Era 2004 quando Kevin Garnett, jogando pelo Wolves, chegou à Final do Oeste contra o Lakers. MVP da temporada regular, ele teve médias absurdas de 24 pontos, 14 rebotes, 1.5 roubos, 2.2 tocos e 5 assistências – aliás, seu quinto ano consecutivo com pelo menos 5 assistências, mesmo jogando majoritariamente dentro do garrafão. Quando os dois armadores principais da equipe, Sam Cassell e Troy Hudson, se contundiram na Final de Conferência, Garnett assumiu a armação da equipe por longos períodos. Foi uma temporada perfeita, lendária. O único porém foi a derrota para o Lakers, que impediu o Wolves de chegar enfim às Finais da NBA.
A partir dali, a carreira do Garnett no Wolves foi ladeira abaixo. Lesões e péssima administração fizeram com que a equipe sequer se classificasse para os playoffs nos anos seguintes àquela Final do Oeste. Fiel à equipe, à torcida, e esperançoso de concretizar o sonho de um anel de campeão que poucos anos antes batera na trave, Garnett resistiu bravamente durante um breve processo de reestruturação da equipe. Quando esse mesmo processo o mandou embora numa troca para o Celtics, em 2007, Garnett esbravejou. Não queria ir embora, não queria abandonar a equipe, não queria ter que começar de novo. Soltou frases pouco educadas na imprensa, chegou em Boston completamente contrariado.
Ao fim da temporada em que foi trocado, Garnett era campeão da NBA pelo Boston Celtics junto com Ray Allen e Paul Pierce, duas histórias parecidas com a dele, chorando doidão em quadra e entrando definitivamente para o grupo das grandes lendas do basquete. Suas médias? 19 pontos, 9 rebotes e 3.5 assistências por jogo, nada inacreditável. Mas o anel de campeão e o prêmio de melhor defensor da temporada ofuscaram para sempre aquela temporada mágica de 2003-04.
Quando LeBron James teve que decidir em 2010 se ficava em Cleveland ou se ia para o Heat ter mais chances de conseguir um anel de campeão, Garnett resolveu dar um conselho público para o jovem jogador. Disse a LeBron que suas médias, seus números, suas batidas na trave, seu amor pelos torcedores, todos seriam engolidos no grande rolo compressor da História – o que fica, mesmo, são os campeonatos conquistados. O público, em geral, tem memória curta. Esquece das temporadas míticas dos jogadores, da importância deles para a NBA ao longo de suas carreiras, e usa o filtro rápido e simples do número de anéis de campeão usados nos dedos. É triste ver Karl Malone, por exemplo, ser rebaixado nas conversas por aí simplesmente porque nunca ganhou um título. Para quem se preocupa em preservar a memória dos maiores jogadores de basquete da História, é um alívio quando eles finalmente são campeões e podemos dormir tranquilos na certeza de que não serão diminuídos ou esquecidos. Perdi muitas noites de sono com pânico de que o Nowitzki se aposentasse sem título nenhum, e a dificuldade decorrente que seria explicar para os meus filhos que ele era mais do que um alemão que sabia arremessar.
O conselho do Garnett, bastante coerente com a memória da NBA, foi crucial para LeBron James, que debandou para o Miami Heat e conquistou dois campeonatos ao lado de Dwyane Wade e Chris Bosh. Para fazer isso acontecer os três tiveram que aceitar salários menores, papéis mais limitados no elenco e uma diminuição significativa em suas médias. Só depois de garantir seu lugar na História é que LeBron retornou para seu time de origem, tentar um campeonato do jeito mais difícil.
O sucesso de Kevin Garnett e LeBron James não passou despercebido pela molecada. Embora a NBA ainda seja dominada por uma cultura em que os salários são questão de honra e determinam a importância do jogador dentro do esporte, surgiu essa pequena rachadura, uma nova possibilidade para os jovens jogadores da NBA: abrir mão dos salários e dos números imediatos em nome de uma conquista maior, uma glória futura, uma entrada na História.
O Spurs é o exemplo mais estabelecido desse modelo de pensamento dentro do esporte profissional. Na equipe não há espaço para egos, números inflados, salários máximos e gente pedindo mais toques na bola. A equipe de San Antonio é um sistema fechado, vencedor, em que os jogadores devem se encaixar caso queiram aumentar suas chances reais de título. Mudar o esquema é algo que se faz lentamente, por dentro, mostrando aos poucos que consegue fazer outras coisas para além do seu papel inicial, que deve ser desempenhado perfeitamente. Tony Parker conta com orgulho que quando chegou no Spurs não podia nem arremessar, nem infiltrar: quando entrava no garrafão, era obrigado a passar a bola para a zona morta para que outro jogador arremessasse ou girasse a bola. Era apenas no contra-ataque, raros momentos de correria para o Spurs, que Parker conseguia mostrar seu potencial de finalizar em velocidade. Levou mais de um ano para que jogadas passassem a ser chamadas para Parker fazer uma bandeja ou jogar a bola por cima do maior defensor. Só uns bons anos depois é que recebeu a permissão de arremessar de três pontos, e só porque mostrou desempenho exemplar nos treinos. Mesma coisa com Manu Ginóbili, que a princípio tomava broncas violentas por quebrar as jogadas com infiltrações inusitadas. Anos depois ganhou jogadas em que era isolado contra a defesa, mas só porque mostrou que podia seguir regras e se encaixar tranquilamente no esquema previamente determinado.
