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Graças à cotovelada de Andrew Bynum para tentar impedir uma cesta de Gerald Wallace, de que o Denis falou em sua análise do jogo, o pobre ala do Bobcats está sofrendo com pneumotórax e uma costela quebrada, condições um tanto complicadas que afastarão Wallace das quadras por algum tempo.
A notícia cai como uma bomba em cima de um Bobcats empolgado, embalado, com chances de playoffs e que agora se vê obrigado a colocar o Adam Morrison em quadra, provavelmente uma das piores terceiras escolhas de draft de todos os tempos e que, no fundo, só vale pelo bigodinho.
Essa não é, no entanto, a primeira falta dura que Bynum comete defendendo o garrafão. Contra o Cavs, estatelou o LeBron no chão para impedir uma enterrada inevitável e quase começou uma confusão porque o próprio LeBron não gostou tanto da pancada quanto gostaria de, deixe-me ver, sorvete, por exemplo. Já o Bobcats lidou melhor com a atitude de Bynum, Larry Brown e seus jogadores disseram que foi uma falta dura mas sem nenhuma intenção de contundir e que a NBA não deveria tomar medidas legais a respeito. Não que isso vá adiantar, claro, porque por lá qualquer espirro é punido mais tarde com multas milionárias e suspensões, afinal o David Stern é entediado e está se vingando dos coleguinhas esportistas que tacavam ele no lixo quando ele estava no colégio e era um nerd derrotado.
Compreendo que o Bynum não tinha intenção de matar ninguém, de colapsar pulmões, quebrar costelas ou mandar alguém para o hospital. Suas intenções eram, sim, impedir uma cesta a qualquer custo. Mais do que isso, como alegou no caso do LeBron: sua intenção era não permitir que enterrassem na sua cabeça, era manter intacta sua honra, era explicitar seu domínio do garrafão. Aí está a diferença brutal entre um cara como Bynum e alguém como o Yao Ming – que talvez até tentasse um toco, nada mais, e provavelmente tomaria uma cravada na cabeça e correria de volta pro ataque com a cabeça abaixada e aquele ar de “oops” (não o “oops” sexualizado da Britney, está mais para o “oops” do Silvio Santos quando caiu na piscina).
Entendo que a função de um pivô seja proteger o seu garrafão, que é seu trabalho, sua função, o motivo pelo qual ele ganha seu salário. Um advogado processa, um vendedor vende, um pivô às vezes quebra costelas. Mas, em geral, não é possível separar um indivíduo do modo como ele exerce sua função, e no esporte isso fica mais explícito: não apenas porque os jogadores estão fazendo aquilo que amam (um advogado não necessariamente faz o que gosta), mas também porque o esporte permite um nível de expressão que, filosoficamente, não o separa muito da arte.
É por isso que sempre digo que, ao ver basquete, estou na verdade vendo uma janela para o mundo. É um recorte do mundo real, é um modo de assistir a pessoas interagindo num mundo com regras bem definidas (o que pode e não pode ser feito, quais são os objetivos, as funções, as posições, as recompensas) e um local limitado (no caso, a quadra de basquete, ao menos em geral). Na impossibilidade de ver o mundo inteiro ao mesmo tempo, olhamos através da janela de nossas casas e vemos uma parte que, por sua vez, representa o todo em algum grau. Quando vemos basquete, estamos vendo uma parte do todo, estamos vendo o mundo de uma forma limitada e ordenada, embora ainda criativa, espontânea e munida de infinitas possibilidades.
O que isso significa? Na prática, quer dizer que o modo como alguém joga basquete é um espelho de sua relação com o mundo. E que, portanto, não adianta dizer que o Bynum “fez o seu trabalho”. Ele agiu de acordo com o modo com que encherga as coisas ao seu redor, dentro ou fora da quadra. Não permitir que LeBron enterre na sua cabeça ou impedir Gerald Wallace a todo custo mostram quem ele é, sua relação com o ego, sua vontade de atingir sucesso não importando as consequências.
