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Qualquer um pode chegar agora, sem conhecer nada de NBA, e se apaixonar pelo que está acontecendo. São duas grandes equipes se enfrentando, alguns dos melhores jogadores do planeta, um time que juntou três estrelas e foi crucificado, outro que tenta voltar à Final há anos e nunca foi levado a sério. É uma história bacana para acompanhar em qualquer situação e com qualquer idade. Mas alguns fatores, me parece, só surgem frente ao senso histórico. A importância dessa Final é completamente diferente se você acompanhou o Mavs durante a última década – se vibrou com o estilo ofensivo porra-louca de Don Nelson e Steve Nash, se assistiu ao time aprendendo a defender sob a tutela do Avery Johnson, se viu a derrota na Final para Wade e Shaq em 2006, se acompanhou a melhor campanha na temporada regular cair para o Warriors em 2007. É quase como acompanhar um filho que apanhou na escola, que foi taxado de nerd, que já esteve por cima, que perdeu a namorada, e agora tem barba na cara. O Mavericks vai ser um time bacana de acompanhar para qualquer um que chegar agora à NBA. Mas para quem viu a trajetória, é difícil conter uma lágrima emo no cantinho do olho que a gente só deixa escapar ao som de NX Zero. Há quase 5 anos critico o estilo de jogo do Dallas Mavericks e aí estão eles de volta à grande Final, com mais chances de ser campeão do que nunca tiveram. É lindo. É como ver um filho mesmo, aquele filho que você avisou que seria um fracasso e agora vai conseguir um diploma de mestrado.
Esse Mavs já tentou ser só ataque, já tentou se focar só na defesa, já tentou correr, já tentou jogar na meia-quadra, mas se tem uma coisa que continua sempre igual e que desenha uma identidade nesse time são as jogadas no perímetro e o excesso de isolações. Até mesmo as jogadas mais elaboradas da equipe são iniciadas com alguém sendo deixado sozinho contra a defesa, e eu sempre achei isso um desperdício. Funcionava no Cavs de LeBron, funcionou no Celtics de Pierce, Allen e Garnett, mas o Mavs sempre teve muito mais potencial do que isso. Meu desgosto com a equipe nunca foi por eles serem ruins, mas sim por serem bons pra burro e jogarem fora a chance de serem ainda melhores. Jason Kidd sempre foi mal aproveitado na equipe, as jogadas de transição sempre acabam no perímetro e ele passou várias temporadas só passando para o lado, isolando companheiros para que jogassem no mano-a-mano. É uma pena, se é pra fazer isso me contrata, eu sei passar para o lado e ainda conto piadas no vestiário, não precisa ter um dos melhores armadores da história do esporte no seu time. Mas não dá para discutir com os resultados. Aos poucos o ataque foi ficando mais maleável, rodando mais a bola. O Rick Carlisle foi colocando em prática um ataque mais coletivo e o mais importante: uma defesa por zona.
Em dezembro do ano passado falei com detalhes sobre a mítica defesa por zona do Dallas, como ela funciona, e fiz até uma retrospectiva da equipe até chegar a essa defesa. Vale a pena dar uma lida para se preparar para a série que começa às 22h de hoje, o link para o post é esse aqui. O importante desse texto é que essa defesa não apenas mascara as limitações defensivas individuais dos jogadores, ela também permite que Tyson Chandler e Brendan Haywood usem o melhor de suas habilidades, que é a mobilidade lateral e a capacidade de defender os dois lados do aro contestando todas as infiltrações que conseguem furar a zona. Não é acaso que o Kobe praticamente não tenha finalizado próximo ao aro e que eventualmente o Westbrook ficou confinado aos arremessos de meia distância quando enfrentou o Mavs. Mas a defesa por zona também garante que o Mavericks sabe jogar bem contra esse tipo de marcação e portanto roda mais a bola do que antigamente. Ver aquele Mavs de antigamente e depois ver esse, botando em prática a melhor defesa por zona da NBA, é para fazer qualquer coitado que acordar de um coma de 6 anos ter um aneurisma. Mesmo mantendo alguns padrões questionáveis, aquilo que mudou dentro da tática do time transformou a equipe finalmente em uma máquina assustadoramente eficiente. Não há nada na defesa e no ataque que, ainda que questionáveis, não sejam executadas à perfeição.
