Contra todo o bom senso e as regras do espaço-tempo, eis que a Austrália deu um susto considerável nos Estados Unidos. Se por susto, claro, a gente entender perder por 10 pontos no placar. Mas é que embora o placar não tenha sido assim tão apertado, por diversos momentos parecia que a Austrália tinha chances reais de vencer o jogo – ainda que os Estados Unidos fossem sempre claramente o time mais forte.
Dizem os boatos que a Austrália cogitou seriamente descansar seus titulares no segundo tempo inteiro do jogo e usar apenas METADE do seu livro de jogadas, já contando com um futuro confronto com os Estados Unidos nas finais e percebendo a importância de não mostrar todas as suas armas na primeira fase e com isso permitir que o oponente se prepare à altura. Mas acontece que o plano de jogo da Austrália funcionou tão bem que eles terminaram o primeiro tempo 5 pontos à frente – e aí, claro, NÃO RESISTIRAM à tentação de jogar com todas as suas armas no segundo tempo para tentar arrancar a vitória, que acabou não acontecendo.
Ao contrário do que alguns estão dizendo, não há crise na seleção dos Estados Unidos: o time teve uma longa preparação, os selecionados já fazem parte das seletivas da seleção há anos, estão acostumados com o modelo de basquete das competições internacionais e a escalação é pensada com uma estratégia em mente, um propósito, não um apanhado aleatório de jogadores. Apenas um desastre inimaginável tira o ouro da seleção dos Estados Unidos e o “susto” contra a Austrália só fez com que os jogadores se focassem mais e encontrassem uma maneira de decidir o jogo nos minutos finais. O placar apertado da partida não foi, portanto, falha dos Estados Unidos, erro de escalação, ausência de jogadores melhores ou negligência, mas sim mérito da Austrália: foi o êxito da maravilhosa tática de SABER SUAS LIMITAÇÕES e jogar de acordo com elas.
Pra começar, a Austrália simplesmente desencanou de tentar infiltrações, até mesmo em contra-ataques. Toda vez que conseguia correr para a quadra de ataque, a Austrália parava no perímetro para um arremesso de três pontos. Foi até um pouco cômico, todo aquele caminho livre para a cesta e os australianos arremessando de longe, mas no segundo tempo ficou bem óbvio o motivo: num único contra-ataque que a Austrália não resistiu e resolveu infiltrar, Kevin Durant veio sabe-se lá de onde e cravou a bandeja na tabela, com um toco alucinante. Foi o atestado definitivo de que o medo da Austrália era justificado e que a estratégia escolhida – a de ficar no perímetro – foi a coisa certa a se fazer.
Criando muitas situações de arremessos de fora, a Austrália forçou os Estados Unidos a tentarem marcar mais em cima, colocando pressão na bola, e aí ficou óbvio quão inteligente é a seleção australiana: com trocas de passes rápidos dentro do garrafão com Bogut e Baynes além de cortes para a cesta sem a bola frequentes de Patty Mills, os Estados Unidos tomaram sequências de cestas nas costas de sua defesa na preocupação exagerada de contestar as bolas de fora. Do outro lado da quadra, a Austrália manteve a melhor defesa da competição até aqui com trocas frequentes em todo corta-luz, marcação dupla, rotação impecável e a capacidade de AMONTOAR no garrafão com pivôs grandes e muita ajuda defensiva, o que forçou a seleção dos Estados Unidos a só encontrar espaço arremessando de fora também. Os primeiros 15 pontos da seleção americana vieram todos de bolas de três pontos, com os já tradicionais arremessos-FIBA de Carmelo Anthony e Kevin Durant.
O jogo da Austrália foi completamente conservador, mas muito inteligente: não dá pra parar os arremessos dos Estados Unidos, mas dá pra impedir as infiltrações e cavar faltas de ataque. Aproveitando o garrafão forte, colocaram DeMarcus Cousins em problemas de falta e no ataque usaram Bogut toda vez que era marcado por alguém menor ou acionaram o pivô em pontes-aéreas por trás da defesa toda vez que os Estados Unidos eram agressivos demais para tentar gerar roubos e contra-ataques. Além disso, a Austrália continuou a tendência de tornar a vida do Kyrie Irving UM INFERNO, tentando sempre colocar jogadores mais altos contra o armador dos Estados Unidos e empurrá-lo para dentro do garrafão, fosse para finalizar ou para criar triangulações que encontravam alguém livre embaixo da cesta. Para parar Irving do outro lado da quadra, dois ou três jogadores da Austrália ocupando os espaços ao redor de cada corta-luz, sempre forçando os americanos ao arremesso longo. E para impedir o domínio físico absoluto de DeAndre Jordan nos rebotes, muitas pancadas contra ele, levando-o para a linha de lances livres onde ele notoriamente fede, mesmo que para isso os jogadores de garrafão da Austrália tenham ficado pendurados ainda no primeiro tempo.
