O lendário “Dream Team”, equipe de basquete dos Estados Unidos para os Jogos Olímpicos de 1992, foi um marco cultural da dominação dos atletas americanos da NBA sobre os demais competidores de todo o mundo. Com vários dos melhores jogadores de todos os tempos, incluindo Michael Jordan, Scottie Pippen, Larry Bird, Magic Johnson, John Stockton e Karl Malone, a equipe atropelou as demais e consolidou no imaginário de uma geração – e das outras que a seguiram – o modo como basquete deveria ser jogado. Até hoje imagens do “Dream Team” encantam as multidões e servem como demonstração de um basquete rápido, eficiente, devastador e – o que mais fascina – belíssimo.
O que muitas vezes esquecemos ao ver o “Dream Team” jogar é que ele é de certa forma uma história de redenção inserida numa longa história de domínio quase integral do esporte por parte da seleção dos Estados Unidos. Nas 12 Olimpíadas em que o basquete esteve presente até 1992, os Estados Unidos levaram a medalha de ouro em 9 delas, sobrando apenas dois ouros para a União Soviética e um para a Iugoslávia. Esse sucesso incrível foi conquistado mesmo com os Estados Unidos não podendo enviar jogadores da NBA para a disputa, já que apenas “amadores” podiam participar da competição – uma categoria polêmica que nunca impediu as demais seleções de enviarem seus melhores jogadores alterando o modo como recebiam seus salários nas equipes profissionais. Por isso as 9 medalhas de ouro recebidas pelos Estados Unidos no basquete até 1992 foram todas conquistadas por atletas universitários, antes que tivesse a chance de ingressar na NBA. Embora quase sempre isso tivesse sido suficiente, em 1988 os Estados Unidos amargaram um terceiro lugar, atrás tanto da União Soviética quanto da Iugoslávia, as únicas seleções a já terem conquistado medalhas de ouro na modalidade.
Em 1989 as regras foram mudadas para os Jogos Olímpicos de 1992 e os Estados Unidos tiveram permissão para convocar atletas “profissionais”, ou seja, jogadores da NBA. O elenco foi montado, então, para redimir o bronze de 1988 e afirmar para todo o mundo que os jogadores da liga de basquete dos Estados Unidos eram claramente os melhores do planeta. Some a isso o caráter de “novidade” para os jogadores, com a abertura de uma possibilidade até então proibida, e podemos entender o motivo dos MELHORES DENTRE OS MELHORES terem decidido participar da equipe nacional. Ao fim daqueles Jogos Olímpicos, ninguém ousava mais duvidar da superioridade americana no esporte.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Jordan, Bird e Magic num poliamor em 1992″]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/07/1992.jpg[/image]
Sem o fator novidade envolvido, grandes nomes pularam do barco após conquistar o ouro – o que não impediu a equipe de 1996 de montar um novo “Dream Team”. Sem Jordan, Bird ou Magic Johnson, a seleção teve que se contentar com Hakeem Olajuwon e Shaquille O’Neal – além, claro, de Stockton e Malone no auge, Scottie Pippen, David Robinson, Gary Payton, Reggie Miller e muitos outros. Se faltava aquele jogo veloz com passes insanos que consagrou o “Dream Team” de 1992, sobrava poder físico e defesa para massacrar os adversários. Parecia que os Estados Unidos sempre montariam seleções dos sonhos em todos os Jogos Olímpicos, mesmo se alguns dos principais atletas não topassem participar, afinal a quantidade de estrelas disponíveis era grande demais.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”David Robinson e Shaq são os pães desse sanduíche de 1996″]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/07/1996.jpg[/image]
Em 2000, as recusas começaram a se avolumar e a seleção olímpica passou longe de ser dominante. Com Kevin Garnett, Vince Carter, Jason Kidd, Ray Allen e Alonzo Morning, os Estados Unidos juntaram o suficiente para conquistar o ouro e não perder nenhum jogo, mas passaram sufoco em muitos jogos. Os jogadores internacionais que começaram a povoar a NBA nos anos 90 já estavam consolidados e as demais seleções também estavam se beneficiando de receber os jogadores da melhor liga do mundo. Isso significa que os Estados Unidos mandaram sua equipe mais fraca justamente quando a competição começava a se fortalecer. Apesar do ouro, a única coisa realmente memorável daquela seleção americana foi a LENDÁRIA enterrada de Vince Carter em cima de um jogador francês:
A prova de que não bastava mandar qualquer um da NBA para as competições internacionais para ter sucesso imediato se deu no Mundial de 2002, quando um apanhado de jogadores de segundo escalão perdeu para a Iugoslávia de Vlade Divac e Peja Stojakovic, a Argentina de Manu Ginóbili e Luis Scola e a Espanha de Pau Gasol. Os Estados Unidos foram eliminados nas quartas-de-final ao enfrentar jogadores estrangeiros que já eram estrelas na própria NBA.