No começo de suas carreiras, a discussão sobre quem era melhor, Kevin Garnett ou Tim Duncan, levava fãs a arremessar sapatos uns nos outros. Cinco campeonatos conquistados por Tim Duncan depois, ninguém tem coragem de sequer colocá-los na mesma frase. O Spurs permitiu não apenas que Duncan ganhasse trocentos anéis, mas também que produzisse em alto nível mesmo muito tempo após seu auge físico, com um esquema tático que explora suas maiores qualidades e esconde suas limitações. Enquanto Garnett e LeBron abriram mão de algumas regalias para se encaixar em times vencedores, Duncan esteve nessa situação sua carreira inteira e tem a raríssima oportunidade de se aposentar no time em que o draftou, eficiente e importante até seu último jogo, com a tranquilidade de ter construído um enorme legado. Basta olhar para isso e a molecada que está entrando na NBA agora chega a chorar de inveja. Contratos gordos ainda são a norma, mas o sonho molhado de todo mundo é vencer como Garnett e LeBron, é ter a vida feliz e marota de Tim Duncan. Mesmo que essa felicidade toda não se transforme em sorrisos devido a limitações de mobilidade muscular facial, quem em sã consciência não quer uma carreira inteira no Spurs?
Foi assim que LaMarcus Aldridge e David West foram parar em San Antonio. Depois de muitos anos de comentários de que o estilo de jogo de Aldridge se encaixaria perfeitamente no esquema vencedor do Spurs, ele resolveu abrir mão de mais dinheiro no Blazers para ocupar o lugar que, um dia, foi de Tim Duncan. Se a História se repetir, o Spurs será a última franquia de Aldridge, que cuidará bem do seu jogador até sua distante velhice. Mas é claro que para isso, o ala terá que abrir mão de muitos dos arremessos que deu nos seus últimos anos pelo Blazers, em que a maior parte do ataque da equipe passava pelas suas mãos e não faltavam arremessos forçados que, geralmente, davam resultado. Ao menos a princípio, Aldridge terá que se contentar com arremessos mais garantidos, em espaços pré-determinados da quadra, e mais tempo de jogo dentro do garrafão, abrindo espaço para os arremessos dos outros jogadores do elenco. Depois, se tudo der certo, poderá aos poucos conquistar mais espaço – mas aquele papel dominante que um dia teve no Blazers estará para sempre no passado, ofuscado pela função mais delimitada e os trocentos campeonatos que ele deve ganhar no processo.
David West, por sua vez, vai ter que abrir mão de menos coisas para fazer a parceria funcionar. Desde o começo de sua carreira, seu poder mutante sempre foi a invisibilidade, acertando arremesso atrás de arremesso da cabeça do garrafão sem que os times adversários fossem capazes de perceber que ele estava ali de boa. West é difícil de marcar porque não chama atenção, está em vários lugares da quadra, faz todas as pequenas coisas, e o mais importante: não se importa de passar longos, longuíssimos períodos do jogo sem sequer tocar na bola, se isso for importante para a equipe. Tanto na sua passagem pelo Hornets quanto pelo Pacers, tem jogo em que recebe a bola e vira ponto central da movimentação ofensiva, tem jogos em que não toca na bola e está lá espertão para converter o arremesso final decisivo, e tem jogos em que você nem fica sabendo que ele entrou em quadra e tem que fuçar no boxscore. Ao contrário de um jogador que oscila, West é constante em oferecer aquilo de que seu time precisa, mesmo que para isso nenhum número relevante seja gerado nas estatísticas convencionais. Com sua postura em quadra sendo um par perfeito para o modo Spurs de se jogar basquete, só faltava casar nas contas. A alegria do possível casamento ideal foi tanta que o West, tal qual casamento de atores da Globo, tacou tudo pro alto e se jogou de cabeça nesse amor tórrido: abriu mão do seu contrato garantido de 12 milhões de dólares por mais uma temporada no Pacers e assinou um contrato mínimo com o Spurs de apenas 1.2 milhões. É dinheiro para uma vida inteira, claro, mas abrir mão de mais de 10 milhões de dólares para fazer uma parceria funcionar é um ato simbólico violento. Ainda mais sabendo que LaMarcus Aldridge estaria no elenco, que seu espaço no time vai ser ainda mais limitado por isso, e que não lhe restará nada além de comer pelas beiradas.
Para onde se olhe no Spurs, é possível ver postura similar: Duncan assinou um contrato modesto de 10 milhões para os próximos dois anos, não comprometendo o futuro financeiro da equipe; Ginóbili assinou um contrato minúsculo de 5 milhões por dois anos, admitindo que alguém que cogitou fortemente a aposentadoria não pode almejar uma posição central ou largos salários. Enquanto isso, Danny Green garantiu seu futuro na equipe com um contrato gordo pelos próximos quatro anos. É a terceira idade abrindo espaço para os mais jovens mas sem abandonar o barco, mantendo a engrenagem funcionando. É a franquia mais funcional do esporte moderno, e agora alimentada pelo carvão potente das histórias de Garnett, LeBron e todas as outras estrelas que colocaram seus nomes na História apenas quando aceitaram dar um passo para trás e encaixar-se num elenco vencedor. Pelas próximas décadas, toda jovem estrela que adentrar a NBA vai lembrar do conselho de Garnett, ver as estrelas esquecidas pela ausência de títulos, se curvar ao poder do Spurs e almejar jogar em San Antonio. A franquia que passou a última década garimpando novos talentos em segundas rodadas de draft e nos confins da Europa vai, agora, poder escolher quem se encaixa melhor no elenco dentre uma longa fila de jovens estrelas sonhando com a honra de defender a franquia. Para além dos anéis de campeão, o Spurs venceu a luta do imaginário: tornou-se o modelo em que todas as equipes precisam se espelhar.