Os limites do trash talk

Em 1925, o poeta americano Countee Cullen escreveu um dos meu poemas favoritos, que eu reproduzo abaixo em tradução de Luiz Filho de Oliveira:

INCIDENTE

Certa vez andando em Baltimore,
Tão alegre, em regozijo,
Vi um baltimoreano
Mantendo o olhar em mim, fixo.

Tinha oito, eu era pequeno,
E o seu tamanho era o mesmo;
Então eu sorri, mas ele
Deu-me a língua e disse: “Negro”.

Eu vi Baltimore toda,
Desde maio até dezembro:
De tudo o que ocorreu lá,
Isso é só o que eu lembro.

O que Cullen faz tão bem aqui é nos lembrar que palavras não existem num vácuo, elas são carregadas de um contexto histórico, social e simbólico. Uma palavra que possa lhe parecer inteiramente inofensiva ou incapaz de lhe ofender em qualquer grau pode ser devastadora para uma outra pessoa em outro contexto. Ela pode carregar um forte ódio simbólico que tenta definir um indivíduo dentro de uma situação desfavorável, mostrando que ele não pertence, que ele é inferior.

Quando Cullen faz disso poesia, compartilhando uma experiência tão sofrida e pessoal, ganhamos a incrível capacidade de nos sentir por um momento dentro de sua pele, de seu contexto simbólico, de seu sofrimento. Ao ler suas palavras, mesmo que em pequena escala, passo a ser a criança que não se lembra de nada além da agressão, da sensação de não-pertencimento, da constante ameaça de uma violência gratuita direcionada à sua cor de pele. É isso que faz não apenas a arte, mas todos os relatos das subjetividades que nos cercam e que testemunham violências, preconceitos e agressões. Aquela palavra que pra mim é simples, desimportante, completamente inofensiva, passa a surgir para todos nós, através desses relatos, em todos os seus possíveis sentidos, em todo seu ódio simbólico. Passamos a conhecer outros mundos que não só o nosso, e a relação desses mundos com as palavras. Um ato fantástico de sair de dentro de nossas próprias cabeças.

Se nossas sociedades tentam cada vez mais serem espaços de entendimento e respeito para que todos possam ter um lugar, torna-se imediatamente necessário tentar compreender essas subjetividades, descobrir suas dificuldades, suas dores. Conviver com o outro – aquele que não é exatamente como você – é muito difícil, porque aquilo que parece banal pode ser uma violência terrível para o seu vizinho e deve, portanto, ser evitado. Trata-se de um complexo exercício de escuta e percepção, de tentar compreender que somos todos diferentes em nossas subjetividades, ainda que iguais em sociedade.

Isso nos leva imediatamente ao papel do esporte. Por impor um mesmo conjunto de regras a todos os participantes – e essas regras não terem relação nenhuma com as regras do mundo real – o esporte coloca todos os participantes em condições idênticas. As regras e os objetivos são comuns e não podem ser modificados, de modo que todos os jogadores são iguais. Mas as subjetividades são diferentes: os contextos de cada jogador, sua criação, seu país de origem, sua história pessoal. É essa diferença de subjetividades que nos traz as diferentes abordagens de um esporte que é igual para todos, com estilos diferentes de jogo, jogadores mais técnicos, jogadores mais físicos, múltiplas posições em quadra, variações táticas, etc. São as subjetividades que garantem que não estejamos assistindo a um monte de robôs seguindo as regras todos da mesma maneira, e que nos dá o prazer de ver grandes gênios tentando expressar suas personalidades dentro de um conjunto limitado de regras. Assim inventam-se dribles, enterradas, bandejas, assistências – todas estratégias para expressar ao máximo a subjetividade humana dentro da limitação determinada.

Assim, embora o basquete seja um mundo à parte – com regras completamente distintas, separado do mundo da vida pelos limites físicos de uma quadra e pela duração de quatro quartos – aquilo que os jogadores são, suas subjetividades, não deixam de existir quando o esporte começa. Ainda são seres humanos, ainda tentam se expressar como humanos, e ainda devem ser respeitados como tal.

Quando no começo do mês Rajon Rondo se dirigiu ao árbitro Bill Kennedy no meio de um jogo com uma gíria equivalente a “viado” e foi imediatamente expulso, muito se falou sobre o termo não querer dizer nada, ser apenas um xingamento comum, algo que se diz no calor do momento, com os ânimos alterados. Mas o árbitro teve a incrível coragem de vir a público logo após o jogo e assumir sua homossexualidade, tentando nos lembrar que a palavra “inofensiva” é na verdade um ataque à sua subjetividade. Sua posição nos força a lembrar que ali, recebendo os insultos durante um simples jogo de basquete, existe um ser humano cuja história transforma integralmente o peso das palavras. Num ambiente esportivo, orgulho da humanidade por criar artificialmente um modelo em que podemos todos ser iguais, é necessário tomar um cuidado especial para não inserir elementos que humilhem, ataquem ou ameacem os participantes em suas diferenças fundamentais.

Não há problema nenhum no “trash talk”, a linguagem que tenta desequilibrar emocionalmente o adversário, quando ela se atém aos elementos internos do jogo, sem cruzar a fronteira para o mundo real. É LeBron James dizendo na orelha de Gilbert Arenas que ele errará o lance livre e perderá o jogo (o que de fato aconteceu); Kevin Garnett assustando novatos ao dizer que eles não sabem jogar basquete e que vão ser humilhados com uma enterrada na cabeça; Paul Pierce dizendo para seu defensor que ele está fazendo um péssimo trabalho e que pontuará à vontade quando bem entender. São agressões dentro da lógica interna do basquete, desestruturam o adversário, mas não colocam em risco a identidade dos sujeitos. Não se trata de colocar a língua pra fora e dizer “Negro”, com toda a carga histórica que o termo carrega. O “trash talk” é bem visto na NBA, mas um “incidente” como o de Countee Cullen seria completamente inaceitável, o que fica evidente na relação que os Estados Unidos possuem com o “slur”, a gíria ofensiva. Por lá, a cicatriz deixada pelas lutas civis dos negros ainda é muito recente. Consequentemente, um incidente semelhante – no caso, homofóbico – também não será tolerado, motivo pelo qual Rajon Rondo recebeu um jogo de suspensão. Numa sociedade em que temos tanto acesso às subjetividades, a relatos, filmes, poemas, entrevistas, não há desculpa para a ignorância, para o “mas eu não sabia”, para o “mas é só uma palavra”, para o “mas é uma ditadura do politicamente correto”. Do lado de fora da sua identidade, existem outras identidades a serem ouvidas e respeitadas. E se no “calor do momento” do esporte não conseguimos deixar de diminuir os seres humanos que estão do outro lado, sejam árbitros ou outros competidores, então talvez simplesmente não estejamos prontos para o esporte. Dentro da quadra de basquete, todos deveriam sentir-se seguros.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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