto do que Draymond Green, e LaMarcus Aldridge foi instruído a jogar mais perto da cesta do que fez até agora nessa sua primeira temporada com a equipe. Copiando a versatilidade ofensiva e defensiva do Warriors, o Spurs no entanto insistiu com um jogo mais físico e perto do aro sempre mantendo algum jogador de garrafão capaz de acertar seus arremessos de fora para impedir o Warriors de ocupar integralmente o garrafão e impedir a chegada dos passes, como sempre fazem. Quando Aldridge foi lá trombar próximo à cesta, até mesmo abrindo mão de arremessos simples que ele geralmente daria por cima dos seus marcadores em situações normais, David West ou Diaw ficavam no lado oposto da bola para garantir uma rota de passe para fora e impedir que Draymond Green pudesse alterar sua rota e entrar entre a bola e a cesta. Nessa situação, Duncan não tem nem a velocidade nem o arremesso consistente necessário para encarar o desafio. Na defesa, Duncan não conseguiria acompanhar Draymond Green no perímetro como os outros jogadores. Era o momento certo para ficar no banco.
Boris Diaw entrou em quadra com carta branca para ser agressivo, jogar de costas para a cesta e explorar seus adversários. Com Draymond Green marcando LaMarcus Aldridge, Diaw era marcado por Harrison Barnes, infinitamente menor do que ele. O resultado foram jogadas assim:
Notem como Aldridge está puxando Draymond Green para trás da cesta, impedindo que ele entre na frente de Diaw, e quão LONGE está Kawhi Leonard, para dificultar a dobra em Diaw que o Warriors tanto ama fazer.
A jogada abaixo mostra algo parecido, mas com finalização do LaMarcus Aldridge. Boris Diaw está no perímetro, forçando Varejão a ficar quase na linha de 3 pontos, enquanto Tony Parker vende um passe para a zona morta onde está Kawhi Leonard só para impedir a dobra em Aldridge:
A finalização é simples porque Green é baixo demais para marcar seus adversários pelas costas, ele precisa de dobras, infiltrações para poder pular na frente e ajuda para parar as rotas de passe. Mas a combinação de tamanho e versatilidade do Spurs tornou a vida do coitado bastante difícil. E olha lá o Boris Diaw andando pra trás na jogada porque sabe bem, por EXPERIÊNCIA PESSOAL, como é ser um desses pivôs. Contra o Bogut, a estratégia será mais difícil de fazer, mas aí Duncan volta a ser relevante e ganhar seus minutos. O que importa é que o Warriors teve muito mais dificuldade de usar seu elenco mais baixo em quadra, que é justamente quando eles conseguem melhor resultado ofensivo. Contra o Spurs, o Warriors teve sua MENOR pontuação da temporada – e se o maior responsável por isso foi a defesa monstruosa do Spurs, a opção por Diaw e Aldridge no ataque também não permitiram que o modo “ataque total” do Warriors fosse inteiramente viável.
Mas é claro que a defesa decidiu a partida. Foi apenas a quarta vez que um time consegue liderar um jogo contra o Spurs no quarto período nessa temporada, e o Warriors ganhou TODOS os jogos em que conseguiu empatar ou liderar um jogo no quarto período. Mas completamente sem ritmo de ataque, sendo obrigado a jogar num ritmo mais lento, o Warriors simplesmente não foi capaz de manter a liderança.
A escolha defensiva do Spurs foi bastante arriscada e difícil de executar, mas certamente teve o resultado esperado. Há muito que a NBA inteira tenta responder à pergunta: quando Stephen Curry recebe um corta-luz, é melhor manter a marcação ou trocar os defensores? Cada resposta tem suas desvantagens: manter a marcação dá espaço para Curry arremessar, trocar o defensor coloca um defensor mais lento em cima do Curry para que ele crie espaço para um arremesso ou infiltre. O Spurs resolveu TROCAR SEMPRE, em parte porque os defensores da troca não são tão lentos assim: Diaw e Aldridge dão pro gasto. Curry até conseguiu criar um arremesso em cima do Aldridge, mas sua velocidade de pernas tornou a vida do armador difícil e o incentivou a usar a diferença de tamanho para infiltrações – onde o Spurs tem mais facilidade de defender, amontoar o garrafão e contestar o arremesso.
Mesmo quando o Curry nem usa o corta-luz, o marcador troca MESMO ASSIM. Vejam que é o Boris Diaw trocando num corta-luz não utilizado que acaba limitando o espaço do Stephen Curry e permitindo que Danny Green dê o PRIMEIRO TOCO NUMA BOLA DE TRÊS que o Curry sofreu na temporada.
Além disso, o Spurs optou pela LOUCURA de trocar em todo corta-luz mesmo quando a bola sequer está por lá! Uma das capacidades menos elogiadas no Curry, e que o tornam um jogador imparável, é quão bem ele faz corta-luz fora da bola para outras pessoas e de repente recebe a bola para um arremesso porque seu defensor está tentando cobrir o jogador que Curry deixou livre. Mas o Spurs resolveu que caso Curry faça ou receba um corta-luz sem a bola, os marcadores devem trocar e acompanhá-lo. Basta um erro para sua defesa DESMONTAR INTEIRA nesses casos, mas quando dá certo, o resultado é esse aqui:
Com isso, Curry teve pouquíssimo espaço para arremessar e não precisou ser marcado exclusivamente por Kawhi Leonard, dividindo a responsabilidade com o resto da equipe. Aliás, Tony Parker foi o responsável por marcar Curry em mais da metade das posses de bola, mas como qualquer corta-luz gerava troca de marcadores, não foi engolido vivo. Sobrou para Stephen Curry achar seus companheiros no pick-and-roll e forçar alguns arremessos meio loucos. Os arremessos não caíram – poderiam ter caído, e o Warriors teria vencido – mas os pick-and-rolls deram bastante certo, só que não compensam. O Spurs defende melhor no garrafão e a jogada força Draymond Green ou Harrison Barnes a decidirem, o que gera aproveitamento menor.
Frente a essa defesa, Shaun Livingston e Klay Thompson precisam ter jogos bons, com jogadas isolados contra a marcação de costas para a cesta, e Curry precisa acertar arremessos forçados para abrir espaço, forçar a marcação alguns passos para frente na linha de três e aumentar seu espaço de infiltração. Isso tem mais chances de acontecer com uns dias de descanso e mais opções no elenco, mas quando não acontecer o tombo pode acontecer. O Warriors vai ter que se preparar para isso: o que fazer nos dias ruins, quando os arremessos não caem e o respeito da defesa diminui, permitindo maior foco no garrafão? Eis o Spurs forçando o Warriors a ser ainda melhor – está criando um monstro terrível – enquanto o Warriors força o Spurs a ser um dos melhores times defensivos que já vimos jogar. Tudo enquanto Boris Diaw surge como uma resposta para Draymond Green, um responsável pela importância tática do outro em quadra. É uma relação simbiótica que somos muito sortudos de poder acompanhar.