O que você faria se não pudesse fazer o que ama?

Pouco antes do All-Star Game de 2015, Chris Bosh descobriu que um coágulo sanguíneo havia se formado em sua perna e viajado até o pulmão. O jogador foi imediatamente internado e afastado da equipe pelo restante da temporada. Poucas informações foram reveladas sobre o incidente na época – só agora, com Bosh falando abertamente a respeito, soubemos que ele teve sérios riscos de morrer durante as primeiras 24 horas em que descobriram o coágulo em seus pulmões. Após esse momento crítico inicial, Bosh começou sua reabilitação para voltar às quadras e iniciou a temporada passada provavelmente na melhor forma física de sua vida. Ele foi peça fundamental para que aquele Heat desprovido de LeBron James tivesse chances de alcançar os Playoffs, mas novamente antes do All-Star Game um novo coágulo foi descoberto em sua perna e Bosh foi retirado de atividade. A partir desse segundo coágulo, as informações sobre a situação de Bosh passaram a ser muito escassas: o Heat limitava-se a informar que não havia previsão para que o jogador voltasse às quadras, enquanto Bosh insistia que estava em um processo acelerado de reabilitação. Quando o Heat chegou os Playoffs, Bosh e sua esposa começaram uma campanha pública para que o time o trouxesse de volta – foi a primeira vez que nós, torcedores, percebemos que alguma coisa estava errada. De um lado, um jogador que se dizia saudável e disposto a entrar em quadra para ajudar seus companheiros na pós-temporada; do outro, dirigentes evasivos afirmando que Bosh não havia sido liberado pelos médicos. Bosh chegou a acionar a Associação dos Jogadores para exigir que seu contrato fosse respeitado e ele pudesse voltar às quadras, mas a Associação apenas mediou a questão afirmando que tentaria encontrar um acordo entre as partes. Aos poucos, os clamores pelo retorno de Bosh foram esvaindo, o Heat seguiu vencendo e a questão novamente desapareceu sem maiores esclarecimentos ou informações.

Nos bastidores, Chris Bosh estava preparando um glorioso retorno às quadras para a próxima temporada e, de quebra, um documentário acompanhando esse processo de superação. O primeiro episódio desse documentário, que será publicado em partes, foi lançado essa semana e finalmente traz uma luz numa situação que tem sido pouco clara desde o princípio: Bosh fala sobre a quase morte com o primeiro coágulo e a quase morte simbólica com o segundo coágulo, quando a equipe médica do Heat simplesmente lhe informou que sua carreira como jogador estava encerrada. É por isso que Bosh não voltou às quadras: os médicos da equipe concluíram que ele nunca mais jogaria basquete. Seu processo de reabilitação, seu treinamento e sua tentativa de voltar às quadras – primeiro na pós-temporada, depois na temporada que virá – foram feitos à revelia, por conta própria, numa tentativa desesperada de mostrar que os médicos estavam errados. O documentário foi concebido não apenas para esclarecer detalhes que nunca antes vieram a público, mas também para mostrar essa incrível narrativa de um homem disposto a calar os médicos, provar que é senhor de seu próprio destino, e que sua vontade, sua paixão e seu talento são suficientes para levá-lo onde ele quiser ir.

Essa narrativa veio a público junto com uma maratona de esclarecimentos em entrevistas e podcasts – quase uma propaganda – com o objetivo de mostrar que Bosh está em perfeita forma física, decidido a competir, e colocar pressão no Miami Heat, que não se pronunciou a respeito da situação publicamente. Pelo que dizem, Pat Riley e Chris Bosh simplesmente não se falaram desde a temporada passada, incapazes de encontrar terreno comum nessa questão delicada. Os receios do Heat, embora nunca oficialmente declarados, são compreensíveis: somam o medo de que Bosh possa morrer em quadra e o desejo velado de se livrar de seu contrato gigantesco no atual processo de reconstrução da franquia – se Bosh jogar menos de 10 partidas nessa temporada, ele ainda receberá o dinheiro que lhe é devido, mas o valor de seu salário será retirado do teto salarial da equipe. Por isso, ao dar visibilidade para sua tentativa épica de retorno, Bosh criou uma narrativa em que o Heat passa a ser pressionado para aceitá-lo de volta, sob o risco de tornar-se o “vilão” que impediu um homem saudável e apaixonado de seguir sua paixão. Em seu documentário, Bosh pergunta abertamente: “O que você faria se não pudesse fazer aquilo que ama?”. A solução de Bosh foi fazer aquilo que ama mesmo frente à impossibilidade, chutar todas as portas que lhe foram fechadas. A narrativa foi inteiramente construída para sua volta. Preparei, pessoalmente, vários parágrafos para exaltar seu retorno, uma linda história de superação. Até que, nesse quinta-feira, Chris Bosh se apresentou para os testes médicos que antecedem a pré-temporada e simplesmente foi reprovado. Aparentemente, um novo coágulo foi descoberto e inviabiliza em definitivo suas possibilidades de retorno ao time.

