>Sapatadas

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Vencer é bobagem, Dirk e LeBron jogam apenas pra 
não ter que ouvir merda no Twitter quando perdem

Não ter o seu time jogando uma Final de NBA às vezes é um alívio. Ao invés de se envolver emocionalmente, torcer como um idiota e tacar seu gato pela janela do prédio com as cagadas do seu técnico, é possível apenas relaxar, aproveitar ambas as equipes, analisar os planos táticos, as nuances defensivas, as grandes jogadas. Por vezes, não ter que escolher uma ou outra equipe para apreciar é uma dádiva. É uma postura que garante o pleno proveito de todos os feitos em quadra, seja qual for a equipe ou o jogador. É o abraçar do espetáculo, do esporte, das possibilidades concretizadas. Toda escolha é limitação, então se eu estivesse torcendo apenas para uma das equipes nessa Final provavelmente estaria limitando minha apreciação – e minha diversão – a apenas metade dos acontecimentos. Como dizemos tanto por aqui, gostar do Kobe e simplesmente por isso odiar o LeBron é algo que subtrai, porque retira de você os feitos e possibilidades de um dos melhores jogadores de todos os tempos (qualquer um dos dois), enquanto apreciar os dois jogadores – mesmo se for preferindo o Kobe, por motivos pessoais  – é algo que soma, que acrescenta, que torna os dois jogadores mais interessantes porque brilham em suas individualidades, no que há de mais único e inalienável nos seus modos de jogo. “Legal como só o Kobe faz isso”, “olha como o LeBron dá esse passo que ninguém faz igual”.

Torcer, essa coisa que nos parece tão natural, tão espontânea que até os bebês nascem cantando o hino do Corinthians, na verdade não é algo essencial ao esporte. Há esporte sem torcida. Quando vemos duas pessoas dançando, interagindo uma com a outra dentro de regras e espaços delimitados, não sentimos uma vontade inata de torcer por uma delas – e odiar a outra por consequência. Torcer é construção, e é cada vez mais sintoma de uma sociedade em que absolutamente tudo se tornou competição. Agora, dançar é algo que se faz na televisão não para interagir com alguém ou expressar-se através do corpo, mas para derrotar outros dançarinos numa competição decidida pelo telefone. O mesmo vale para o canto e demais talentos, para o ambiente da escola, para o vestibular, para o trabalho empresarial. Não é à toa, portanto, que a competição no esporte é cada vez mais acirrada e que a torcida tem papel cada vez mais forte no esporte, se apresentando de forma mais radical e apaixonada. Mas, repito, ela não é necessária. Por vezes não controlamos, como diversos outros aspectos de nossa cultura que nos parecem naturais e estão enraizados em nossa identidade. Eu torço para o Houston Rockets e não consigo evitar quando vejo meu time jogar. Mas como já abordamos aqui, somos brasileiros da terra da caipirinha e nenhum de nós nasceu em Houston, ou em Dallas, ou em Miami, nossos pais não eram torcedores apaixonados dessas equipes e provavelmente nunca conversamos sobre basquete numa ida ao barbeiro. Nossa relação com os times de basquete é muito menos orgânica, está menos no campo da cultura, do “já era assim antes mesmo de eu nascer”, “já nasci corinthiano”, e está mais no campo da escolha, do “vou torcer para aquele time porque ele me apetece, porque é legalzinho, porque ele está vencendo”, etc. Mesmo quando não conseguimos evitar torcer para os nossos times, no basquete é impossível não perceber que essa torcida – e a paixão que surge com ela – é algo escolhido, construído, nada natural. E, por isso, é muitas vezes um fardo. Minha experiência com essas finais, tirando fotos dos jogos para analisar as movimentações táticas, estudando as jogadas do Erik Spoelstra, contando as posses de bola em que o Mavs marca por zona, não seria tão prazerosa se eu estivesse torcendo alucinadamente por apenas uma das equipes. Dei sorte, acho, porque gosto dos dois times e de todos os envolvidos nessa final. Não corto ninguém da minha visão quando assisto ao jogo, não olho ninguém ali com desdém ou raiva (por sorte o Rafer Alston não está em nenhum dos times). Essa Final está espetacular, uma delícia. Só há uma coisa que me incomoda, que perturba esse local quase zen em que fui parar analisando o jogo de fora: as merdas que os torcedores andam dizendo tanto de um time quanto de outro. As sapatadas que eu vejo voando em direção às cabeças dos jogadores frente a qualquer deslize. Os trocentos pedidos de retratação, ou esfregadas na minha cara, ou palavrões puros e simples, porque o Nowitzki errou um arremesso e portanto fede, é amarelão e provavelmente é o causador da seca no Nordeste e do terremoto no Japão.

