Às vezes, por uma confluência de fatores, algumas personalidades históricas acabam se colocando no olho do furacão, no centro de todos os conflitos e polêmicas, e tornam-se emblemas de um modo de pensar característico de seu tempo. Tornam-se figuras centrais para se entender uma época, símbolos das rupturas que acontecem durante as mudanças de geração. Trata-se de um processo que ocorre aos poucos: parece que, ao estarem em evidência como representação de um certo tipo de pensamento, essas figuras tornam-se polarizadoras e, ao ganhar a admiração e o ódio de diferentes indivíduos, adquirem mais força para abordar outras questões que a colocam ainda mais em evidência e cada vez mais profundamente dentro das questões pertinentes ao seu tempo.
Pois bem: o Golden State Warriors parece ter embarcado em definitivo nessa direção. É difícil pensar em outro conjunto de figuras públicas que tão bem represente as diferenças culturais das gerações atuais e das gerações anteriores. Se a princípio tratava-se apenas de um “novo modo de se jogar basquete”, baseado nas análises estatísticas avançadas e consequentemente nas bolas de três pontos e na movimentação de bola, muito rapidamente o Warriors cresceu para se tornar uma imagem ambulante de tudo aquilo que um dia já se pensou que era correto no basquete, mas que agora aparece como possivelmente equivocado. A lista avoluma-se: locais para se arremessar na quadra, maneiras de se montar defesas coletivas, distribuição de arremessos no ataque, uso de reservas, papel dos pivôs, abordagem do técnico na beira da quadra, rituais pré-jogo, postura em quadra, ausência de disciplina militar, etc, etc. Tudo que o Warriors faz vai contra a tradição, contra aquilo que combinou-se imaginar como um time vencedor de basquete, e o impacto tático é inegável: nunca os outros times arremessaram tanto de três pontos e os pivôs estão tendo que se reinventar para encontrar espaço nesse novo estilo de jogo.
Mas é o impacto no “meta-jogo” que foi mais significativo: a postura relaxada e otimista do técnico Steve Kerr mostrou que um time vencedor pode ter um clima leve e animado; a liberdade de escolher arremessos e de se divertir no processo, com risadas e brincadeiras, mostrou que um time vencedor não precisava ser agressivamente sisudo. Jogadores começaram a procurar times que tivessem “ambientes saudáveis”, técnicos mais simpáticos e modelos de jogo mais flexíveis. Jovens treinadores começaram a ganhar espaço muito rapidamente em diversas franquias para tentar atrair jogadores enquanto Phil Jackson, símbolo de outra era com seu rídigo esquema tático, amargava uma série de fracassos no Knicks. Kevin Durant foi a demonstração máxima da mudança no “meta-jogo”: abandonou uma equipe séria e sofrida, em que cada jogo era um embate de vida ou morte, para fazer parte de um grupo leve e divertido que lhe prometeu “o retorno do prazer ao esporte”. As regras do basquete fora das quadras mudaram.
Isso reflete de maneira bastante explícita as vontades das novas gerações, cada vez mais dentro de um discurso de que o trabalho deve nos trazer prazer, alegria e satisfação pessoal. O Golden State Warriors coincide, historicamente, com a empresa Google parando o dia de trabalho no meio para suas tradicionais partidas de hóquei sobre grama; com as famosas reuniões forradas de pessoas fantasiadas ou de pijama ao invés dos ternos tradicionais; das empresas que agora munem-se de videogames e fornecem tempo livre, criativo, para seus funcionários. Convivo diariamente com adolescentes que não entendem mais o conceito de um trabalho rígido e estável, que querem a liberdade de experimentar e inventar as próprias soluções, e que prestam vestibular para o emprego dos seus sonhos, alheios à pressão familiar ou as necessidades financeiras.
Não entrarei no mérito de que essa sensação de liberdade causa uma angústia constante por nunca sabermos se estamos fazendo as escolhas certas, que os trabalhos são cada vez mais instáveis e as garantias cada vez menores, e que esse momento (que Zygmunt Bauman chamava de “Modernidade Líquida”) está fortemente atrelado à liberdade e vontade de consumo, em que nenhum produto comprado é suficiente e estamos sempre pensando já na próxima aquisição. Minha vontade não é julgar os novos tempos nem apontar que seus sonhos talvez estejam atrelados a uma segurança financeira que só está disponível a uma parcela diminuta da população. O que nos interessa é que mesmo nas regras restritas do esporte, essas mudanças culturais atingiram e se materializaram no Warriors de maneira que uma nova geração pode se identificar com eles fortemente – enquanto os críticos do momento atual podem odiá-los como símbolo de todas as novas mazelas culturais.
É nesse contexto que o Warriors, que constantemente entra em conflito com a velha guarda da crítica esportiva, agora canaliza uma nova questão característica das novas gerações: a resistência à intolerância e ao bullying. Tudo porque Shaquille O’Neal tirar sarro de JaVale McGee é uma história antiga, mas foi o Warriors – enfiado meio sem querer nesse protagonismo de ruptura cultural – quem tomou as dores do pivô e levantou a bandeira contra o abuso.
Para quem não conhece, Shaquille O’Neal apresenta semanalmente um seguimento na TNT americana chamado “Shaqtin’ a Fool“, mostrando as piores jogadas e os erros mais ridículos que aconteceram na semana. O pivô JaVale McGee tornou-se figura constante no programa, fruto de seus erros hilários em quadra que incluem a vez em que ele correu para o lado errado da quadra ou aquela em que ele cobrou um fundo-bola para o time adversário.
