Nesta quarta-feira (23), enquanto o mundo todo esperava a estreia de Zion Williamson, o Miami Heat recebia o Washington Wizards em um duelo nem um pouco esperado entre dois lÃderes da NBA nesta temporada. Não lÃderes em vitórias, é claro, nem em jogadas de efeito, aproveitamento de bolas de três pontos, tocos ou algo tradicional assim. As equipes são, hoje, as duas que mais usam a defesa por zona na NBA. E claro que elas não decepcionaram, com ambas usando sua arma secreta-mas-nem-tanto na partida.
Tudo bem se você não acompanhou essa partida tão coadjuvante numa rodada numerosa. Deu pra ver defesa por zona também do Toronto Raptors na vitória contra o Philadelphia 76ers, do Orlando Magic na derrota contra o OKC Thunder e repararam na defesa que o San Antonio Spurs estava fazendo no momento em que Zion Williamson fez a bola de três pontos que deu inÃcio à  sequência absurda de 17 pontos em pouco mais de três minutos? Zona devidamente punida:
Esses foram só os jogos que eu acompanhei na rodada, mas certamente tivemos mais defesas por zona em momentos das outras partidas também. Segundo dados da SynergySports, o uso da defesa por zona aumentou em 50% se comparado à temporada 2018-19. Os números ainda são baixos no total, só TRÊS posses de bola defendidas por zona por partida em média ao redor da liga, mas o crescimento é visÃvel. Segundo o New York Times, na temporada passada só Miami Heat e Brooklyn Nets usavam a defesa por zona em ao menos 5% das posses de bola que marcavam, neste ano o grupo tem também Dallas Mavericks, Washington Wizards, Toronto Raptors, Charlotte Hornets e LA Clippers. Depois de tantos anos, finalmente ficou difÃcil acompanhar uma partida da NBA em que por ao menos alguns minutos não vemos times apostando em um sistema defensivo que até pouco tempo atrás era incomum e considerado até mesmo “covarde”.
A defesa por zona é aquela em que um jogador é responsável por marcar uma área do seu campo de defesa, não necessariamente um jogador especÃfico. Às vezes ele pode até ficar mais próximo de um rival, simulando uma defesa individual, quando um determinado jogador está dentro da sua área, mas este deixa de ser sua responsabilidade quando muda de posição. Embora comum em qualquer lugar do mundo, desde o basquete universitário dos EUA até qualquer liga europeia ou sul-americana, na NBA a defesa por zona foi PROIBIDA até a temporada 2001-02.
Não há uma história oficial da proibição, mas o consenso geral da velha guarda americana era a de que a defesa por zona seria um artifÃcio para compensar a falta de talento, de esconder uma incapacidade de defender alguém no mano-a-mano e de punir jogadores mais talentosos que receberiam sempre marcações duplas ou triplas antes mesmo de receber a bola na mão. A obrigação de defesa individual na NBA fez com que o basquete profissional americano ganhasse um rosto mais personalista onde os atletas mais talentosos tinham um incentivo enorme para só colocar a bola debaixo do braço e decidir jogos. A marcação dupla era até permitida, mas um segundo jogador só podia partir para a ajuda quando o alvo já estivesse com a bola na mão. Nos anos 1990, era comum times darem a bola na mão de sua principal estrela enquanto todos os outros jogadores praticamente se escondiam do outro lado da quadra, fazendo com que a possÃvel dobra demorasse tempo demais para chegar. Nunca que hoje dariam tanto espaço para Hakeem Olajuwon receber a bola:
No basquete de hoje até vemos lances parecidos, mas agora é a defesa que escolhe agir assim. Se hoje o espaçamento da quadra é alcançado por bons arremessadores que forçam o marcador a nunca oferecer espaço demais, naquele tempo o espaçamento para a estrela era alcançado na base da LEI. Você é OBRIGADO a marcar um pivô na linha dos três pontos mesmo que ele nunca tenha dado um arremesso de longe em toda sua vida. Não à toa o basquete dos anos 1990, embora empolgante da sua maneira e abençoado com uma das gerações mais talentosas a pisar em quadras de basquete, não era exatamente um primor de criatividade tática e variações ofensivas.
Com um jogo lento e pouco criativo, com placares baixos e defesa fÃsica demais, a NBA resolveu finalmente adotar novas regras e se juntar ao resto do mundo na liberação de defesa por zona. Na época o Melchiades Filho, solitário colunista de basquete (entre outras funções mais nobres) na Folha de S. Paulo, escreveu sobre o que ele chamou de “a mudança de regra mais revolucionária desde que o torneio adotou o limite de 24 segundos para a posse de bola, em 1954”:
“É o fim do mundo que o torcedor da NBA conheceu. A liga anunciou que vai abandonar a principal regra que distinguiu o basquete profissional norte-americano -idolatrado pelas acrobacias, criatividade e velocidade- do praticado no resto do planeta. A partir do próximo campeonato, que começa em outubro, a defesa individual, homem a homem, não será mais obrigatória. Em uma análise simplificadora, pode-se dizer que um jogo da liga não se resume ao duelo entre equipes. Há, sim, cinco duelos individuais simultâneos, os chamados “matchups”. Os times se movem para explorar esses confrontos pessoais, para minimizar suas fraquezas e aproveitar as do rival. A quadra torna-se o habitat perfeito para um jogador talentoso, criativo e atlético -não à toa, Michael Jordan explodiu nesse ambiente. A marcação por zona, por sua vez, permite que se mascarem as deficiências. Se um jogador é falho na defesa, a equipe sai em seu socorre, congestionando o setor”.