Isso tudo foi deixando a seleção dos Estados Unidos frustrada, sendo obrigada a forçar arremessos e errando demais. Durant tentou arremessar em cima de todo mundo, achando que conseguiria salvar o dia, e errou praticamente tudo que tentou. Mas no fim do dia, lá estava Carmelo para salvar de novo a seleção. Carmelo e seu arremesso de dois pontos da NBA que é o arremesso de três pontos mais consistente do planeta-FIBA desequilibraram a partida no final, e para garantir a vantagem no placar e fechar a partida no quarto período os Estados Unidos jogaram um super small ball com Carmelo de pivô, virando um mismatch ambulante para a Austrália. Carmelo já é o maior pontuador da história da seleção americana em competições internacionais e a maior prova de que o projeto americano olímpico leva em consideração o que funciona no basquete FIBA, não os grandes nomes da NBA no momento. Carmelo é o único que está na seleção desde que a reformulação do projeto começou após a medalha de bronze em 2004, é o líder dessa equipe e suas NOVE bolas de três pontos foram mais do que a Austrália podia lidar.
Sim, Patty Mills fez um estrago absurdo com seus infinitos backdoors, cortando para a cesta por trás da defesa, mas na hora da decisão precisando de uma bola de segurança não havia como Mills ficar livre e a Austrália precisou forçar arremessos de fora ou teardrops por cima da defesa americana; nessas circunstâncias, os arremessos forçados da seleção americana são simplesmente superiores, e não rola de simplesmente contar com a sorte contra eles.
O Brasil também chegou a assustar a Croácia, mas não foi suficiente. Vários dos problemas que vimos com a seleção brasileira na derrota para a Lituânia voltaram: dificuldade em executar um jogo de pick and roll, Hettsheimer ficando no perímetro e abrindo mão do jogo de garrafão, dificuldade na rotação defensiva. Ao menos podemos dizer que nossa defesa nunca mais voltou ao nível MEDONHO daquele primeiro tempo contra a Lituânia, e desde então temos trocado a marcação e pelo menos contestado o jogo de pick and roll dos adversários. O problema com nossa defesa é apenas que faltam peças adequadas para trocar com a velocidade e a inteligência que o basquete atual exige. Alex sempre foi um bom defensor e, como melhor defensor individual do Brasil, assumiu por longos momentos a marcação de Bojan Bogdanovic, que é o motor ofensivo da Croácia. Mas seu tamanho diminuto e a insistência de marcá-lo mesmo quando deveriam ocorrer trocas no corta-luz permitiram ao Bogdanovic terminar o jogo com 33 pontos, 7 arremessos de três convertidos em 10 tentados, e 10 lances livres feitos em 11 tentativas. No final do jogo, precisando apertar na defesa, Alex chegou a mandar o Nenê sair do Bogdanovic numa troca para que ele marcasse o croata no mano-a-mano, mas esse segundo de indefinição liberou uma bola de três pontos certeira que matou o placar. A irritação de Nenê é hilária: fica evidente que ele é muito, muito mais esperto taticamente do que todo o resto da seleção, e esse tipo de má decisão defensiva deixa o coitado de cabelo em pé. Com Nenê em quadra, a seleção é melhor no ataque – com Nenê passando bem a bola, acionando os pivôs e criando um jogo de inside-out que nos gerou muitos arremessos na zona morta – e na defesa – com Nenê tentando cobrir os arremessadores e dominando no box out, empurrando os adversários para fora do garrafão para garantir o rebote. O único problema com Nenê é que ele não tem mais explosão para finalizar os pick and rolls dos quais participa, atacando a cesta lentamente, sofrendo faltas ou tendo suas bandejas contestadas. Nenê errou 8 dos 10 arremessos que tentou, quase todas nessa situação, e acabou ficando fora do jogo durante quase todo o quarto período na tentativa de criar um jogo de pick and roll e pick and pop que funcionasse com Giovannoni e Felício. De fato, o ataque conseguiu criar melhores oportunidades de arremesso – apesar de continuarmos errando muitas bolas livres de três pontos – mas a defesa desmontou de vez, deixando muitos rebotes de ataque para Dario Saric. Além disso, nossa capacidade de contestar passes para o garrafão sem Nenê é muito limitada, gerando pontos fáceis para a Croácia. Basicamente a seleção brasileira não tem um quinteto que funcione perfeitamente em tudo que é necessário, precisa ficar trocando e experimentando, não cria padrão de jogo e está sempre faltando alguma coisa: ou na defesa, ou no garrafão, ou – como é o caso o TEMPO INTEIRO – nos arremessos de três pontos, onde mais sentimos falta de um especialista.