McGee virou uma espécie de “mascote” do programa, sendo lembrado mesmo quando não cometia erros em determinada semana, e ganhando um grito característico (“JaVaaaaale McGeeeee”) para anunciá-lo. O pivô parecia lidar com tranquilidade, inclusive apontando para a cabine de transmissão da TNT após cometer um erro particularmente engraçado – até que, eventualmente, McGee simplesmente não conseguiu mais aguentar. Após uma coletânea de erros antigos seus ser a estrela de um dos novos programas, o pivô foi a público dizer que queria que a brincadeira parasse, além de estabanadamente criticar Shaquille O’Neal por “estar apaixonado por ele” e por “acordar pensando nele”.
O resultado foi catastrófico: Shaquille O’Neal ameaçou McGee publicamente múltiplas vezes, disse que McGee não era sequer um jogador de verdade e agora estava se fazendo de durão só porque estava num time melhor, e que ele só teria sua carreira lembrada por conta do “Shaqtin’ a Fool”. O conflito entre os dois ganhou proporções ainda maiores porque de certa maneira ela reflete um momento muito delicado na política americana, em que o recém-eleito presidente Donald Trump é considerado “abusivo”, defensor do “bullying” e da humilhação, e os defensores do respeito e da tolerância são vistos pelos defensores do governo como “chatos”, “covardes” e “politicamente corretos”. Quando o Warriors resolveu defender seu integrante, portanto, o que estava fazendo era mais uma vez representar essa ruptura geracional que vê a política como ferramenta para o fim do bullying e do preconceito de todas as vertentes.
Steve Kerr foi categórico ao afirmar que “uma coisa é se divertir um pouco”, mas que Shaq “havia passado do limite”, explicando que Kerr, como muitos outros técnicos da NBA, tinha medo de contratar JaVale McGee por conta da fama de “burro” que o jogador adquiriu na televisão. A piada, inicialmente inofensiva, havia se tornado um fardo para sua carreira e havia potencialmente lhe custado “muito, muito dinheiro”. A linha limite da piada estaria, portanto, no momento em que ela causa prejuízo real, palpável, para seu alvo. Kevin Durant, por sua vez, traçou o limite na resistência do alvo da piada, quando afirmou:
“Entendo que Shaq trabalha numa companhia que quer que ele faça esse tipo de coisa, tirar sarro dos jogadores. Tá tudo bem, é engraçado, mas quando você faz isso de novo e de novo e de novo e alguém discorda de você e você o ameaça… (…) É certamente infantil. Mas é o que querem dessas estrelas e desses jogadores aposentados, que briguem com quem está jogando agora e criar discussões e desentendimentos.”
Para Durant, no momento em que McGee discordou do teor e da frequência das piadas, o correto seria ouvir o alvo, compreender seu sofrimento e se imaginar em seu lugar. Durant foi duro ao dizer que Shaq também errou durante a carreira, que não acertava lances livres, e que lhe faltou empatia de perceber que também não gostaria de ter sua carreira centrada e seus erros e, também, a empatia de perceber que nem todo mundo pode ser Shaquille O’Neal. Esse é um ponto central para entender a questão: enquanto uma crítica a O’Neal provavelmente não causaria nenhum impacto real porque ele era uma força dominante e tinha vários anéis de campeão nos dedos, essa mesma crítica talvez fosse arrasadora contra alguém que não tem onde se apoiar, que não experimentou sucesso, que vive atolado em críticas e não teve de onde arrancar auto-estima suficiente para lidar com o peso de ser ridicularizado todas as semanas em rede nacional. A conversa sobre bullying passa muitas vezes pela ótica de “imaginar se fosse você”, mas ela precisa NECESSARIAMENTE passar pelo exercício dificílimo de perceber que o outro NÃO É VOCÊ, que ele tem um diferente histórico de violências, diferentes resistências, recursos, amparos, perdas e danos. Olhar para o outro não é se imaginar em seu lugar – caso em que o outro DESAPARECE e colocamos nossos critérios e percepções como se eles fossem os únicos do universo – mas sim entender que o outro é alguém inteiro, completo, autônomo, diferente de nós e que pode estar experimentando sofrimentos que nunca sequer cogitamos possíveis. Shaquille O’Neal disse que esse tipo de cobrança funcionou para ele, e que era “a receita para ser o pivô mais dominante da NBA”. Falta a percepção de que a receita não pode ser a mesma para todo mundo e que as novas gerações, aquelas que queriam liberdade, criatividade e flexibilidade, querem também que cada indivíduo seja respeitado em sua individualidade – livres de uma violência que, muitas vezes, não é sequer percebida como violência pelo seu perpetuador, que existe num conjunto diferente de valores e regras.
Shaquille O’Neal disse que nunca mais falará sobre JaVale McGee, atendendo a um pedido de sua mãe para interromper o conflito. Mais uma vez, algo que era simplesmente tido como dado, como óbvio, como parte da realidade, foi repensado e relativizado nas mãos do Warriors: agora, o humor que prejudica um indivíduo invisível, ignorado em sua diferença. É mais um estranho legado de um time que JaVale McGee já percebera como diferente, segundo ele, nos “primeiros 13 minutos de treino”, no instante em que não foi multado por não estar com a camiseta do time, prática que segundo ele acontece em outros times da NBA. O ambiente descontraído e a defesa (social e tática) da diversidade refletem a vida fora das quadras de toda uma nova geração de jogadores, e influenciam outros times a repensar conceitos antes imutáveis. O Warriors foi colocado numa posição estranha, em que o time enfrentará todas as polêmicas possíveis contra a velha guarda, e os resultados dentro da quadra já não tem mais nenhum impacto nessa posição. Quer perca, quer ganhe, o time descreve um certo tempo – até que em breve todos os times, adequados às novas percepções e às novas sensibilidades, tornarão o Warriors apenas mais um time na multidão.