Não é exagero. A NBA mudou demais mesmo desde essa mudança de regra, mesmo que a defesa por zona PURA (vamos chamar assim) não tenha sido abraçada logo de cara. A partir de 2002 o que os técnicos começaram a fazer foi adotar de maneira explÃcita estratégias defensivas que antes eram feitas na miúda, na esperança de que os juÃzes não percebessem ou que eventualmente desistissem de apitar toda hora. O plano costumava ser deixar um cara meio que flutuando numa área da quadra, um pouco mais distante do que o permitido oficialmente do seu atacante, para que uma dobra de marcação pudesse chegar mais rápido ou para fechar uma possÃvel infiltração.
O técnico George Karl, que comandou o Seattle Supersonics nos anos 1990, era especialista nessa defesa que sempre flertava com o ilegal. No lance abaixo vemos como isso funcionava: Hersey Hawkins não está tão próximo de Michael Jordan como queria, ele não podia colar no atacante antes dele receber a bola, mas ao mesmo tempo ele não estava ao infame “um braço de distância” do cara que em teoria estava marcando, Ron Harper. Essa meia zona volta e meia passava despercebida e ajudou muito o Sonics a encher o saco de Jordan ao longo da decisão de 1996. No lance abaixo, porém, Jordan percebe a marcação dupla e solta um passe para Harper, que ficou livre após a dobra e meteu o arremesso de longa distância:
Embora muitos treinadores tentassem passar por cima da regra ao longo dos anos 1980 e 1990, boa parte deles mesmos não eram a favor da mudança oficial que, segundo eles, tiraria a essência do basquete da NBA. Alguns diziam que a zona “tornaria seus jogadores preguiçosos”. Outros, como Pat Riley e Larry Brown, argumentavam que o jogo ficaria ainda mais estático, com placares ainda menores e que o garrafão congestionado eliminaria as infiltrações e jogadas de efeito que faziam da liga o que ela era. Não é o que vemos hoje.
No fim das contas o que a regra provocou foi uma onda de inovação ofensiva. Ficou mais difÃcil pontuar apenas jogando para seu melhor jogador no garrafão no garrafão, então os treinadores tiveram que buscar soluções. No comecinho da primeira temporada da nova regra, Melchiades escreveu de novo sobre o tema e falou sobre o que é para nós, hoje, óbvio: o fim da defesa ilegal não inibiu tanto as infiltrações, mas atrapalhou demais a vida de quem vivia recebendo a bola lá perto da cesta.
“Os jogadores de força, sÃmbolos da NBA, murcharam. Há só 3 deles entre os 20 maiores cestinhas.Tanques como Tim Duncan (San Antonio), Rasheed Wallace (Portland) e Karl Malone (Utah) ainda não acharam seu jogo. Os três operam de costas para a cesta dentro do garrafão, exatamente a posição mais neutralizada pela marcação por zona -a defesa cola dois atletas, um na frente e outro atrás, impedindo que os alas-pivôs recebam a bola na área da quadra que dominavam. Advertidos, outros gigantes se reinventaram, se afastaram do “low post”. Kevin Garnett (Minnesota) e Antawn Jamison (Golden State) agora são alinhas”.
É engraçado que o “Senhor Fundamentos” Tim Duncan era visto na época como um dos “tanques” da NBA, mas no começo de carreira ele também vencia pela força. O ala sofreu nas primeiras semanas, mas não demorou muito para Gregg Popovich se adaptar à nova realidade: mais arremessos de meia distância (quem lembra do clássico chute usando a tabela?), mais arremessadores de três pontos a sua volta para punir as dobras (no ano seguinte contrataram Stephen Jackson para complementar Steve Smith e Bruce Bowen) e, claro, mais pick-and-rolls e handoffs (bem-vindos Tony Parker e Manu Ginóbili).
Essa foi a NBA durante muito tempo após a mudança de regras. Os times não usavam aquela defesa por zona clássica, pura, que aprendemos cedo, usamos nas peladas e que é tão explorada mundo afora, com cada um no seu quadrado. Ao invés disso, a NBA usou e abusou foi da chance de organizar seus defensores para fechar espaços aqui e ali sem se preocupar em estar a um braço de distância.
