O Houston Rockets revolucionou, nas últimas temporadas, a maneira de se marcar o Golden State Warriors. Nos últimos dois anos, o Rockets venceu mais partidas contra o rival do que qualquer outra equipe – só nessa temporada regular, o time de Houston venceu 3 das 4 vezes em que enfrentou os atuais campeões. A receita defensiva envolve principalmente as agora consagradas “trocas de marcação”, quando a cada corta-luz sofrido na defesa os marcadores envolvidos no bloqueio invertem os jogadores que deveriam defender. Quando esse tipo de defesa é bem feita, os jogadores do Warriors deixam de aparecer livres no perímetro após receber um corta-luz fora da bola e o jogador que tem a bola nas mãos tem menos tempo para um arremesso limpo após receber um bloqueio. Além disso, as trocas também impedem que os jogadores do Warriors fiquem livres no pick-and-roll, o corta-luz seguido de infiltração rumo ao aro, e em caso de passe para o garrafão força o elenco, tradicionalmente mais baixo, a ter que jogar de costas para a cesta.
O Warriors encontra apenas duas possibilidades para explorar essa defesa: a primeira é atacar os rebotes ofensivos, já que as trocas de marcação desmontam o posicionamento tradicional do Rockets para proteger o garrafão e garantir os rebotes de defesa; a segunda é escolher quem faz cada corta-luz para que as trocas de marcação coloquem sempre um defensor “inadequado” em cima de uma das estrelas do Warriors, permitindo o jogo de mano-a-mano. Para tapar esses buracos, o Rockets apostou em jogadores que nunca fossem “inadequados” marcando em qualquer lugar da quadra contra qualquer adversário – essa é a razão de Clint Capela ficar em quadra, porque consegue marcar tanto no garrafão quanto no perímetro e não se torna um defensor “explorável” pelos armadores rivais. Além disso, o time investiu em jogadores de grande força física em todas as posições – com James Harden e Trevor Ariza antes, e PJ Tucker agora, como os exemplos mais óbvios – para conseguir proteger os rebotes independente do lugar em que estejam em quadra.
Por conta disso, o Warriors tem vida muito difícil contra o Rockets em todos os confrontos: precisa escolher entre dar arremessos apressados, sem ninguém verdadeiramente livre, ou jogar no mano-a-mano contra bons defensores, o que acaba sendo tarefa de Kevin Durant dada a sua capacidade de arremessar por cima de qualquer marcação e de qualquer lugar da quadra. Durant foi essencial para que o Warriors vencesse as Finais da Conferência Oeste em cima do Rockets na temporada passada e foi ainda mais importante para vencer os dois primeiros jogos da série atual. Com isso chegamos à principal questão sobre o Jogo 6 de ontem: como o Warriors reagiria a essa defesa tradicional do Rockets sem poder contar com Kevin Durant?
O primeiro ajuste do técnico Steve Kerr foi acionar Andrew Bogut pela primeira vez na série para ser titular na partida. Ainda que tenha jogado poucos minutos, por ter limitações defensivas contra o Rockets, o tamanho do pivô compensou um pouco a ausência dos braços gigantes de Durant nos rebotes; quando Bogut saiu foi a vez de Kevon Looney e até mesmo de Jordan Bell, que também não havia participado da série. Ao invés de jogar mais baixo, como o Warriors costuma fazer, Kerr apostou em manter pivôs em quadra em nomes dos rebotes – e para impedir que o Rockets pudesse jogar mais baixo também, forçando o time de Houston a manter Clint Capela ou Nenê em quadra.
Além disso, o Warriors tentou mais do que nunca puxar contra-ataques rápidos. Sabendo que encontraria desafios na defesa adversária que não poderiam ser vencidos na marra por Durant, restou ao time correr para pegar os marcadores fora de posição ou ainda em transição. Dentro desse plano, forçar Capela a ficar em quadra ganhou uma vantagem adicional: ainda nas primeiras posses de bola Draymond Green pegou um rebote defensivo e disparou para o ataque na certeza de que Capela não conseguiria acompanhá-lo, ganhando uma cesta livre do outro lado da quadra. Foram nessas jogadas de transição que Klay Thompson conseguiu também seus primeiros arremessos de três pontos nos raros momentos em que esteve livre por conta do ataque em velocidade.