Me pego por vezes desesperado, no meio do jogo, pensando na quantidade surreal de merdas que serão ditas caso o Nowitzki perca essa Final. Se depois de marcar 12 pontos seguidos no Jogo 3 – os últimos 12 do Mavs – e  empatar um jogo novamente já perdido contra o Heat, ele errou o arremesso final e foi chamado de amarelão de novo, outra vez, feito piada da Praça é Nossa, imagina então o que falarão se ele perder a série. E se já dizem que o LeBron não assume a responsabilidade, que não alcançará Jordan, que não brilha no final dos jogos, que será sempre um fracassado mesmo depois de tudo que já fez nos playoffs e ter as atuações que tem, imagina se ele perder mais uma Final e dessa vez com a ajuda que possui em quadra. A minha alegria de ver Nowitzki finalmente campeão será eclipsada pelo ódio irracional que será atirado a LeBron, Wade e Bosh. Ver LeBron finalmente campeão, colocando-o oficialmente no debate dos melhores (porque pra isso, dizem, precisa ter anel), não vai apagar o desgosto de ouvir as críticas ao Nowitzki amarelão, ao Jason Kidd que não sabe arremessar, ao Shawn Marion que só sabe jogar com o Nash. Engraçado é que no meu post anterior, teve gente dizendo que eu puxo a sardinha demais para o lado do Mavs – e logo depois gente dizendo que eu sempre puxei a sardinha para o lado do Heat. Não é engraçado que eu esteja sofrendo com as merdas que os dois times vão ouvir se perderem, enquanto leitores acham que eu torço para um time, ou para o outro? E no mesmo post? É por isso que na bolha em que não há torcida, em que os dois times possuem chances de vencer e devem ser tratados como tal, ainda consigo ouvir as sapatadas sendo lançadas contra alguns dos melhores jogadores da atualidade. Torcida, pelo jeito, também é maneira de sublimar o ódio, que não tem lugar na nossa sociedade do politicamente correto. E é modo de demarcar identidade, é o “eu” contra o “outro” – e como nas línguas indígenas, o “outro” é sempre denominado como inimigo.

A pena é que jogadores fantásticos tenham que pagar por isso, receptáculo de ódio e identidade de uma cultura com dificuldades de apreciar. Já comentamos isso a fundo em um post longo (e polêmico) sobre o All-Star Game, analisando como a necessidade por filtrar o excesso de informação na nossa sociedade leva muita gente a usar o ódio como filtro: tem coisas demais por aí, então preciso odiar algumas coisas para saber do que gostar, para saber qual é o meu grupo, onde pertenço, qual minha identidade. O ódio é um filtro muito eficiente por vários motivos, pra começar ele canaliza uma frustração que não vai pra lugar nenhum em nossa sociedade, a não ser que você, sei lá, lute boxe; e além disso é um filtro que obedece à voz da maioria, é um filtro moldável à opinião popular e portanto te garante um lugar “em meio aos seus”, você ganha uma gangue mesmo que seja virtual, ou conceitual. Quem odeia o LeBron ou o Nowitzki não está apenas odiando de forma gratuita, o ódio é coletivo e imediatamente está delimitando a que espaço você pertence, quem são seus amigos, e quais jogadores você precisa acompanhar. Afinal, acompanhar todo mundo – ler todos os autores, ter todos os videogames, ouvir todas as músicas – dá muito trabalho e odiar alguns já te poupa muito tempo. É uma resposta ao excesso.

Por outro lado, é super legal quando alguém aparece dizendo que não gosta do estilo de jogo do Nowitzki, por exemplo, mas que ele está jogando muito, que ele é incrível, que ele merece um anel. Porque algumas coisas – nesse caso, nosso gosto pelo basquete – estão acima da apreciação ou não de um estilo especifico de jogo. Minha maior reclamação com esses filtros, e com esses sapatos prontos para se jogar no time que perder essa Final, é que eles diminuem o esporte por deixarem uma série de questões fantásticas – e até mesmo essenciais – de fora. Ao invés de perguntar se o Jason Kidd foi melhor que o Magic Johnson, que é uma besteira, por que não perguntar qual deve ser o papel de um armador dentro de cada esquema tático? Deve ele ser capaz de arremessar, quando e por quê? Deve criar arremessos para os companheiros? Deve apenas tornar viável a movimentação de bola? As estatísticas, como as assistências, são um bom modo de ler a importância de um armador? Qual a importância da defesa de um armador frente a uma defesa que afunila para dentro do garrafão ou que marca por zona, como o Mavs? Aliás, será que o Mavs usa bem o Jason Kidd na armação? Como funciona o contra-ataque do Mavs e por que o Kidd tem menos papel nele do que tinha no Nets, por exemplo? (Confesso que há tempos me pergunto algumas dessas coisas mas acho o Carlislie um técnico difícil, talvez complexo demais para mim, para compreender.)