Só fico um pouco triste porque essa melhora do Mavs acaba escondendo uma das melhoras mais impressionantes que já tive o prazer de acompanhar: o jogo de Dirk Nowitzki. Como eu disse, ter senso histórico muda o sabor de algumas coisas, muitas vezes para melhor. O Nowitzki que eu vi chegar à NBA era um ala mirrado, arremessando de longe, com pavor de contato físico. Chegava à NBA para ser simplesmente um arremessador. Não conseguia defender bulhufas, nem ponto de vista. Foi aos poucos se aproximando do aro. Passou a pegar rebotes, se posicionar bem quando perto da cesta. Bem marcado, foi encontrando novas maneiras de fazer seu arremesso encobrir as defesas. Os giros nos arremessos foram ficando impecáveis. Os arremessos de média distância, mais confiáveis, foram prevalecendo e deixando as bolas de três pontos cada vez mais secundárias. Era uma pena, apenas, que ele fosse tão tristemente anulado quando marcado de maneira física. Bastava grudar o corpo nele, peito-no-peito, e o Nowitzki era obrigado a colocar a bola no chão (ou seja, sair quicando a bola), e isso era uma merda porque sua infiltração sempre foi desengonçada, estabanada, um alemão tentando sambar depois de três cervejinhas. Lembram como Udonis Haslem, menor mas mais físico, tornou a vida do alemão um inferno em 2006? Mas Nowitzki passou a infiltrar mais, ganhou um passo rápido para a direita, um giro para a esquerda, passou a proteger bem a bola e a cavar faltas. Criou um jogo de costas para a cesta que pode forçar faltas, girar rumo à linha de fundo para uma enterrada, ou arremessar por cima do seu marcador. Se tornou um bom defensor, sólido, que não comete erros táticos mesmo que não possa se apoiar numa defesa atlética ou veloz. Nessa temporada, passou a encontrar Chandler e Haywood livres embaixo da cesta em suas cada vez mais frequentes infiltrações. As bolas de três pontos ainda estão lá, mas são uma parte minúscula do seu jogo. A evolução nas habilidades de Nowitzki é um troço lendário, nível Goku mesmo. Para quem chegou agora, talvez não pareça. “É só um cara arremessando sempre do mesmo lugar”, você pode pensar. Mas quando a marcação aperta e ele gira para o fundo, finalizando com força com as duas mãos acima do aro, você nunca vai entender porque nós mais velhinhos estamos emocionados e incrédulos. O Nowitzki era eficiente, um dos melhores arremessadores que o jogo já viu, mas ele não aceitou limitar o seu jogo. Isso é lindo. Isso é mágico. Isso é muito, muito raro (né, Dwight?).
Eu entendo quem diz que o Nowitzki não é um jogador completo. É verdade, ele não faz todas as coisas que jogadores mais versáteis como Kobe ou LeBron podem fazer. Mas o Nowitzki é o mais completo que é possível ser quando se tem 2,13m de altura e não se possui físico privilegiado ou condição atlética de super-herói. Nowitzki faz um absurdo com o que lhe foi dado, e o mais importante: ele impôs seu estilo ao jogo, e não o contrário. Só porque um cara tem 2,13m ele precisa jogar debaixo do aro? Ele é mais eficiente longe da cesta, ele cria novas possibilidades para sua altura, ele quebrou paradigmas e mostrou que é possível dominar um jogo sem ser físico. Nowitzki passa a bola quando atacado por uma marcação dupla, ele pode ter acertado todos os arremessos que deu em um jogo e mesmo assim não tentar de novo, não forçar nenhuma bola, porque quer obedecer ao plano de jogo e envolver os companheiros. E, é claro, ele não ganha nenhuma admiração por isso. A gente quer o cara que assume o jogo sozinho e ganha no muque, como Jordan fazia. O Dirk passa a bola então ele é um banana. Repito: o alemão pegou os paradigmas e jogou no lixo. Só é uma pena que, se não ganhar um título, nunca terá isso reconhecido. Mesma coisa com LeBron James, infelizmente.
Aquele mesmo senso histórico que pode tornar as coisas mais legais pode também tornar as coisas muito mais chatas. Ao invés de ver o tempo como uma trajetória capaz de explicar e iluminar o presente, é possível tentar comparar o passado com o presente, mesmo que todas as circunstâncias (regras, jogadores, cultura, mentalidade, tipos de treinos) impossibilitem esse tipo de análise. E quando isso acontece tem sempre gente comparando Jordan com o Kobe, sem entender que a mudança na realidade histórica muda também as possibilidades de um jogador em quadra, e dizendo que o Dirk deveria ser de um jeito ou de outro, “porque assim são os grandes, assim são os melhores”. Notícia chocante: Nowitzki é um dos melhores jogadores de seu tempo e assim entrará para a história, como sempre aconteceu antes dele, mesmo que o Dirk passe a bola sem forçar um único arremesso e prefira que o Mavs gire a bola no perímetro a tentar vencer sozinho uma marcação dupla.
Ontem falamos do Heat, de como o ataque pode parecer mas não se permite ser estagnado, mas como esse ataque reagirá à defesa por zona do Mavs? Como Udonis Haslem, LeBron e Bosh – que devem ser todos responsáveis pela marcação de Nowitzki – vão reagir ao seu agora vasto arsenal ofensivo e ao fato de que ele não terá receio de acionar seus companheiros no perímetro? Erik Spoelstra já avisou que LeBron deve marcar o JJ Barea, simplesmente porque, como mostrei nesse post aqui, o caminho do armador fica livre quando a defesa se foca no Nowitzki. É isso que o Mavs quer, impor um jogo coletivo quando os olhos estiverem no alemão. E o alemão topa, o alemão permite, o alemão é um jogador único, completo dentro de suas possibilidades.
Vamos ignorar esse pessoal que uso o tempo e a história para estragar tudo aquilo que se apresenta diante dos seus olhos, vamos aproveitar essa Final espetacular, e agora só nos vemos aqui no blog quando a Final já tiver começado: história sendo feita.