Na prática, o que vimos no primeiro quarto esteve perfeitamente dentro do esperado: o Warriors conseguindo rebotes de ataque (foram 4 no período), o Rockets trocando a marcação, Draymond Green puxando contra-ataques velozes e Klay Thompson arremessando em transição ou acertando bolas difíceis. A única coisa completamente fora do esperado foi que ao contrário de tudo aquilo que o Rockets fez nos últimos anos, contrariando toda a revolução defensiva que citamos anteriormente, a equipe de Houston optou por não trocar os marcadores quando Stephen Curry recebia um corta-luz. Ao invés disso, escolheu fazer a “trap”, a “armadilha”, uma dobra de marcação em que o jogador responsável por Curry e o jogador envolvido no corta-luz correm para cima do armador, que está com a bola em mãos, tentando “prendê-lo” na lateral da quadra. A defesa, super agressiva, forçou Curry a se livrar da bola – o armador acabou o primeiro tempo com ZERO pontos, mesmo número de Durant, que NEM SEQUER ESTAVA NA PARTIDA.
A dobra em Stephen Curry pegou absolutamente todo mundo de surpresa, incluindo o Golden State Warriors e o próprio Curry, que esperavam enfrentar a marcação clássica que tanto incomodou a equipe nos últimos anos. O resultado inicial dessa surpresa pareceu vantajoso, praticamente tirando Curry do jogo e forçando os demais jogadores do elenco a decidirem. Mas não consigo deixar de questionar a LÓGICA por trás dessa abordagem: se o time foi pensado para enfrentar o Warriors no mano-a-mano e Durant (o jogador que funcionava como solução no jogo individual) não está disponível, por que RAIOS experimentar com outro tipo de defesa? O Rockets teve diante de si o cenário que mais desejou em anos, mas resolveu que iria transformá-lo em outro cenário, um mais arriscado e mais imprevisível, em que o Warriors tinha que reagir a dobras de marcação – algo que eles tem um longo histórico de saber fazer muito bem. Ao meu ver, rolou um pouco de ganância: prevendo que Curry deveria arremessar a maior parte das bolas que seriam de Durant, o Rockets não conseguiu resistir à tentação de “fechar essa torneira” e resolver logo de uma vez.
Apesar dos resultados positivos no primeiro tempo, as rachaduras das dobras em Curry começaram a aparecer logo. Desacostumado com esse sistema defensivo, o Rockets errou uma série de rotações e se antecipou demais na hora de fazer a “armadilha”, criando espaço para os demais jogadores do Warriors crirarem jogadas. Curry foi anulado, mas quando o primeiro tempo terminou, Andre Iguodala havia acertado improváveis dois arremessos de 3 pontos e Klay Thompson havia convertido OUTROS CINCO.
Foram 21 pontos para Klay Thompson só no primeiro tempo, um número que colocou o Rockets contra a parede e forçou a equipe a buscar mais poder de fogo para igualar o placar – se não fossem as duas bolas de três pontos de Gerald Green, resgatado dos fundos do banco de reservas, o jogo teria saído completamente do controle, mesmo que ele tome decisões medonhas em quadra. E o problema principal para o Rockets foi que, tirando uma falha de rotação de James Harden e os arremessos rápidos em transição, as bolas de Klay Thompson receberam a marcação adequada, foram contestadas, a defesa fez as trocas necessárias e Klay teve até mesmo que acertar bolas de meia distância em jogada individual, do mesmo lugar da quadra em que Durant tradicionalmente acerta as dele. Assim como acontece com os arremessos de Iguodala (que o Rockets OFERECEU DE GRAÇA), são pontos que você simplesmente aceita quando enfrenta uma das melhores equipes da história e confia no plano de jogo. É desesperador, enfrentando um Warriors sem Durant, ir para o vestiário no intervalo com o placar empatado, mas faz parte do poder do adversário quando as bolas que você quer que sejam arremessadas acabam caindo dentro do aro:
Andre trey 💦
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Ao meu ver, as coisas só desmontaram de vez para o Rockets no segundo tempo quando a mesma marcação dedicada a Stephen Curry (a “trap”, a armadilha de dobrar após o corta-luz) passou a ser utilizada também contra Klay Thompson numa tentativa de “esfriar” o jogador. De novo, minha sensação é de que a resposta do Rockets foi parte desespero, parte “subiu à cabeça”: se estava dando certo contra Curry, por que não daria certo contra Klay, não é mesmo? Por que não “fechar todas as torneiras”? O problema dessa lógica é que o Warriors voltou para o segundo tempo perfeitamente preparado para enfrentar essas dobras graças ao talento de Draymond Green.
