Nessa segunda-feira contra o Pacers, Klay Thompson marcou 60 pontos – o que já seria, em si, uma marca memorável. O fato de que isso aconteceu com o jogador em quadra por apenas VINTE E NOVE MINUTOS, no entanto, foi o que colocou o mundo em polvorosa, colocar fogo na própria cueca e sair correndo. Sua média na partida de 2.07 pontos por minuto o colocam lado a lado com os 2.08 pontos por minuto de Wilt Chamberlain na sua lendária partida de 100 pontos em 1962. São números impressionantes, inesquecíveis, que colocam Klay Thompson em definitivo dentro de um seleto grupo dos nomes históricos do seu tempo. Simplesmente assistir à compilação de todas as cestas de Klay na noite de segunda é suficiente para tirar o ar até do fã mais calejado e nos faz imaginar quais recordes serão estabelecidos na NBA sem que possamos ainda concebê-los.
Mas depois da magia inicial desses 60 pontos em tão pouco tempo, é importante pensar o que eles podem nos dizer não apenas sobre o Warriors pós-Kevin Durant, mas também sobre o basquete dos nossos tempos. Primeiramente, vale olhar para o passado distante – mais especificamente a década de 60 – para relembrar os 100 pontos de Chamberlain. O pivô conseguiu a marca histórica dando 63 arremessos de dois pontos (e acertando 36), além de 32 lances livres tentados (com 28 convertidos). O resto do seu time marcou apenas 69 pontos e somente dois jogadores não chamados Wilt Chamberlain chegaram a arremessar mais do que dez bolas na partida, com nenhum deles ultrapassando as 18 tentativas. Vemos aqui o retrato de um estilo de basquete que moldou nossa visão do esporte, infiltrou-se no imaginário popular, determinou o sonho de crianças por gerações. Trata-se de um jogador dominante, imparável, uma força que não pode ser detida, apoiada por um elenco ciente de que toda bola possível deve ir parar em suas mãos. É a jornada mítica de um homem contra o mundo e não há nada lá fora que seja páreo ao seu poder. Não há dúvidas de que Shaquille O’Neal, quando chegou à NBA, queria repetir Chamberlain. O próprio Michael Jordan, em sua jornada épica, almejou ser esse jogador insuperável que era capaz de carregar sozinho o peso do mundo. Mas tanto Shaq quanto Jordan enfrentaram um outro tipo de basquete, outras regras, outro ritmo, diferentes defesas, adversários mais fisicamente preparados. O técnico Phil Jackson estava lá, coincidentemente para ambos os jogadores, para adaptar seus sonhos de grandeza à realidade do basquete da época. Ao invés de um jogo inteiramente focado numa única figura capaz de dar 63 arremessos num jogo – e não sentar no banco nem por um minuto sequer – Phil Jackson ofereceu o esquema dos triângulos, em que uma série de movimentações definidas dão aos jogadores as condições de ler as defesas, reagir de acordo e arremessarem a bola assim que entenderem que se trata da melhor situação possível para suas habilidades. Um jogador da NBA tem motivos reais para acreditar que pode finalizar qualquer jogada, acertar qualquer bola – eles são os mais talentosos, os mais técnicos e, acima disso, treinaram mais do que qualquer um. Coloque a bola nas mãos de qualquer armador de fundo de banco da NBA e é seguro afirmar que ele acredita que consegue acertar um arremesso de qualquer lugar da quadra, mesmo que erre eventualmente. Sabemos, estatisticamente, que durante os treinos esses jogadores virtualmente não erram. Isso significa que, na prática, toda situação de arremesso parece VIÁVEL para um jogador profissional, o que poderia levar um jogador mais confiante a arremessar todas as bolas de uma partida sem que ele pareça necessariamente maluco. É necessário, então, que os jogadores entendam quais são as MELHORES situações de arremesso, para que abram mão de alguns arremessos possíveis mas com menores chances de acerto, e o que Phil Jackson pedia para seus comandados, ao invés de arremessar apenas nas situações pré-determinadas em prancheta, era LER E INTERPRETAR o jogo arremessando sempre que parecesse uma boa ideia. Isso leva a um jogo mais coletivo, mais difícil de ser contido, e exige um grau de confiança nos companheiros que nem todo elenco é capaz de atingir.
Os 100 pontos de Chamberlain são de uma época em que TODAS AS BOLAS eram para ser arremessadas pelo mesmo jogador, o mais dominante, o mais atlético. Michael Jordan ainda era o melhor de sua equipe – provavelmente, o melhor da quadra em todas as partidas que disputou – mas seus arremessos só deveriam acontecer quando ele interpretasse que estava na situação ideal para converter suas jogadas. Caso contrário, outros jogadores eram acionados, a movimentação continuava, o triângulo o colocaria contra uma marcação mais favorável ou deixaria alguém em situação melhor próximo à cesta. O preceito é de que se você não dará o seu melhor arremesso possível, então necessariamente é porque outro jogador está em condições de fazê-lo – basta lhe passar a bola.
