Nessa temporada histórica do Warriors, cada uma das raras derrotas ganha ar de aberração: foram dias estranhos em que as bolas mais simples não caíram, em que os arremessos de Stephen Curry não estavam calibrados, em que jogadores centrais estavam contundidos, em que Saturno entrou em Escorpião e atrapalhou os jogadores de Sagitário. É por isso que a derrota para o Celtics – a oitava da temporada – foi tão surpreendente: tirando a ausência já habitual de Andre Iguodala, contundido, o cosmos em nada atrapalhou a performance do Warriors. O time se apresentou basicamente dentro do esperado, jogando em casa – onde ainda não havia perdido nenhuma partida na temporada – e ainda assim o Celtics saiu de quadra vitorioso. Mesmo cometendo erros, mesmo não tendo uma partida impecável, mesmo sentindo a ausência de um dos seus jogadores mais importantes, Jae Crowder, que voltou só agora de uma lesão no tornozelo. Isso quer dizer que o Celtics já consegue fazer frente aos grandes times da NBA sem precisar de nenhuma aberração ou partida histórica de um dos seus membros. O que eles fazem rotineiramente em quadra já é suficiente para destronar os maiores, e se ainda nos chocamos com isso é apenas porque o time é muito inconsistente. Atualmente no miolo da Conferência Leste, virtualmente empatado com todo mundo que vai da terceira à sexta colocação, já podemos dizer oficialmente que o Celtics é a equipe que absolutamente ninguém quer pegar na pós-temporada – muito mais assustadora do que o Hawks e suas lendárias derrubadas de peteca, o Heat desfalcado de Chris Bosh e o Hornets ainda consolidando um estilo de jogo. Nesse momento, por motivos de EU TENHO MEMÓRIA, não tenho dúvidas de que eu escolheria enfrentar o Raptors mil vezes ao invés de ter que encarar esse time do Celtics.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Bogut tenta usar seu sopro de gigante contra a bandeja do anão”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/04/Isaiah.jpg[/image]
O motivo para isso é principalmente Brad Stevens, o técnico-pirralho. Calmo, sempre de braços cruzados, eternamente com aquela cara de monge budista, Stevens conseguiu criar uma equipe tranquila, extremamente coletiva, com movimentações inteligentes no ataque e uma defesa matadora. Sem grandes estrelas nem pontuadores capazes de carregar um jogo sozinhos, Stevens apostou numa abordagem em que todos os jogadores contribuem para o ataque dependendo das fraquezas adversárias, baseando no estilo de jogo a ser enfrentado as movimentações e as rotações para cada jogo. Essa tática de manter uma movimentação padrão que é constantemente alterada para dar ênfase a diferentes jogadores da equipe é difícil de implementar, demorada para aprender e exige que os jogadores tenham total confiança não apenas no esquema, mas também uns nos outros. Brad Stevens comentou recentemente que, ao analisar vídeos das primeiras partidas de Isaiah Thomas sob seu comando, percebeu que o armador não entendia o esquema tático, questionando a si mesmo em toda jogada e não sabendo se deveria usar os espaços, forçar arremessos, quem acionar com seus passes, etc. Agora inteiramente acostumado com o modelo, Isaiah Thomas foi um dos membros do All-Star Game e se tornou a cara da franquia. Certamente ele é o melhor armador da equipe e o pontuador mais capaz do elenco – sem ele em quadra, o número de pontos por posse de bola do Celtics cai a níveis medonhos, piores até do que o Sixers – mas ainda assim Isaiah Thomas passa muito tempo jogando sem a bola em mãos, cortando para a cesta e de volta para o perímetro, usando com habilidade cada corta-luz e criando espaços para outros jogadores contribuírem. Nos seus tempos de Suns, Isaiah Thomas jogava o tempo todo com a bola nas mãos atacando a cesta, ou então assistindo aos outros jogadores parado no perímetro. Parece ser uma tática razoável para alguém de suas habilidades, mas no Celtics não há espaço para isso: todos os jogadores estão contribuindo o tempo todo, mesmo longe da bola, com sua movimentação. Com tanta gente capaz de arremessar, a ausência de estrelas identificáveis e tanta movimentação em quadra, é difícil para os times adversários saberem quem marcar. Se não fosse a temporada histórica de Steve Kerr – que é, em parte, também de Luke Walton – sem sombra de dúvidas Brad Stevens seria o técnico do ano na NBA.
O único problema é que um esquema tático tão complexo, que depende nessa medida de tantos jogadores diferentes, tende a ser muito instável. Basta um pequeno erro e movimentação morre com algum jogador sendo obrigado a realizar um arremesso forçado. Além dos erros, o Celtics sofre também de casos sérios de indecisão ou falta de confiança: um jogador não saber para onde deve passar a bola após criar espaços ou então jogadores que hesitam em arremessar quando o espaço é criado para eles. Tudo isso é sintoma de um esquema tático não plenamente estabelecido, de gente que ainda não se acostumou com todas as nuances e que nem sempre acredita no próprio taco. Isso também aparece na falta de clareza numa jogada de segurança, numa bola decisiva, em quem isolar quando as demais jogadas estão dando errado.