Em seus melhores momentos na equipe, Green era o responsável por ter a bola nas mãos após um corta-luz e, com passes precisos, punir as defesas adversárias em movimento. Ele é um dos grandes passadores da NBA e tem uma mente incrível para perceber espaços em intervalos muito curtos de tempo. Um dos motivos pelos quais o jogador não foi tão efetivo nessa temporada foi justamente o fato de que o pick-and-roll entre ele e Stephen Curry já é popularmente defendido com trocas que impedem que Green receba a bola ou que tenha espaço livre para a cesta e para passes em movimento. Se o Rockets havia decidido dobrar em Curry, por que não devolver então a Draymond Green a função em que ele brilhou por tanto tempo na Liga? Com ele iniciando o corta-luz e as defesas dobrando em Curry e em Klay Thompson, não lhe faltaram oportunidades de receber um passe livre, atacar a cesta e encontrar seus companheiros – incluindo o próprio Stephen Curry, se movimentando após o passe. Foi assim que Kevon Looney passou a ser relevante no ataque, por exemplo:
this guy 💪
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Mesmo quando Klay Thompson se viu obrigado a resolver no mano-a-mano, na meia distância e a defesa em cima dele já era eficiente o bastante para forçar um arremesso difícil e contestado, o Rockets decidiu dobrar no último instante “só para garantir” – o que resultou em Kevon Looney pegando rebotes de ataque porque havia um defensor a menos no garrafão, Draymond Green recebendo passes para comandar o ataque, ou então Andre Iguodala recebendo a bola livre no perímetro. Dessas opções, a única desejável para o Rockets seria o arremesso de três de Iguodala, mas ele acabou acertando CINCO bolas de três pontos no jogo, três delas no segundo tempo – foi apenas a quarta vez NA CARREIRA do Iguodala que ele acertou tantas bolas do perímetro. No vídeo abaixo, a quinta bola de Iguodala ao receber um passe de Klay, que estava com marcação dupla:
#SPLASH No. 5️⃣ for 9️⃣
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Ainda assim, o Rockets entrou no quarto período vencendo por 5 pontos, um placar difícil de ser interpretado – era uma vitória pelo time estar à frente mesmo com as partidas incrívels de Klay Thompson, Draymond Green e Andre Iguodala, ou uma derrota porque a vantagem era pequena demais (e frágil demais) num jogo sem Durant e com Stephen Curry inoperante? Minha tendência (pessimista) foi tender para o lado da derrota porque além disso, 5 pontos parecia ainda menos numa partida em que, em termos gerais, o ataque do Rockets estava funcionando muito bem. As bolas de três pontos estavam caindo com um bom aproveitamento, James Harden estava jogando em alto nível (especialmente quando Draymond Green teve que sentar) e recebendo as faltas devidas, Chris Paul teve possivelmente seu melhor jogo pelo Rockets acertando as bolas de fora e abusando dos corta-luzes de Capela na meia distância, PJ Tucker converteu bolas difíceis da zona morta e até Austin Rivers e Gerald Green acertaram arremessos importantes para responder sequências do adversário. Diante disso, uma vantagem passível de ser destruída com duas bolas de três pontos de Curry parecia uma migalha pequena demais.
E foi assim que aconteceu: primeiro Stephen Curry converteu uma bola de três pontos assim que Clint Capela trocou a marcação nele, antes da dobra acontecer, depois a dobra rendeu um passe livre para Draymond Green, que devolveu para Curry converter outra bola do perímetro. E aí, com o jogo apertado, vimos aquela famosa versão medonha do ataque do Rockets que parece querer gastar os minutos do relógio e arremessar bolas somente no estouro do cronômetro. O auge desse horror foi com o time puxando um contra-ataque com 3 atacantes contra 1 defensor só e, por medo de errar um arremesso em transição ou forçar um passe, PJ Tucker só PAROU com a bola na linha de três e esperou o resto do Rockets (e da defesa adversária) se posicionar. Quando o ataque deu errado e virou uma bola de três pontos do Iguodala do outro lado, toda a dinâmica do jogo mudou, o ginásio emudeceu, e o Warriors era novamente favorito para levar a partida. Pouco depois a dobra em Curry “engasgou” com Eric Gordon hesitando, Chris Paul veio do outro lado da quadra e não chegou a tempo, e aí Stephen Curry acertou sua terceira bola de três pontos no quarto.
