Na primeira parte deste especial, quando falamos sobre as tendências táticas nas primeiras décadas da NBA, mostramos como o jogo da liga ficou menos coletivo e mais individualista no final dos anos 1960. A ascensão de caras que faziam um pouco de tudo, como Jerry West e Oscar Robertson, capazes de carregarem times inteiros nas costas, fez com que o jogo fosse se distanciando daquele esporte focado apenas nos passes que víamos anos antes. A coisa não parou por aí.
Os anos 1970 viram uma continuação dessa tendência, mas com algumas mudanças e, claro, algumas exceções. É difícil tratar dessa década como algo único, contínuo e lógico porque esta foi uma das épocas mais caóticas do basquete profissional nos Estados Unidos. Se geralmente os times dominantes e campeões –as tais DINASTIAS– ditam as tendências, como definir o protagonista de um período que teve OITO campeões diferentes em 10 anos? E isso se falarmos só na NBA. Temos ainda que levar em consideração a ABA, uma liga concorrente que atraiu boa parte dos grandes jogadores da época e que só em 1977 seria integrada à NBA e traria times como o San Antonio Spurs e o Indiana Pacers para a liga.
Mas e aí, com duas ligas e múltiplos times vencedores: afinal, o que podemos tirar desse período?
INDIVIDUALIDADE
A questão da individualidade é chave aqui. Esse negócio de colocar a bola na mão do seu melhor jogador e ver a mágica acontecer virou a marca maior do basquete dos EUA, até sendo alvo de diversas críticas do “basquete puro” e mais coletivo jogado em outros países. Embora o jogo americano seja mesmo baseado nisso, há exagero: quando as estrelas maiores se enfrentavam nas decisões, niveladas no topo de sua excelência individual, acabava saindo com o troféu aquele que tinha a seu lado os melhores companheiros e o sistema de jogo mais eficiente. Uma coisa não anula a outra.
Falamos aqui, portanto, de um FOCO na individualidade, não de uma exclusividade. Sabe essa nossa ideia de o Russell Westbrook pode tentar 100 arremessos idiotas por jogo, mas o que Andre Roberson não pode fazer uma bandeja se ela não for devidamente planejada e aprovada pelo dono da franquia? Ela foi consolidada de vez nos anos 1970.
Na final do Oeste de 1977, o excelente e completo Portland Trail Blazers enfrenta o Los Angeles Lakers, um time bem mais limitado mas que possuía Kareem Abdul-Jabbar no auge de sua forma. Assistir o resumão abaixo é ver duas coisas: (1) defesa pressão já funcionou um dia na NBA e (2) meu deus como Kareem é simplesmente INDEFENSÁVEL mesmo para o grande Bill Walton!
A defesa de pressão quadra inteira do Blazers funciona porque o Lakers só tinha uma jogada: passar para Kareem. O plano do adversário, portanto, era fazer a transição desde a defesa até os pontos de passe, geralmente nas laterais da quadra, o mais difícil possível. Sem nada ensaiado para driblar essa situação e sem nenhuma inspiração de seus armadores, o time de Los Angeles viu uma grande atuação do pivô (30 pontos, 17 rebotes, 4 tocos) ir para o ralo diante de tantos turnovers.
ESTILO
Mas se algo marcou os anos 1970, mais do que o mero jogo um-contra-um (ou um-contra-cinco, às vezes), foi o estilo. Dá pra dizer que foi aqui que a gente aprendeu o que deve achar bonito numa quadra de basquete. Temos orgasmos basquetebolísticos com bom jogo coletivo e linhas de passe velozes? Sem dúvida, mas algum leitor aqui se apaixonou pelo jogo por uma jogada bem executada ou após ver algo mais ou menos assim?
E que tal esse passe aqui? Se isso não faz um jovem gostar do basquete, nada faz:
As enterradas são parte do basquete desde muito antes da NBA sequer existir. Nos anos 1940, caras como Bob Kurland usavam o lance como parte de seu arsenal ofensivo, mas não sem tomar umas boas BORDOADAS depois. A atitude era vista como uma ofensa ao adversário, especialmente quando usada com força ou num lance onde enterrar parecesse desnecessário.
Nas décadas seguintes, porém, a enterrada se tornou uma arma de jogo. Primeiro usada especialmente por pivôs e sem tanta ferocidade; depois, nos nossos amados anos 1970, ela foi transformada em FORMA DE EXPRESSÃO por alas e até armadores. Caras como Julius “Dr. J” Erving e David Thompson não queriam mais só a certeza e segurança de colocar a redonda lá dentro, eles queriam passar um recado utilizando mais força, pulando de mais longe e fazendo malabarismos no ar. Sem se importar se isso era certo, errado ou um bom plano tático, eles queriam dar show:
Não à toa, os dois atuaram por muito tempo na ABA, a liga rival da NBA. Sem grana para montar franquias na principal liga do país e sem querer seguir suas regras, um grupo de pessoas resolveu investir em um campeonato paralelo. Para ganhar o público, decidiram deixar o jogo mais interessante e importaram diversas coisas que faziam sucesso nos jogos de rua americanos: mais enterradas, mais dribles, mais entretenimento, mais jogo ofensivo. Era a cultura negra e urbana dos EUA, que já abraçava o basquete como forma de expressão, se colocando em uma vitrine.
A ABA não teve vergonha de enfrentar as críticas dos mais velhos, dos bastiões do “basquete clássico” e assumir que o jogo estava ficando mesmo mais individualizado. Ao invés de se desculpar, a ABA decidiu vender essa ideia. Era a liga das super estrelas, era “o time do Dr. J enfrenta o time do George Gervin“. E descobriu-se que as pessoas viam os jogos para ver as estrelas, como acontece até hoje.