Quando as Olimpíadas de 2004 chegaram, a ficha da seleção americana ainda não havia caído. Jogadores estavam convencidos de que nada de vantajoso poderia sair de uma participação no time nacional: ou perderiam como ocorrera no Mundial, rendendo críticas pesadas, ou ganhariam sem a pompa do “Dream Team” de 1992 e não teriam feito mais do que a obrigação. Sobrava ainda a crença de que outros jogadores menores aceitariam e que, com um técnico razoável, isso seria mais do que suficiente para o ouro olímpico. O grupo de jogadores que toparam a empreitada era até interessante: jogadores consagrados como Allen Iverson e Tim Duncan ao lado de novatos como LeBron James, Dwyane Wade e Carmelo Anthony, com gente como Carlos Boozer, Shawn Marion, Lamar Odom e Emeka Okafor só para fechar o elenco. O problema é que esses jogadores não eram a primeira nem a segunda escolha da seleção, que foi obrigada a simplesmente formar um coletivo com qualquer um que aceitasse o convite de participar. Era um grupo confuso, nada coeso, praticamente sem arremessadores e que teve duas semanas de treinos, sob comando de Larry Brown, para aprender a jogar junto. Duncan, Odom e Shawn Marion carregaram a seleção nas costas, mas não foi o suficiente. Na primeira partida dos Jogos Olímpicos, perderam por DEZENOVE PONTOS para a consagradíssima – rárá – seleção de Porto Rico. Nas semi-finais, perderam para a Argentina de Ginóbili. Voltaram para casa com a primeira medalha de bronze olímpica utilizando jogadores da NBA.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”O time fracassado de 2004, com LeBron com carinha de bebê”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/07/2004.jpg[/image]
A fantástica geração argentina levou o ouro com vários jogadores da NBA no elenco e deixou claro para os Estados Unidos e o mundo que a hegemonia americana não fazia mais sentido. Agrupar uma dúzia de estrelas não era mais suficiente se os adversários também tinham sua dúzia de estrelas, além de tempo de treino, comprometimento, plano tático e familiaridade com as pequenas diferenças do basquete internacional. O resultado negativo funcionou de maneira contraditória para NBA: por um lado, consagrou o programa “Basketball Without Borders”, um plano conjunto da NBA e da FIBA para popularizar o basquete ao redor do globo e que levou um número sem precedentes de estrangeiros a jogar na NBA; por outro, colocou a supremacia americana no basquete em risco e, consequentemente, também a supremacia da NBA dentro do cenário internacional.
Para a intenção da NBA de representar o melhor basquete do mundo e da seleção dos Estados Unidos de manter um domínio que se mantinha, sem muitos tropeços, desde 1936, era preciso responder da mesma maneira que o bronze em 1988 foi respondido: formando um “Dream Team”. O único problema era convencer os principais atletas da NBA a participar dessa empreitada. Para isso a solução foi uma total reconstrução da seleção de basquete, não apenas de seus membros, mas também de seu modo de funcionamento e de sua filosofia interna. É a máxima famosa de que é absurdo fazer as coisas da mesma maneira e esperar resultados diferentes – como é o caso de uma certa seleção de futebol nacional – e que, portanto, para conseguir novos resultados é preciso uma transformação total.
Jerry Colangelo, renomado general manager da NBA, foi nomeado diretor da seleção de basquete. No controle da seleção colocou Mike Krzyzewski, o homem-sopa-de-letrinhas mais conhecido como “Coach K”, o mais vitorioso técnico universitário da história, ingressante do Hall da Fama do basquete duas vezes graças à sua carreira como técnico universitário em Duke e também pela sua participação como assistente técnico do “Dream Team” original de 1992. Além disso, a comissão técnica passou a integrar nomes como Greg Popovich e Tom Thibodeau, que ficaram encarregados de estudar o basquete internacional e fazer todos os ajustes necessários para que os jogadores da NBA pudessem usar seus talentos ao máximo no diferente conjunto de regras. Jerry Colangelo deixou de fazer convites gerais para os jogadores – “apareça quem puder, por favor” – e passou a encontrá-los um a um, de acordo com a lista de preferências do “Coach K” e sua comissão técnica. Ao sentar com um jogador, o discurso de Colangelo era sempre o mesmo: “Queremos fazer algo especial e, se você quiser fazer parte, será uma das melhores experiências de sua vida”. Para os que topassem, a exigência era um plano de no mínimo 3 anos de comprometimento, fazendo parte de seletivas, campos de treinamento e disputas internacionais.