Esses problemas deduram a idade do elenco, recheado de jogadores muito jovens e inexperientes, e a falta de figuras de liderança capazes de impor uma jogada ou um arremesso quando a confiança do time está momentaneamente abalada. São problemas naturais de um elenco que aposta numa reconstrução cuidadosa e que ousa colocar em prática aquele “projeto Hawks” de construir um time campeão sem uma grande estrela reconhecível capaz de monopolizar o ataque quando necessário. Qualquer um que veja o Celtics, tanto em quadra quanto no papel, pode prever esse tipo de encrenca e cravar que o time ainda não está pronto. Estão pouco maduros, muito verdes, precisando de mais alguns anos nas costas, mais tempo para Brad Stevens estabelecer seu estilo, talvez um veterano ou dois capazes de consolidar uma mentalidade vencedora.
Mas o que não era possível de prever é que defensivamente essa equipe já está completamente pronta. Toda a instabilidade e a indecisão que às vezes vemos assolar o esquema ofensivo é contrabalanceada por uma defesa agressiva e confiante. Numa NBA que marca cada vez mais por zona, o Celtics mantém uma defesa individual na bola sufocante, com o time inteiro confiando nas capacidades defensivas de cada um dos seus membros, e podendo marcar por zona FORA DA BOLA para fechar todas as rotas de passe. Dificilmente você verá o Celtics dobrando uma marcação por conta de um defensor individual não estar dando conta do seu advesário, de modo que a “dobra” acontece apenas nas linhas de passe, com jogadores do Celtics se jogando continuamente na bola para desviá-la ou interceptá-la. Os pecados por excesso de agressividade – quando jogadores recebem passes livres porque todos os defensores se enfiaram na rota do passe um segundo atrasados e não conseguiram interceptar, aquilo que os gringos chamam de “gamble”, para nós “aposta” – compensam porque o adversário é forçado a ajustar mentalmente à pressão e dar passes mais longos, mais altos, mais rápidos com a intenção de fugir da marcação. É por isso que o Celtics é o segundo time que mais força turnovers na NBA, em parte simplesmente roubando a bola, mas em parte forçando o adversário a dar passes TOTALMENTE IMBECIS para fugir das roubadas de bola. O Warriors, que já é um time que tenta passes impossíveis demais às vezes e paga por isso, se viu dando os passes mais patéticos da vida na partida contra o Celtics por conta desse sufoco.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Dá só uma olhada no tamanho descomunal do braço do Avery Bradley”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/04/Bradley.jpg[/image]
Uma defesa tão focada em parar passes depende de uma marcação individual impecável, encabeçada pelo melhor defensor de perímetro da NBA disparado, Avery Bradley. Com sua velocidade absurda, braços gigantes e uma inteligência de vilão do James Bond, ninguém é melhor que Bradley para tirar os espaços na marcação individual e forçar o adversário a ter que travar os pés e forçar um arremesso ou passe indesejado. O próprio Steve Kerr se mostrou impressionado de como Bradley CONHECE as jogadas do adversário, de como ele sabe qual será a movimentação, e aí consegue se antecipar retirando todo o espaço do seu oponente. Pouco antes da afirmação de Kerr, Damian Lillard já havia dito que Bradley é o melhor marcador da NBA e que ele sabia todas as jogadas do Lillard de cabeça. É esse tipo de defensor inteligente que permite ao resto do elenco se focar nos passes e gerar tantos desperdícios de posse de bola. Mas o elenco tem outros talentos defensivos: Marcus Smart é quase tão bom e inteligente quanto Bradley e tem basicamente a mesma função; Jae Crowder é o defensor mais versátil da equipe, podendo marcar armadores em times mais altos ou jogadores de garrafão em escalações mais baixas. Amir Johnson, que segundo o técnico Brad Stevens levou um bom tempo para se acostumar com o esquema tático, se tornou uma força defensiva no garrafão não contestando arremessos, mas contestando o espaço de infiltração e garantindo os rebotes necessários. Jared Sullinger ocupa muito espaço próximo à cesta, com boa velocidade lateral mesmo sem conseguir pular uma tampa de garrafas.
É esse talento defensivo quem segura os deslizes no ataque. O Warriors jogou tão bem quanto em qualquer outra partida, mas perdeu tantas posses de bola e foi obrigado a dar passes tão longos e altos, que o único jogador livre que encontravam era Harrison Barnes para trás da linha de três, recebendo bolas contestadas do fundo da quadra, e tendo que arremessar com gente pulando no seu cangote. Ao meu ver, o Celtics venceu a partida no instante em que Harrison Barnes, após errar um par dessas bolas, simplesmente desencanou de arremessar e passou a girar a bola – em busca de um espaço que dificilmente surgiria de novo.
O Celtics não está pronto: ainda falta um grau de costume e de conforto no ataque que pode levar um par de anos para aparecer. Ainda vejo demais os jogadores travando no meio de uma jogada sem saber para onde ir enquanto Brad Stevens só cruza seus braços e desenha a próxima jogada. Mas defensivamente o Celtics se tornou uma máquina de criar caos e pode, qualquer dia, qualquer hora, vencer um jogo de maneira simples contra os melhores times da Liga. Isso significa que podemos ver o Celtics abocanhando uma vaga suada e sendo eliminado na primeira rodada, mas não seria surpreendente – e nem exigiria partidas muito fora da curva – ver o Celtics se classificar em terceiro no Leste e avançar até uma Final de Conferência. Nada mal para um time que ainda não está pronto, não é mesmo? Do que esse time será capaz quando finalmente estiver?