🔒Você não é Steph Curry

Na transmissão da partida entre Golden State Warriors e Cleveland Cavaliers no Natal, Mark Jackson, comentarista e ex-treinador do Warriors, fez o seguinte comentário:

“Steph Curry é ótimo. Ele é o MVP, um campeão. Entendam o que estou dizendo quando digo isso: ele está prejudicando o jogo. E o que eu quero dizer é que quando eu entro nesses ginásios de colegial, vejo as crianças jogando e a primeira coisa que elas fazem é correr para a linha dos 3 pontos. Você não é Steph Curry. Trabalhe em outros aspectos do seu jogo, as pessoas acham que Curry é só um arremessador, mas é mais que isso”.

A repercussão do caso foi muito maior do que devia, para mostrar que problemas de interpretação de texto não são exclusividade de pessoas que comentam nos grandes portais da internet brasileira. Muitos acharam que foi uma crítica a Curry, dizendo que seu estilo de jogo está contaminando o basquete. Quando perguntado sobre o assunto, o próprio armador do Warriors disse que estava confuso com a frase, dizendo que “se você sabe arremessar, arremesse, se não sabe, não arremesse”. E o pivô Andrew Bogut ainda completou dizendo que tudo o que Mark Jackson fala sobre o time deve ser visto de maneira mais cética, dando a entender que o ex-técnico ainda sofre com algum rancor por ter sido dispensado da franquia justamente antes dela dar esse salto de qualidade.

Mas será que o que ele disse é tão absurdo assim? Podemos começar a discutir isso observando uma excelente análise que o Fivethirtyeight fez chamado “Stephen Curry é a revolução”. O grande ponto do texto de Benjamin Morris é analisar a eficiência dos arremessos do armador do Warriors em comparação a outros jogadores da NBA. Segundo ele, por mais que o Warriors seja exemplo em diversas áreas, como defesa e organização fora da quadra, o grande diferencial do time é como Curry leva a eficiência da bola dos 3 pontos a outro nível.

Vou usar três dos gráficos que ele utiliza por lá para mostrar alguns pontos, aí então poderemos avançar na nossa discussão com mais dados na cachola. O primeiro mostra como os finalistas de conferência do ano passado, Warriors, Rockets, Cavs e Hawks, estavam na NBA em termos de bolas de 3 pontos tentadas e seu aproveitamento.

times

Dá pra ver que Warriors e Hawks estavam lá no topo em aproveitamento e ao mesmo tempo chutavam bastante, Cavs e Rockets não acertavam tanto, mas compensavam na quantidade, comprovando a ideia de que vale a pena chutar muito de três pontos mesmo que o aproveitamento não seja maravilhoso, basta chegar perto dos 35% e você já está muito no lucro em comparação a quem foca seu ataque em posses de bola de dois em dois pontos. Esse é o atual momento da NBA, as bolas de 3 pontos mandam. Não quer dizer que vai ser sempre assim, eventualmente alguém vai aprender a marcar melhor isso, vão aparecer pivôs que mudam a cara do jogo, técnicos vão recriar situações onde consigam alimentar seus jogadores mais altos perto da cesta, mas o presente é dos arremessadores.

E entre os arremessadores, o mundo é de Steph Curry.

Clock

defesa

 

Essas duas imagens mostram o aproveitamento do Curry dependendo da distância do seu defensor mais próximo (a distância está em pés; 1 pé = 30 centímetros) e dependendo do tempo restante no relógio de posse de bola. E é isso aí que vocês estão vendo, quando o tempo está acabando e Curry precisa forçar um arremesso, ele acerta MUITO mais que a média da NBA; e ele, de maneira assustadora, beira os 50% de aproveitamento quando os defensores estão grudados na sua cara! Ele acerta mais com a defesa perto do que longe, é absurdo. Seu único número pior que o da média da NBA é com defensores grudados nele, a menos de um metro, mas foram apenas 25 tentativas dessa maneira ao longo da temporada.

A conclusão do texto é que Steph Curry deve continuar arremessando cada vez mais, até encontrar seu limite. Muitos jogadores coadjuvantes tem ótimo aproveitamento, mas estes caem quando aumentam o volume de chutes tentados. Em geral é fácil ter bom aproveitamento se você só chuta “na boa”, mas não é o caso com Curry. Ele tem arremessado cada vez mais e seus números apenas melhoram. São mais tentativas que no ano passado, menos assistências e arremessos mais difíceis, o resultado é que a sua eficiência disparou. Chegou a um ponto onde, estatisticamente, é melhor Curry tentar arremessos difíceis do que alguns de seus companheiros de time tentarem um chute sem marcação. Qual será o seu limite?

[image style=”fullwidth” name=”off” link=”” target=”off” caption=””]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2015/12/Steph3_.jpg[/image]

Voltamos então para a frase de Mark Jackson: essa fase fora de série de Steph Curry é ruim para o basquete? Para a sua popularidade, não. As pessoas amam Curry e foi até bem rápido que ele se tornou o jogador favorito de todo o planeta, liderando a liga em votos para o All-Star Game e em camisetas vendidas em 2015. Ele apareceu em um monte de comerciais, programas de TV e até sua filha virou celebridade. O ponto de Mark Jackson, porém, é outro, essa popularidade também chegou com tudo aos jovens jogadores de basquete, que agora querem imitar Curry quando estão em quadra, e que isso não seria saudável.