Taticamente isso fazia da ABA um basquete mais caótico (no sentido Steve Kerr da palavra) que o da NBA. Os times tinham mais preocupações ofensivas, o jogo era mais dinâmico, os jogadores eram mais atléticos e ser bonito era tão importante quanto ser eficiente. Pode parecer esquisito, mas mesmo quando falamos da história TÁTICA do esporte não dá pra ignorar que Julius Erving era negro, pulava mais que qualquer outro ser humano, usava um cabelo afro magnífico e era absurdamente MARRENTO. Era tudo isso que ajudava o DESEJO de um estilo de contra-ataques, infiltrações e enterradas. Todos queriam vencer, mas a forma como se fazia isso era parte central do jogo.
Embora a ABA e sua bola colorida deixassem isso mais explícito e se vendessem por lado, a NBA fazia parte do mesmo PLANETA e tinha os seus showmen também. Talvez em nenhuma outra década fosse capaz de existir um cara como Pete Maravich, que fazia passes assim no meio de um jogo qualquer, numa jogada que nem certo ia dar no final. Era o momento de dar show e não ser importunado:
ESTILO + EFICIÊNCIA
Se tem uma coisa que a gente logo aprende sobre atletas profissionais é que eles são terrivelmente competitivos. Para chegar no nível deles é preciso muita dedicação, treino e repetição, coisas que simplesmente são difíceis demais de conseguir se você não tem aquela voz da loucura gritando “você deve calar os críticos” na sua mente o tempo todo. Esses caras não aguentam passar a vida em segundo lugar.
Mas como balancear a vontade de se expressar em quadra, de jogar do seu jeito, de dar aquele passe maluco e de tentar a enterrada que quebra tabelas e ao mesmo tempo ganhar jogos? Os anos 1970 também serviram para começar a nos mostrar que coisas antes vistas como puramente estéticas poderiam ser também eficientes. Hoje, por exemplo, graças àquele tempo, vemos a enterrada como uma “bola de segurança”, um lance para não dar o risco da bola bater errado no aro ou na tabela durante uma bandeja, ou para não dar a chance do defensor chegar para um toco: é cesta ou falta. Ou, como diria Daryl Dawkins naquela época, “ou eu vou enterrar, ou você vai quebrar a mão”.
Embora já existisse desde os anos 1950, a ponte aérea também se tornou uma real arma ofensiva no basquete nos anos 1970. Diferente de agora, quando elas acontecem em pick-and-rolls, backdoors e são jogadas para caras de todas as posições, naquela época era mais algo pensado para os pivôs. Seja em contra-ataques, seja quando conseguiam posição entre seu defensor e a cesta. Em uma das sequências mais famosas da história das finais da NBA, Bill Walton conseguiu 4 pontos rápidos para Portland Trail Blazers dessa maneira:
E nem sempre a ponte-aérea dá certo, como vemos aqui na final de 1978 entre Washington Bullets e Seattle Supersonics, mas o importante é: nunca pare de correr e de atacar a cesta. Os pivôs ainda dominavam a NBA, mas os alas começavam a ganhar espaço.
Nos fim dos anos 1970, Red Auerbach, lendário técnico que ganhou uns 500 títulos com o Boston Celtics, gravou uma série de vídeos ensinando lances do basquete. As vídeo-aulas, que podem ser todas vistas todas aqui, iam ao ar no intervalo dos jogos transmitidos pela CBS. Em uma delas, usando SOMENTE Pete Maravich e David Thompson, ele ensina como fazer uma ponte aérea e mostra como ela se tornou uma arma tática: se o defensor te marca pela frente e se você consegue chegar lá no alto, por que não?
O já citado Darryl Dawkins, por outro lado, começou a perceber que era uma boa ideia partir para a enterrada após bandejas ou arremessos dos companheiros. Não só os “putbacks” são lindos de ver e rendem algumas das mais belas enterradas da história, mas são um jeito bem mais fácil (para os que pulam alto, pelo menos) do que pegar o rebote, cair no chão e tentar subir de novo, com a defesa a sua volta.
A COLETIVIDADE NUNCA MORRE
O time do Portland Trail Blazers que citamos lá no começo foi campeão da NBA em 1977 e certamente teria vencido mais vezes depois se não fossem as lesões de Bill Walton. Foi a grande chance da década ao menos terminar com um time ultra dominante. Embora o cestinha do time fosse o ala Maurice Lucas, a alma da equipe era o pivô Walton e sua capacidade de distribuir passes para todos os lados da quadra. Se um time encontrou o equilíbrio entre deixar a sua estrela dominar o jogo e ao mesmo tempo ter trabalho em equipe nesta década, foi o Blazers.
Por ter um grande passador em Walton, seus companheiros não se acomodavam num canto da quadra esperando ele pontuar. O time se movia loucamente sem a bola e assim conseguiam bandejas fáceis, arremessos sem marcação ou simplesmente abriam espaço para outro jogador agir. Abaixo vemos como Walton faz seus 20 pontos, 18 rebotes e 9 assistências numa batalha contra o Philadelphia 76ers na decisão de 1977:
Não é fácil tentar separar times, jogadas ou selecionar um modo de jogar predominante dos anos 1970. No fim das contas, o grande legado tático da década é de como os times lidam com suas estrelas e de como esses grandes jogadores usam seus talentos –físicos e técnicos– para mudar como o jogo é jogado. Começou ali, e nos anos seguintes a NBA foi se adaptando para saber como utilizar passadores imprevisíveis como Pete Maravich, pivôs que sabiam o que fazer na cabeça do garrafão como Bill Walton e alas voadores como Julius Erving e George Gervin.