A situação é complicada: coágulos são mortais, mas podem ser facilmente evitados através de remédios anti-coagulantes que permitiriam a Bosh levar uma vida normal. O problema é que esses remédios fariam com que qualquer impacto mais sério que Bosh sofresse durante uma partida de basquete lhe causassem hemorragia interna, ou algum corte externo que lhe faria sangrar até a morte. Bosh acreditava ter encontrado uma solução com anti-coagulantes que saem do sistema sanguíneo em 8 horas, permitindo que atuassem em seu organismo sem que os efeitos colaterais estivessem em vigor durante uma partida de basquete. Outros atletas profissionais já usaram essa estratégia e, na pior das hipóteses, Bosh perderia o segundo jogo em caso de partidas em dias seguidos, já que não haveria tempo hábil para o remédio sair do seu sistema. Mas encontrar um novo coágulo foi um balde de água fria nesse projeto: aparentemente o plano não está sendo suficiente para impedir que novos coágulos, potencialmente mortais, continuem surgindo.

Chris Bosh sabia dos riscos à própria vida quando tentou essa reabilitação. Sabia que todo seu esforço poderia ser em vão. Sua esposa, quando sentou nos jogos do Heat nos Playoffs com camisetas com os dizeres “Bring Bosh Back” (“Tragam Bosh de Volta”) sabia que Bosh voltar poderia simplesmente matá-lo. O que o Heat está tentando fazer, ainda que possa ter interesses inteiramente egoístas nisso, é impedir que Bosh coloque sua própria vida em risco – e, também, impedir que Bosh faça o que ama. É que as duas coisas, às vezes, andam de mãos dadas.

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Impossível não pensar em dois filmes do diretor Darren Aronofsky que lidam com essa questão: “O Lutador”, de 2008, e “Cisne Negro”, de 2010. No primeiro, um atleta da luta livre é obrigado a abandonar os ringues por uma questão cardíaca que pode, caso insista na atividade física, levá-lo a uma morte fulminante. No segundo, uma bailarina caminha cada vez mais perto da loucura e da morte conforme entrega-se à paixão da dança. Os dois filmes tratam, basicamente, da mesma questão em ambientes brutalmente diferentes: como a dedicação integral a uma atividade física pode ser uma incrível violência ao corpo, e como a paixão por essa atividade pode levar à morte. Os dois protagonistas simplesmente escolhem a morte porque a vida para fora da luta ou da dança é para eles inaceitável, inimaginável, intolerável. “O que você faria se não pudesse fazer o que ama?”, pergunta Chris Bosh em seu documentário. Nos filmes de Aronofsky, a vida sem fazer o que se ama – um amor obsessivo, destrutivo, totalizante – é a própria morte.

Muitas vezes nos esquecemos como essa questão tão assustadora proposta por Aronofsky e evidente agora na figura de Chris Bosh faz parte do próprio conceito de esporte – e de muitas das artes corporais. Como os jogos que são, tratam-se de propostas que fazemos a nós mesmos de desafios e limitações. Nos desafiamos a tentar colocar uma bola dentro de um conjunto de traves usando para isso apenas os pés, mesmo que isso seja imensamente difícil. Propomos que isso aconteça durante 90 minutos, mesmo em detrimento de nossos corpos, mesmo que para isso nossos corpos tenham que chegar ao limite da exaustão. Nos desafiamos a colocar uma bola laranja dentro de um aro exageradamente alto usando as mãos e para isso dedicamos a vida inteira para tentar pular mais alto, mesmo em detrimento de nossos corpos, de nossos ossos, de nossos tendões. Não há um único esportista profissional que afirmará não conviver com a dor em sua rotina: o esporte profissional, aquele em que se dedica a vida para atingir objetivos auto-impostos, é um ambiente de dor, de lesões, de corpos sofridos buscando o limite. Há uma beleza tétrica nessa dor simplesmente porque nós a escolhemos, nós a recebemos de braços abertos em nosso desejo coletivo de vencer os desafios aleatórios que propomos uns para os outros. O mesmo vale para os pés de uma bailarina, lentamente atrofiados simplesmente pela vontade de expressar os corpos humanos dentro da regra imposta de girar sob as pontas dos nossos frágeis membros inferiores.