Até certo ponto eu concordo, não parece uma boa ideia ter pirralhos tentando aqueles arremessos de três pontos com marcação na cara, logo depois de um drible pelas costas. Especialmente quando fazem isso sem ainda terem aprendido algumas coisas mais básicas. Mas colocar esse fardo nas costas de Curry é exagero. Na prática isso existe desde sempre com qualquer estrela acima da média. Jogadores que ainda estão em fase de aprendizado não devem tentar passes com a mão esquerda, sem olhar e que atravessam a quadra como faz LeBron James; não devem puxar contra-ataques como Russell Westbrook e nem dar fadeaways com um pé só, com marcação no nariz, como Dirk Nowitzki. Nada disso é imitável por meros mortais como nós. É como Michael Jordan disse naquele clássico comercial, talvez a culpa seja dele de fazer parecer fácil algo que não era.

Sem dúvida não deve ser fácil para os técnicos dos times de colegial e até das faculdades segurarem os adolescentes mais empolgados. Depois de um jogo espetacular de uma grande estrela, o mais natural é aparecer no outro dia querendo imitar o que seu ídolo fez, é assim que acontece e é por isso que os moleques decidem sair de casa para jogar basquete. Nenhum adolescente vai abrir mão de sair com os amigos ou bater um video game pela empolgação de ser um role player que faz ótimos bloqueios e importantes boxouts. Isso você aprende a apreciar ao longo do tempo, mas nunca, NUNCA, é o que te leva ao basquete. Quem tem um pôster do Shane Battier na parede?

Pensando por esse lado, portanto, não vejo problema algum que Mark Jackson entre em ginásios e veja a molecada querendo imitar Curry sem parar. Não só é essencial ter um modelo para imitar, como só assim poderão aparecer novos jogadores do mesmo tipo. Certamente o próprio Curry não nasceu fazendo tudo isso, e precisou tentar em muitos jogos sem que seu técnico tivesse certeza que era uma boa ideia. A função dos treinadores dos jovens é mostrar, além dos arremessos, também os treinos que Curry fez a faz todo santo dia para chegar onde chegou, e que avise que nem esse treinamento exaustivo é garantia de chegar longe assim. Também é possível trabalhar com recompensas: faça tais e tais coisas em quadra, na defesa, e você está autorizado a ser Curry de vez em quando.

Não é um trabalho fácil, até porque o desenvolvimento individual de cada atleta muitas vezes tem mais a ver com a personalidade e persistência de cada um do que com o técnico dando ordens, mas ele está lá para tentar. E faz parte do trabalho criar essa ponte entre o basquete “real” que eles jogam e o jogo dos sonhos que um punhado de atletas da NBA é capaz de produzir.

A grande diferença entre Curry e todos os outros exemplos listado está na ideia de identificação. Quando eu jogava minhas peladas na adolescência, queria ser Kobe Bryant, mas eu imitava Kobe na quadra? Bem pouco. Às vezes tentava imitar seu arremesso, mas em geral eu passava quase o tempo todo tentando ser Allen Iverson. O motivo é óbvio: ele é basicamente do mesmo tamanho que eu. Eu não podia emular as enterradas de Kobe, mas podia tentar os crossovers e step backs do Iverson. Claro que eu não acertava, mas a inspiração estava lá. Shaquille O’Neal nem pensar, Tim Duncan só na hora de usar a tabela em um arremesso. Teve uma época que eu era viciado em assistir jogos só olhando para os armadores, tentando ver tudo o que eles faziam para tentar imitar na quadra depois, acabei virando fã de jogadores improváveis como TJ Ford e Mike Bibby, era o que estava ao meu alcance.

Isso se reflete novamente com Steph Curry. Além dos motivos óbvios como talento e carisma, todo mundo o ama porque se identifica com ele. Ele é como se um de nós de repente se descobrisse possuidor de um grande talento divino que o fizesse ser capaz de batalhar ao lado dos grandes guerreiros do mundo, é um tropo comum em qualquer filme de herói e que vimos acontecer na nossa frente enquanto acompanhávamos a NBA. Isso chegou ao ápice na temporada passada, quando seu Warriors venceu o Cavs de LeBron James, que é o cara mais inimitável do planeta: quem tem um corpo e um talento como aquele?! Ele é um super herói! É aquele cara que a gente olha de fora, admira e no fundo da cabeça pensa”se eu fosse assim também estaria na NBA”, com aquela confortável sensação de que você nunca será assim para precisar provar.

[image style=”fullwidth” name=”off” link=”” target=”off” caption=””]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2015/12/Steph2_.jpg[/image]

Isso pode e deve criar uma geração de jogadores que tenta imitar Steph Curry desde pequeno, um exército de pirralhos baixinhos que acredita ser capaz de derrubar adversários com dribles e acertar arremessos de 3 depois do drible quase do meio da quadra. Se por um lado os técnicos devem temer por jogadores que não enxergam que Curry faz mais que isso para ser relevante em quadra, por outro é um momento empolgante e misterioso: será que ele será revolucionário também nisso? Será que ele é o cara que vai fazer uma geração de pirralhos acreditar que o futuro está no seu estilo de jogar? Aliado com as estatísticas e os técnicos que aprenderam a apreciar e incentivar as bolas de três pontos, é um jogador pode realmente mudar a cara dos futuros armadores da liga. Ou pode criar uma geração de fominhas que se acham a última bolacha do pacote porque volta e meia acertam uma bola de muito longe.

Você não é Steph Curry e provavelmente não vai ser, mas pode tentar. Estaremos assistindo para descobrir quem consegue chegar lá.

Torcedor do Lakers e defensor de 87,4% das estatísticas.

Como funcionam as assinaturas do Bola Presa?

Como são os planos?

São dois tipos de planos MENSAIS para você assinar o Bola Presa:

R$ 14

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

R$ 20

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Como funciona o pagamento?

As assinaturas são feitas no Sparkle, da Hotmart, e todo o conteúdo fica disponível imediatamente lá mesmo na plataforma.