A questão não deveria ser se o LeBron é um fracassado por perder a final ou se o Nowitzki é amarelão por não ter um título. A questão deveria ser qual é a importância de ganhar um título, o que significa ser campeão na NBA atual, como era antigamente, qual valor se dá ao “vencedor” em nossa cultura. A torcida – às vezes mesmo sem o ódio que tantas vezes vem ao seu lado – costuma camuflar o essencial porque dá atenção demais ao que está na superfície. Não que isso esteja errado, torcer dá um gosto diferente para o esporte, lhe dá uma importância que em geral não encontramos em outras coisas da vida, mas há muita coisa a ser apreciada mais embaixo da camada que a torcida costuma alcançar. As reações possíveis de um torcedor à última bola errada do Nowitzki costumam ser “ufa, que alívio”, “errou, seu alemão amarelo”, ou “acertou, é um gênio”. Por trás dessa camada inicial está a insistência do técnico Erik Spoelstra em colocar o Udonis Haslem para marcar o Nowitzki individualmente na cabeça do garrafão nas jogadas decisivas, mesmo com o Joel Anthony tendo feito um bom trabalho no restante do jogo. Por que o Spoelstra percebe que jogadores diferentes devem marcar o Dirk em momentos diferentes do jogo? Há uma leitura de comportamento do Nowitzki que nós não percebemos e que o Spoelstra sabe por ter acesso a bilhões de dados estatísticos, já que ele é um nerd de basquete?

Por trás do “o LeBron não assume a responsabilidade”, também há tanta coisa mais legal. A começar pela defesa do Mavs, que acertadamente dobrou tanto no Wade quanto no LeBron, tentando forçar um desperdício de bola – resposta provável ao medo de que um dos dois acertasse um arremesso espírita mesmo pressionados no perímetro, coisa que não ocorreria se os dois não tivessem treinado tanto seus arremessos nessa temporada. Tem também o fato de que o LeBron, desde seus tempos no Cavs, escolhe passar a bola para companheiros livres em momentos decisivos, e que isso não é visto como uma atitude vencedora apenas porque o Jordan fazia diferente – e as pessoas tomaram isso como uma verdade, um paradigma, e não apenas uma de várias opções possíveis. E tem o fato, pra mim o mais fantástico do jogo, que o Spoelstra já tinha programado que, no caso de marcação dupla no perímetro, o arremesso final iria para o Bosh. Basta ver que depois de Wade e LeBron receberem a bola, Haslem está fazendo um corta-luz que libera o Bosh para o arremesso:

O passe do LeBron é um capítulo à parte, mas vejam como Bosh não está livre apenas por culpa da marcação dupla, há um esforço coletivo para colocá-lo ali, e ele acerta. Não é fantástico que ao invés de condenar o perdedor à miséria possamos analisar as opções ofensivas do Heat e enxergar, agora com um senso histórico, a contratação do Bosh justamente porque numa hora decisiva não seria possível marcar as três estrelas do Heat ao mesmo tempo? No próximo jogo, hoje à noite, estarei mais uma vez desenhando aqui as movimentações do Bosh nesse esquema, e tentando desesperadamente entender o porquê do Mavs isolar tanto o Shawn Marion nas posições que o Nowitzki deveria assumir em quadra, tentando compreender o que diabos o Rick Carlisle está fazendo, o papel do Kidd, o trabalho fantástico do Tyson Chandler na defesa do garrafão e o porquê da defesa do Mavs ter falhado tanto justamente no garrafão no primeiro quarto do Jogo 3. Quer dizer, tentarei. Farei isso apenas se o medo do que Nowitzki ou LeBron vão ouvir me deixar. Há tantas possibilidades, tanta profundidade. Mas nesse mundo de torcidas, filtros e ódio, há também muita, muita sapatada.

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