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Nenhum esporte, arte ou jogo é uma atividade essencial, não faz parte das ações humanas que nos garantem sobrevivência. Não seguem as regras do mundo, aquelas que caem sobre nossas cabeças diariamente, inexoravelmente. Pelo contrário, são conjuntos de regras que inventamos, que entendemos inteiramente, em que os objetivos são totalmente claros, evidentes, as condições de vitória são óbvias, sabemos quem ganhou, quem perdeu, sabemos como melhorar, como tentar de novo, como progredir. Quando o mundo real parece muito caótico, despropositado, sofrido, desinteressante ou incompreensível, o jogo sempre nos oferece esse mundo em miniatura, controlado e acessível. Frente ao horror da morte e da guerra, por exemplo, que são eventos incontroláveis que nos assolam sem aviso e sem justificativa, um jogo sobre morte e sobre guerra nos apresenta esses elementos em versões controláveis, compreensíveis, de onde podemos extrair uma narrativa, um significado, um planejamento – daí o interesse de crianças com jogos de tiro. O mundo do jogo é um mundo maravilhoso no qual mergulhar – mesmo que, nos jogos físicos, sacrifiquemos nossos corpos, forçando-os a algo mais difícil do que lhes seria natural.

Vivemos em uma sociedade que louva aqueles que aceitam o sacrifício do esporte, aqueles poucos apaixonados pela ideia de vencer as regras que forçamos a nós mesmos. Aplaudimos e apoiamos as crianças que dedicam suas vidas a vencer esses desafios que lhes propomos. Acho tudo isso verdadeiramente lindo: na falta de objetivos claros e universais na vida, nós inventamos os nossos próprios desafios e nos deleitamos tentando vencê-los e assistindo a outras pessoas que compartilham da mesma tentativa. Nas minhas noites mais escuras, em que o peso do mundo parecia brutal e injusto, o mundo do basquete sempre foi uma pequena caixa controlada, compreensível, em que sentido poderia ser encontrado em cada jogada.

Chris Bosh é um dos muitos que dedicaram sua vida ao esporte. Passou por inúmeras lesões, colocou seu corpo em risco, trombou contra pivôs no garrafão mesmo que sua estrutura física não fosse adequada para isso. Inventou saídas, estratégias, fez concessões, teve lesões e conquistou títulos. Agora, seu corpo pode simplesmente parar de funcionar. O problema é que, teoricamente, isso não é em nada diferente dos rigores que já impôs a si mesmo, apenas um pouco mais radical. Após uma vida dentro desse conjunto de regras – uma vida inteiramente dedicada a esse conjunto de regras – Chris Bosh simplesmente não está disposto a pisar para fora. Para ele, vida é o que acontece dentro dessas regras, não fora.

É evidente que o Miami Heat faz bem em não liberar para o jogo alguém que está colocando sua vida em risco. Mas precisamos entender o que motiva Chris Bosh em sua marcha quase suicida rumo a um retorno forçado: para ele, uma vida sem aquilo que ama é a pior morte que lhe pode ocorrer. E isso é algo com o que nós, fãs do esporte, podemos nos relacionar. Criamos regras tão incrivelmente sedutoras em nossos jogos humanos que muitas vezes não conseguimos pensar para fora delas. Mas alguns desafios simplesmente não podem ser vencidos – é por isso que, na vida e no esporte, a maior dificuldade sempre esteve em saber perder. Bosh perdeu para os limites do corpo humano. E nós perdemos um dos grandes jogadores de nossa geração. Resta saber quem aceitará primeiro.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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