Apesar dos pesares, jogamos de igual para igual com a Croácia e poderíamos ter vencido com um ou outro arremesso de três que tivesse entrado, mas num grupo tão disputado e com times tão nivelados fica evidente que o Brasil carece das ferramentas necessárias para garantir as vitórias que queríamos. Por enquanto, ainda precisamos de mais consistência e, por favor, arremessos de três pontos consistentes – poderíamos naturalizar Bogdanovic, que tal?
Nas outras partidas da rodada, vimos a Sérvia quase matar a França do coração. A França foi agressiva defensivamente o jogo inteiro, mantendo uma marcação dupla constante no garrafão da Sérvia e forçando muitos turnovers e obrigando os sérvios a arremessos de três pontos malucos. Isso por si só parecia suficiente para a França garantir a vitória, mas erros bobos na defesa de transição permitiram à Sérvia encaixar muitos contra-ataques, e toda vez que Rudy Gobert sai de quadra, a França passa a ser DOMINADA no garrafão, especialmente com passes por cima da defesa para o pivô Miroslav Raduljica. No final do jogo, quando a Sérvia acertou muitos contra-ataques e arremessos forçados para virar o jogo, quem resolveu o problema no garrafão foi Boris Diaw, que conseguiu vários rebotes de ataque vindo do perímetro para atacar o aro e criando problemas de marcação para a Sérvia.
Aliás, rebotes de ataque são cruciais nesses jogos AMARRADOS que estamos vendo nessa Olimpíada, com defesas muito fortes, garrafões congestionados e muitos, muitos arremessos forçados do perímetro. Tony Parker passou a maior parte do jogo sem encontrar espaço para infiltrar e tentando chamar jogadas que quebravam o tempo inteiro, fruto da defesa agressiva. A 30 segundos do fim, Parker foi obrigado a forçar um arremesso HORRÍVEL para tentar virar o jogo quando nenhuma jogada mais parecia funcionar para nenhum dos lados. Mas a diferença entre França e Sérvia foi, no fim das contas, que o arremesso medonho do Parker caiu lindamente, enquanto a Sérvia errou seu arremesso desesperado no estouro do cronômetro.
Esse jogo da França e da Sérvia só não foi mais amarrado do que Lituânia e Argentina. Nenhum dos dois times conseguiu fazer absolutamente nada do que queriam. A Argentina lembrou muito o Brasil, que teve seu jogo de pick and roll engolido pela Lituânia, mas ao menos a Argentina conseguiu devolver na mesma moeda e com uma marcação inteligente e ativa cancelou as principais jogadas de garrafão da Lituânia. O jogo foi um festival de bolas forçadas no perímetro para os dois lados de baixíssimo aproveitamento: a Lituânia tentou 24 e acertou 7, enquanto a Argentina tentou 26 e acertou 7. No quarto período, com o jogo no garrafão praticamente anulado, Luis Scola foi diminuído a um arremessador de três pontos que eventualmente ficava livre porque convinha deixá-lo arremessar. Por fim, algumas bolas forçadas que a Lituânia acertou durante o jogo decidiram: a defesa da Lituânia torna os jogos um horror, mas eles parecem confortáveis em decidir as partidas dessa maneira, encontrando arremessos impossíveis nas horas mais importantes.
Para fechar, os dois jogos mais chunbregas da rodada: a China provou que vai ser a única seleção sem vitórias na Olimpíada perdendo para a Venezuela, que ao menos garante que não ficará no último lugar; e a Espanha venceu a Nigéria, o que era esperado, claro, mas Chamberlain Oguchi resolveu fazer chover de 3 pontos – foram 7 acertos em 12 tentativas – para virar o jogo para a Nigéria no terceiro período, pouco antes de Navarro colocar o jogo de volta no lugar e as regras do Universo de volta à sua ordem natural. O Brasil agradece: se a Nigéria vence a Espanha, nossa vitória épica em cima dos espanhóis ia parecer uma mera banalidade.