Não entendam mal, foi mesmo uma revolução e o fator que conduziu a NBA para a sua forma atual cheia de times baixos, bolas de 3 pontos, ataques velozes e infinitos pick-and-rolls. Mas e a zona pura propriamente dita? Por que demorou tanto a chegar? O motivo principal é a imagem que os próprios técnicos e jogadores tinham da marcação. Ainda hoje, por exemplo, Gary Payton diz que a defesa por zona é “um lixo” e que times universitários só a usam porque seus jogadores não conseguem marcar ninguém. Se dizia no começo da transição que treinadores tinham até receio de sugerir a zona para seus jogadores com medo de ser mal interpretado, como se estivesse acusando seus atletas de não conseguirem defender direito. Até mesmo aqui no Brasil, onde a zona nunca foi proibida e sempre foi muito usada, podemos lembrar da clássica entrevista do Nezinho chamando a marcação por zona do Flamengo de “uma (zona) 2-3 covarde”:
Mas depois de quase uma década de ameaças, a NBA nos anos 2010 finalmente começou a adotar a defesa por zona. E nada como ser campeão para quebrar preconceitos, né? O Dallas Mavericks de 2011 adorava uma boa “zona 2-3 covarde” e a utilizou até na final contra o Miami Heat, um time que gostava de infiltrar e que ainda não tinha todos os arremessadores de longa distância que sonhava. Logo depois disso o responsável pela defesa do Mavs, o assistente Dwane Casey foi contratado como técnico do Toronto Raptors e levou para lá seus conceitos, também com sucesso. Nos últimos anos o próprio Heat de Erik Spoelstra adotou a marcação e técnicos novos, sem os preconceitos de outros tempos, não tiveram pudor em apelar também, caso de Kenny Atkinson no Brooklyn Nets nas últimas três temporadas. O auge foi ver o Toronto Raptors usando a defesa por zona na FINAL DA NBA contra o Golden State Warriors, especialmente nos minutos em que o adversário não tinha todos seus grandes arremessadores em quadra ao mesmo tempo.
Nesta temporada é legal ver a variedade de times que adotam a estratégia. O Washington Wizards claramente usa a zona para tentar mascarar as falhas defensivas de jogadores como Isaiah Thomas e Davis Bertans, entre outros, mas o Heat com Jimmy Butler, Bam Adebayo e companhia não deveria, em teoria, ter que esconder muita gente. Eles vão para a zona porque acham que é melhor, simples assim. O Heat usa sua zona de tempos em tempos para fechar espaços de infiltração no garrafão, quebrar o ritmo ofensivo do adversário e para limitar a troca de passes. Muitos ataques da NBA hoje se baseiam em corta-luzes e movimentações intensas sem a bola, a zona bem feita deixa tudo isso estéril e ainda serve para marcar melhor as bolas de 3 pontos da zona morta, muito buscadas por times hoje em dia. Um vÃdeo bem completo do Coach Daniel mostra como funciona a versão Heat dessa defesa e de como eles até acabam eventualmente abrindo mão dessa marcação da zona morta tamanho é o foco em tirar o adversário do garrafão:
A marcação não é perfeita, claro, e pode ser exposta mais facilmente na NBA onde há talento de sobra mesmo em times fracos. Como mostramos no vÃdeo que fizemos sobre o Anthony Davis aqui no Bola Presa, a zona abre um espaço na cabeça do garrafão que muitos times com bons arremessadores de meia distância podem tirar proveito. É também relativamente fácil conseguir bolas de 3 pontos em pick-and-pops e uma boa movimentação pode criar situações de três contra dois em um dos lados da quadra. Não ter um defensor colado no seu adversário o tempo todo acaba sendo prejudicial também na hora de pegar rebotes, já que o box out fica mais difÃcil e lento.
Embora tudo isso seja de conhecimento geral, nem sempre é fácil colocar em prática no meio de um jogo. A zona força os times atacantes a saÃrem do que estão acostumados a fazer, da movimentação que planejaram e das jogadas que estão acostumados a executar e os obriga a fazer coisas especÃficas para bater uma zona. É por isso que nunca vimos tanta zona assim na história da NBA mas ao mesmo tempo elas não chegam a aparecer em 5% das posses de bola. Seu uso é esporádico, uma arma para tirar times embalados do piloto automático ou uma arma especÃfica para segurar determinado tipo de quinteto adversário. A regra mudou para trazer mais variedade e a zona pura é uma delas.
Certamente veremos mais defesa por zona nos Playoffs desse ano. Considerando que nessa fase do campeonato os técnicos têm menos medo de exagero, é bem possÃvel que a gente veja protagonismo dela como vimos na Final da temporada passada. O porém é que mais times estão vendo e se acostumando com isso ao longo da temporada regular dessa vez: Philadelphia 76ers e LA Lakers são os dois times que mais enfrentaram defesa por zona nesta temporada e estão aos poucos criando repertório para saber o que fazer quando chegar a hora da verdade. A zona chegou, o quanto ela vai durar no seu modelo atual depende das respostas ofensivas.