A vingança dos nerds

 

Kobe desafiou o bolo para uma partida de 21

“Quando os médicos me falaram que a recuperação poderia demorar 12 semanas, eu decidi que não era a hora de fazer a cirurgia. O que me veio na cabeça é que eu não queria perder nenhum momento dessa temporada devido a tudo o que estamos buscando na NBA nesse ano”.

As palavras são do MVP Kobe Bryant, a cirurgia em questão é a do seu dedo mindinho da mão direita que foi contundido em fevereiro e que ainda não teve descanso. Ele não quis operar em fevereiro, já que o Lakers estava nas primeiras colocações do Oeste e tinha acabado de trocar por Pau Gasol, depois não quis fazer de novo a cirurgia porque queria jogar as Olimpíadas. Agora não quer perder a próxima temporada. Mesmo que por meras semanas em uma temporada de 82 jogos, Kobe não quer operar um dedo contundido na sua mão de arremesso. Insano.

Se qualquer jogador resolvesse operar, não seria estranho. Parece uma cirurgia necessária em que até mesmo seu atraso já pareceu um exagero, e que fazer antes de começar a temporada parece uma decisão sensata, já que na prática o cara iria só perder os primeiros treinamentos e as primeiras semanas de jogo. Depois disso, teria pelo menos uns 4 meses para se entrosar e voltar à forma antes dos playoffs. Mas se o Kobe fizesse isso eu confesso que ficaria surpreso, desde o início achei que se a recuperação fosse demorada, ele iria preferir deixar para depois.

O primeiro motivo é que o Kobe foi MVP jogando meia temporada com esse dedo a menos, os seus números não mudaram e o único jogo que ele não disputou por causa do dedo foi o All-Star Game. Se o dedo não está incomodando, por que perder tempo com uma cirurgia chata? Isso também implicaria perder a parte de treinamento, que pode parecer chata para a maioria das pessoas mas que é sinônimo de “vida” para Kobe Bryant. Desde sempre.

O Brian Shaw, ex-jogador e atual assistente técnico do Lakers, jogou com o pai de Kobe Bryant quando ele estava na Itália e chegou a conhecer Kobe ainda pequeno, com 11 anos de idade. Ele diz que embora o Sr. Bryant fosse um cara bem relaxadão, tranquilo, seu filho não era nada assim. O rapaz treinava o tempo todo e insistia com Shaw que queria jogar uma partida de 1 contra 1 com ele, adulto contra criança. Depois de ser importunado demais (sabem como podem ser persuasivas as crianças), Shaw concordou em uma partida de H-O-R-S-E, aquele jogo em que um cara faz um arremesso e o oponente deve fazer um igual. Até hoje Kobe se vangloria da sua vitória, Shaw diz que não via sentido em tentar vencer uma criança. Mas diz que, desde aquele tempo, via uma coisa diferente no rapaz: ele desafiava os jogadores mais velhos não pela brincadeira ou pela diversão. Kobe Bryant, com 11 anos, tinha certeza de que poderia vencer qualquer um.

Já na NBA, o seu primeiro técnico, Del Harris, lembra que mesmo com apenas 18 anos Kobe tinha a mesma cabeça de quando tinha 11. “Ele dizia, ‘técnico, apenas me dê a bola e me libere, eu posso ganhar de todo mundo nessa liga'”. Harris então explicou que não poderia ser assim e que ele não poderia dizer para o Shaquille O’Neal sair da frente para o novato tentar tomar conta do jogo. Muita gente pode dizer que não, mas a verdade é que o Kobe aceitou o seu papel secundário. Ele volta e meia era fominha e queria decidir os jogos sozinho, mas não era sempre. Em geral, como até o próprio Kobe já disse, ele aceitou o seu papel na equipe e fez de tudo para vencer os campeonatos. Venceram três.

Claro que isso não fez o Kobe deixar de achar que poderia liderar sozinho um time, ainda achava que poderia vencer qualquer um e nunca duvidou que fosse o melhor jogador da NBA. Não era ser convencido, era ter certeza de um fato. O Kobe se acha melhor porque ele entende do jogo e sabe o que ele faz melhor do que todo mundo, ele sabe que treina mais do que todo mundo. Como disse Idan Ravin, personal trainer de vários jogadores da NBA, “por que o Kobe iria passar a bola para alguém que não treina tão duro quanto ele, para alguém que não se importa tanto quanto ele?”. Não dá pra negar que faz sentido.

O engraçado é que quem o conhece não diz que Kobe trata os outros mal, que seja convencido ao ponto de ignorar os companheiros. Tirando o Shaq, nenhum outro companheiro de time teve problemas sérios com ele pelo o que eu me lembro, o que acontece é que ele não faz amigos próximos, o Kobe é isolado. Mas espera aí, isso não te lembra alguma coisa? Alguém que não tem vida social, que é criticado pela maioria mesmo sendo alguém de incrível talento e conhecimento técnico. Isso é um nerd! Por mais que o nerd seja um gênio em física nuclear, ele continua sem amigos e sendo jogado no lixo pelos colegas só porque não tem a malícia no jogo social, só porque se importa mais com a sua ciência do que com o mundo à sua volta.