Apelando para uma elipse temporal, vemos como esse projeto de basquete chegou ao Warriors dos nossos dias. Klay Thompson arremessou 33 vezes tendo segurado a bola por apenas 90 segundos totais em toda a partida. Foram apenas 46 toques na bola, míseros 11 dribles e 20 assistências em seus 21 arremessos convertidos. Ele não foi um jogador só passando o jogo inteiro com a bola na mão e forçando arremessos – as defesas atuais TRUCIDAM jogadores que tentam esse tipo de coisa diariamente. Klay Thompson foi apenas o jogador em melhor situação de arremesso durante a partida, recebendo a bola com mais condições de converter suas tentativas do que seus colegas de equipe ao longo do jogo. Uma olhadinha no boxscore nos lembra que Kevin Durant marcou também 20 pontos em apenas 22 minutos, acertando 9 dos seus 14 arremessos tentados. É que por 14 vezes ele foi o jogador em melhor situação de arremesso e o seu alto aproveitamento mostra como isso é essencial.
A chegada de Durant ao Warriors exigiu algumas adaptações mentais do ex-jogador do Thunder. Em Oklahoma, Durant estava acostumado a arremessar qualquer bola que lhe chegasse em mãos – toda a proposta tática era que Durant e Westbrook, com a bola em mãos, estariam SEMPRE em situação plausível de arremesso e deveriam fazer uso disso. A proposta era legítima, já que não há defensor capaz de parar na frente de Westbrook e ninguém longo o bastante para contestar os arremessos de Durant. Mas no Warriors, mesmo arremessadores do nível de Stephen Curry e Klay Thompson precisam entender que nem toda situação PLAUSÍVEL de arremesso é a MELHOR situação de arremesso. É encontrar essa melhor situação – ainda que, às vezes, em lugares inusitados como o meio de quadra – que garante o altíssimo nível de aproveitamento de arremesso que tornou o ataque do Warriors um modelo a ser seguido. Com isso em mente, Durant passou a ABRIR MÃO de arremessos que lhe são muito simples apenas para acionar os companheiros, numa falsa crença de que para deixar todo mundo feliz deve haver uma pretensa “distribuição igual de oportunidades de arremesso”. O resultado disso foi um Durant inicialmente desconfortável e o elenco inteiro do Warriors cobrando de Durant que arremessasse mais, que desse todos os arremessos em que julgasse estar em situação ideal. É esse tipo de leitura que mostra a inteligência em quadra de um jogador, que garante um alto aproveitamento e que gera confiança de todas as partes do elenco. Não há distribuição por igual de arremessos, o que há são os arremessos sendo dados nos momentos certos – às vezes isso significará que o Durant dará todos os arremessos, às vezes isso significará um punhado de arremessos para Zaza Pachulia. Nessa segunda, isso significou 60 pontos para Klay Thompson.
Tirando uma ou outra jogada eventual em que Thompson forçou uma bola improvável (como um fadeaway contestado de três pontos na zona morta), a maioria dos arremessos foram completamente naturais, fruto do melhor posicionamento em cada jogada e da incapacidade da defesa do Pacers de conter a movimentação ofensiva. Nas raras vezes em que Thompson foi bem marcado, continuou se movimentando até não ser – e em algumas delas, Durant e Curry, por exemplo, acabaram caindo em situações melhores e pontuando no processo. Os 60 pontos de Klay Thompson são históricos e contribuem para a narrativa de um jogador que “pega fogo” muito rapidamente, que entra em “zonas místicas” e passa a acertar tudo que joga para cima, mas a verdade é que ele NÃO JOGOU BOLAS PARA CIMA, não saiu do plano de jogo, não parou de se movimentar o tempo inteiro. É isso que torna a marca dessa segunda-feira tão assustadora: nesse Warriors, ela é COMPLETAMENTE BANAL, pode acontecer de novo a qualquer momento, e pode vir tanto das mãos de Klay quanto de Curry, Durant, Draymond Green ou qualquer outro arremessador que, naquele dia, por encaixe técnico e tático, tenha as melhores oportunidades de arremesso todas no seu colo.
Por muito tempos mantivemos um discurso de que três estrelas juntas num mesmo time criaria atritos, conflitos de ego, que a bola é uma só, que não dá para cada um arremessar todas as bolas que gostaria, etc, etc. Isso vem de uma visão de basquete que carregamos desde os anos 60 – e antes – e que se alimentou da relação de Kobe e Shaq, por exemplo, e a vontade dos dois de encarnarem outros tempos, mais românticos, mais épicos, mais heroicos. Hoje em dia, nada mais disso faz sentido. Garantindo que você sempre dará os arremessos que julgar adequados e sendo capaz de DISCERNIR entre o arremesso fácil e o arremesso MAIS FÁCIL AINDA, vemos a tranquilidade e a confiança do Warriors em seus membros, vemos as festas e as dancinhas no banco de reservas enquanto Klay, ou qualquer um outro, atinge marcas históricas. Ao menos nesse contexto, “ego” se tornou um conceito um tanto arcaico.
Hoje foi um dia estranho em que brotaram dos esgotos legiões de odiadores dizendo que Klay Thompson não é uma super-estrela, que ele nunca faria isso sozinho, que ele é fruto do seu meio. Pois os novos tempos jogam a relevância desse discurso na privada: ninguém precisa de “super-estrelas” no sentido tradicional, basta ter jogadores capazes de marcar 60 pontos todas as vezes que as oportunidades aparecerem. E quando as oportunidades não vierem, basta comemorar – na quadra ou no banco – porque outro jogador estará fazendo o melhor com as oportunidades que lhe sobraram. É por isso que defender o Warriors é um cobertor curto, em que cobre-se os pés e descobre-se as orelhas, e para brincar não é necessário ser super-estrela – basta topar fazer parte.