STEPHEN. pic.twitter.com/HeKai5wJWX
— Golden State Warriors (@warriors) May 11, 2019
O Rockets até fez sua parte em responder ofensivamente com James Harden, mas com menos de um minuto no cronômetro eis que a dobra em Curry deixa Draymond mais uma vez livre para acionar Andre Iguodala, que dessa vez abre mão do arremesso de três (acertar 5 já é contar com a sorte DEMAIS) e aciona Klay Thompson para um arremesso difícil, mas que ele adora converter:
This is stunning, if you ask me pic.twitter.com/u29yzBFEjN
— BBALLBREAKDOWN (@bballbreakdown) May 11, 2019
O Rockets se tornou o time especialista em fazer o Warriors não jogar como o Warriors, mas não dessa vez: por escolhas defensivas, ganância, pânico, fator surpresa ou qualquer outra explicação que surja nos próximos dias, o Rockets permitiu que o Warriors fosse o Warriors. Draymond Green, que já vinha tendo uma série fantástica, foi simplesmente BRILHANTE nesse Jogo 6 para punir as decisões defensivas do adversário, e os atuais campeões voltaram a ser aquele time que pode girar a bola até encontrar um bom arremesso – mesmo que ele venha de Iguodala, Shaun Livingston ou, pasmem, Kevon Looney.
Se Klay Thompson tivesse errado algumas das bolas difíceis que tentou, se Iguodala tivesse acertado arremessos de acordo com seu aproveitamento usual, se Curry tivesse errado arremessos no quarto período por estar “frio”, talvez estivéssemos aqui discutindo como o ajuste OUSADO do Rockets foi genial e carregou o time rumo ao Jogo 7. Como essas coisas não aconteceram, só nos resta olhar com estranhamento para esses ajustes e imaginar se a defesa aplicada no Jogo 5 não teria gerado mais desconforto no adversário do que essa que vimos pela primeira vez justamente num jogo eliminatório.
Depois de ver a “pior versão” dos dois times ao longo da série, já que as defesas dos dois times forçam os ataques a um basquete pouco vistoso, dessa vez pelo menos fomos presenteados com versões muito mais interessantes das duas equipes. James Harden e Chris Paul continuam nunca tendo marcado 30 pontos cada um em um mesmo jogo, mas foi por pouco: Harden conseguiu 35 pontos numa partida incrível, com Chris Paul somando 27. Do outro lado, por sua vez, pudemos lembrar de como o Warriors é completo, confia em seus jogadores mais secundários a ponto de depender de Looney e Bogut, coloca até seus piores arremessadores em situações de converter bons arremessos, como foi o caso de Iguodala, e reage surrealmente bem à pressão – não apenas a pressão psicológica de um jogo decisivo, já que Stephen Curry fez 33 pontos só no segundo tempo, mas a pressão DEFENSIVA, as “armadilhas”, as dobras, as marcações agressivas de quadra inteira. Esse Warriors é, em si, uma revolução tática que só foi possível graças a jogadores completamente fora do padrão, quase “indesejáveis” no basquete da década passada: um armador que arremessa de longe demais mesmo sendo diminuto em Curry, um pivô baixinho que arma jogadas em Green e um arremessador que nunca bate a bola em Klay. Que a esses três tenham se somado Iguodala e Durant é apenas mérito da diretoria, da gestão de teto salarial e do acaso, o que não ofusca de modo algum como um esquema tático transformou aquilo que era “estranho” em MODELO A SER SEGUIDO, simultaneamente combatido e imitado.
No dia em que o Rockets nos permitiu ver esse esquema tático em plena ação novamente, sai derrotado de quadra. O time de Houston também faz parte da revolução tática dos últimos anos e abraçou ainda mais a “revolução estatística” do que o rival, mas o modelo que propõe de basquete continua sofrendo um golpe duro demais aos olhos do público: não consegue vencer o Warriors nos momentos mais decisivos da temporada. Faz parte do esporte o fato de que quando dois modelos são colocados frente-a-frente, apenas um pode sagrar-se vencedor. O modelo do Rockets não ter funcionado mais uma vez contra o seu maior rival (embora funcione contra todos os demais times da NBA, como prova o aproveitamento da equipe nos últimos anos) é uma realidade triste demais e que certamente nos faz questionar a eficácia e a proposta desse modelo. Ainda assim, há algo no “quase” que é poético e encantador: uma visão que foi levada ao seu máximo pode não ser suficiente para vencer um obstáculo ou uma dificuldade em particular, mas ainda assim é a melhor versão de si mesma que pode existir. E no esporte, não há nada mais incrível do que ver planos táticos, elencos e treinadores tornarem-se as melhores versões de si mesmos – mesmo quando, em oposição a um dos melhores times de todos os tempos, essas versões não forem suficientes. Às vezes não é porque algo deu errado que necessariamente tenha sido feito algo errado; nosso máximo pode ser insuficiente, e só nos resta admirar o adversário. Celebremos o Warriors, e que as Finais da Conferência Oeste nos apresentem outros modelos sendo levados ao seu extremo – mesmo quando forem insuficientes.