O Kobe é um nerd do basquete. Ele se importa demais em estudar o basquete, em entender o jogo e em melhorar, e não está nem aí para fazer amigos, ter bom relacionamento, lançar um CD de rap ou estrelar filmes. O que ele quer é basquete.

Quando o Kobe estava no colegial, entrou no time de basquete da escola e impressionou todo mundo por ser um novato que não tinha medo de enfrentar os caras mais velhos, ele queria mostrar a que veio, queria seu lugar no time e queria ganhar o campeonato estadual. No seu primeiro ano lá, o título não veio e enquanto os caras que estavam no último ano se abraçavam no vestiário, comemorando o resultado e dando adeus ao time, o Kobe chegou xingando todo mundo e dizendo “o trabalho começa agora!”. No ano seguinte eles tinham que ganhar e não tinha motivo para passar um dia a mais descansando. Ficou mais fácil entender por que o Kobe não quer perder um mês de treinos antes da temporada começar?

Mas tem mais. Ainda no colegial, o Kobe chegava na escola às 5 da manhã para treinar até às 7, quando começavam as aulas, e depois voltava para treinar até de noite. Faltou uma confirmação pra saber se ele comia, tomava banho e dormia, coisas valorizadas na sociedade ocidental mas que não sabemos se Kobe respeitava. Quem treina tanto não pode aceitar facilmente uma derrota, e Kobe não aceita nenhuma. Nos treinos do seu colégio ele levava a sério qualquer partidinha de brincadeira. Podem chamá-lo de infantil e terão razão. Se você pensar bem, ninguém leva mais a sério uma brincadeira do que uma criança. Adultos, quando sabem que estão em uma brincadeira, dão risada dos seus erros ou não levam a sério para não encararem a derrota. Já a criança, mesmo que seja um fracasso na brincadeira em questão, se entrega de corpo e alma, se sentindo um deus quando vence e um lixo quando perde; lágrimas e gritos são comuns em brincadeiras de criança e em jogos com o Kobe Bryant.

Em um dia no colegial, estava sendo jogado um 3 contra 3 até 10 cestas. No time de Kobe estava um baixinho de menos de 1,75m que só esquentava o banco do time, chamado Rob Schwartz. Com o placar de 9 a 9 o garoto errou uma bandeja, que resultou no rebote e depois na vitória do time adversário. Enquanto a maioria das pessoas iria tomar um banho, beber água ou só pedir uma revanche, o Kobe preferiu ir atrás do Scwhartz, gritar com ele e mesmo assim a raiva não passou. “Eu senti ele me olhando pelos próximos 20 minutos. Sabe quando você não precisa olhar pra saber que tem alguém te encarando? Foi assim. Parecia que perdendo aquele treino eu tinha perdido o campeonato estadual.”

Treinar em horários bizarros e obrigar companheiros a acompanhá-lo é algo que ele fazia no colegial e que ele levou para a NBA. Sempre depois de um treino ele pede para alguém ficar para jogar uma partida de 1-contra-1 ou só para ele ter alguém em quem treinar um novo drible. Ele já usou repórteres para treinar dribles (aliás, vale a pena ler esse causo na íntegra, além dos outros que compõe esse post, nessa excelente matéria do Sports Illustrated). O mesmo Rob Schwartz, o garoto da bandeja errada, foi o alvo de partidas de 1-contra-1 que iam até CEM pontos depois do treino. Sério, quem tem saco de pegar alguém infinitamente inferior e jogar até 100? Algumas vezes o Kobe abria 80 a 0 antes de sofrer a primeira cesta e ainda tinha saco pra jogar até o fim. Na NBA isso acontecia também, o Devean George disse que volta e meia ele escolhia alguém pra ficar depois do treino e ser sua cobaia em novos dribles ou jogadas que ele estava tentando, jogadas que, claro, ele já usava no jogo seguinte com sucesso.

Na seleção americana vimos mais um caso do Kobe-nerd. Antes de um amistoso contra a Austrália, durante o aquecimento pré-jogo, ele chamou o Chris Paul de lado e pediu para que ele mostrasse como ele fazia seu drible para executar um pick-and-roll na lateral da quadra. Paul demonstrou e Kobe ficou balançando a cabeça impressionado com o seu professor, o vice-campeão na corrida de MVP vencida por Kobe.

Dizem que vivemos a era dos nerds. Eles dominam as grandes empresas da internet, dominam a informática e de repente comandam a indústira do entretenimento, que percebeu que nerds são ótimos consumidores, já que costumam ganhar bem e usam seu dinheiro com seus vícios, além de serem fãs fiéis. Nessa era, o maior jogador de basquete do mundo é um nerd também. Kobe Bryant é obcecado pelo basquete, em aprender basquete, em jogar, em vencer, mesmo que isso signifique não ter amigos, vida social, ter gente que o odeia.

Mas ao invés de ser fã de Star Trek, Kobe é fã de Michael Jordan. E aí talvez esteja a grande diferença do nerd comum para o nerd Kobe: um gosta de admirar, de ser apenas fã, enquanto o Kobe admira ao mesmo tempo em que quer superar. Se ele vai conseguir, pouco importa, mas só essa busca da superação de Jordan, que ele persegue acreditando que vai conseguir, já faz dele o melhor jogador do mundo. Mesmo com um dedo a menos.

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