Esse plano incrível começou em 2005. No Mundial de 2006, já sob comando de “Coach K”, a seleção dos Estados Unidos conseguiu novamente um triste terceiro lugar. Ao invés de implodir o projeto e perder os principais jogadores, o processo todo apenas se intensificou, com as seletivas americanas ganhando fama por serem o melhor treinamento possível para os jogadores em férias: lá estavam os melhores técnicos, os melhores assistentes, os melhores treinadores físicos e, por consequência, os melhores jogadores para aprender e desafiar. Esse foi o modo de convencer os grandes jogadores da NBA a jogarem basquete de graça mesmo depois de uma longa e exaustiva temporada. Se você quer melhorar o seu jogo, estar mais preparado para a próxima temporada e estar rodeado pelos melhores da sua profissão, a seleção americana é o lugar para se estar nas férias. Os jogadores da seleção passaram a ser selecionados de um grupo maior de convidados para os treinamentos, e os jogadores não selecionados ficam à disposição para serem escolhidos em competições futuras – é o jeito de montar uma “categoria de base”, com jogadores mais jovens que vão se acostumando com os treinos e as regras para estarem prontos para competições futuras. Além disso, os jogadores escolhidos não são os mais famosos, os melhores individualmente ou aqueles que simplesmente aceitam, mas sim os que formam coletivamente um elenco adequado para as regras internacionais, onde o jogo de costas para a cesta é mais difícil e as bolas de três pontos ditam o ritmo das partidas.
O time selecionado para 2008 mostra bastante esse critério de seleção: LeBron James, Dwyane Wade e Carmelo Anthony voltaram não como novatos, mas como jogadores consagrados ao lado da experiência de Kobe Bryant, do jogo defensivo de Dwight Howard e Tayshaun Prince, e dos arremessos de três pontos de Michael Redd. Ter um time com especialistas de defesa ou de arremessos de fora era novidade para a equipe, que finalmente parecia um time e não um monte de jogadores sorteados no bingo. Ganharam o ouro olímpico com facilidade e ficaram conhecidos como o “Redeem Team” (pra rimar com “Dream Team”), o “Time da Redenção”.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”O ‘Timão da Redenção’ em 2008″]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/07/2008.jpg[/image]
A maior propaganda para atrair jogadores para o projeto da seleção americana de basquete foi a temporada seguinte da NBA: jogadores que haviam participado do processo olímpico melhoraram muito seus desempenhos. Kobe Bryant, que notoriamente ficava assediando seus companheiros de seleção para aprender suas jogadas e movimentos, foi campeão da NBA em 2009 com um jogo completo em todas as áreas; contra ele, nas Finais da NBA, estava Dwight Howard e seu aperfeiçoado jogo defensivo. Dwyane Wade teve a melhor temporada da sua carreira, aquela famosa de 30 pontos, 5 rebotes, 7.5 assistências, 2 roubos e 1.3 tocos por jogo, em que ele virou uma potência defensiva. LeBron voltou arremessando consideravelmente melhor da linha de três pontos. Chris Paul atingiu sua maior média de pontos da carreira, se consolidando com uma arma ofensiva.
Para os Jogos Olímpicos de 2012, a lista de jogadores disponíveis era maior do que nunca. LeBron, Carmelo, Kobe e Chris Paul voltaram para o time ao lado de novos rostos como Kevin Durant, James Harden, Russell Westbrook e Tyson Chandler. A preparação para a competição foi dada com um dos maiores fatores para a melhora defensiva de Chandler, que se tornou o melhor protetor de aro da NBA e conquistou um título em 2011, e para a ascensão de James Harden que o tornou um dos jogadores mais cobiçados da Liga após as Olimpíadas. Da mesma maneira, Westbrook, famoso por não ter um arremesso minimamente consistente, voltou dos Jogos Olímpicos de 2012 acertando bolas de três pontos como se não houvesse amanhã e se consolidou como um dos armadores mais completos da NBA. Enquanto isso, claro, todos eles ganharam o ouro olímpico. Fazer parte da seleção virou algo cobiçado – não pelas medalhas, claro, mas pelo processo de treinamento que aumenta o nível dos jogadores envolvidos. Ser um jovem jogador e receber o convite para participar das seletivas significa que você só estará realmente numa competição olímpica em 4 anos, talvez mais, mas também significa que você certamente será um dos jovens jogadores a despontar na NBA com avanços significativos de uma temporada para a outra. É o caso de jogadores que estarão nos Jogos Olímpicos pela primeira vez agora em 2016, mas que já vimos a melhora nos últimos anos, como Kyrie Irving (MVP do Mundial de 2014) e DeMarcus Cousins, por exemplo.
O basquete olímpico dos Estados Unidos agora é celeiro de novas estrelas, etapa fundamental da ascensão de estrelas já consolidadas, molda alianças, amizades e parceiros de treino, e pode se dar ao luxo de não ter sempre os melhores jogadores porque tem ao menos jogadores já preparados, acostumados com o processo, comprometidos e interessados não necessariamente com a medalha, mas com tudo o mais que a seleção nacional oferece para os atletas. É um modelo invejável que torna as competições internacionais não uma questão de patriotismo e cobrança para os atletas – algo que, em geral, gera situações sem benefícios, em que ganhar não é valorizado e perder destrói a imagem do jogador – mas sim de aperfeiçoamento pessoal, uma chance de estar com os melhores técnicos, os melhores preparadores e os melhores jogadores, numa irmandade que ganha medalhas como simples efeito colateral.