Os fãs do Bruce Bowen ainda me perseguem nas ruas, mas não tenho como deixar de criticá-lo mais uma vez (de cada cinco palavrões que eu disse em minha vida, três foram para o Bowen e dois foram para o Gilberto Barros). Defender a todo custo, impedir uma cesta dando uma voadora, alcançar a vitória contundindo adversários, tudo isso não é sua profissão, é uma demonstração de suas crenças pessoais. No esporte as pessoas costumam achar legal, “faz parte do jogo, o importante é vencer, tudo que interessa é a vitória” mas na vida real se um cara quebrasse seu pé para pegar a última Playboy da Alinne Moraes nas bancas (não custa nada fazer nossa fezinha) ninguém acharia legal. É engraçado como pessoas competitivas são obrigadas socialmente a manter isso escondido, meio por baixo dos panos, mas quando entram numa quadra para praticar um esporte descem a porrada em todo mundo, passam horas discutindo regras e em alguns casos são recompensadas por isso com “ele dá o sangue” ou similares.
Perdi horas da minha vida sentado numa quadra de basquete, bocejando e pensando no que comeria no jantar, enquanto jogadores competitivos brigavam e se exaltavam para saber de quem seria uma bola que saiu pela lateral. Agora, costumo levar um livro comigo quando jogo basquete (a tentativa inicial de levar travesseiros mostrou-se ineficaz, eu pegava no sono e só percebiam que eu estava ali quando o jogo recomeçava e alguém tropeçava em mim). Fora das quadras, esse comportamento não é aceito, ele é repugnante e detestável. Por que deveria ser aceito num esporte, por mais profissional que fosse?
Na minha carreira escolar, tentava explicar em vão para meu técnico porque eu não conseguia ser físico na defesa, porque eu preferia deixar alguém fazer uma bandeja a tentar um toco numa situação em que claramente farei uma falta. Oras, somos dois jogadores de basquete, compartilhamos a mesma linguagem, não tenho porque descer o sarrafo nele – aliás, eu odiaria que impedissem minha cesta com uma porrada, porque impediria a cesta do outro? Claramente não sou uma pessoa competitiva, não adianta. Eu faria diferente se me pagassem 20 milhões de doletas por ano? Dificilmente. O jeito com que jogo basquete é o jeito que eu sou, todos os dias. O Bruce Bowen pode até ser um cara legal, bem-humorado como muitos dizem que ele é, eu juro que acredito. Mas também posso deduzir que ele faça qualquer coisa para alcançar seus objetivos, não importa as consequências – seria muito ingênuo da minha parte imaginar que ele faça isso apenas em quadra e não atropele outras pessoas constantemente na sua vida aqui, no mundo real.
Não me importo nem um pouco com as ações que a NBA tomará contra o Bynum, na verdade nem acho que algo deveria ser feito. Regras e punições só tornam essas coisas piores, mais camufladas e mais chatas. Ontem, fui assistir à estréia do NBB entre Pinheiros e Flamengo, e fiquei enlouquecido com o fato de que qualquer besteira é marcada como “falta intencional” ou “anti-desportiva” (também fiquei enlouquecido com o relógio de 24 segundos que moscou na jogada final, e com os caras que enxugavam a quadra com um rodo de banheiro, mas disso eu falo mais tarde, com mais calma, provavelmente em um outro espaço que não o Bola Presa exatamente). Não acho que devam existir regras que inibam o jogo, que o amarrem e impeçam os jogadores de se expressarem. Apenas acho que devemos repensar o modo como lidamos com as atitudes de alguns jogadores. O Bynum vai defender o aro como puder, custe a quem custar, mas isso é legal? Deveria ser aplaudido? A maioria das pessoas dirá que isso está na regra, que é permitido e então pode, o que é um argumento surreal (você não mata porque não está na regra?), mas talvez isso já esteja por demais enraízado em nossa cultura esportiva. Mais importante, talvez, seja ver o outro lado: quando um jogador não tacar alguém no chão, quando não quebrar uma costela para vencer um jogo, talvez possamos entender isso apenas como uma faceta de sua personalidade, como o modo com que ele lida com o mundo, e não criticá-lo loucamente por ser frouxo, preguiçoso ou, como muito se diz na gringolândia, “soft”.
O Yao Ming toma enterradas na cabeça? Legal. O Rasheed Wallace não quer bater pra dentro e enterrar, preferindo arremessar da linha de três pontos? Bacana. O basquete não é um mundo à parte, uma ilha isolada da vida humana, com regras que não se aplicam a mais nada no Universo. Ao menos um pouco, pensem no basquete como janela, e tenham certeza de que admiramos no mundo real inúmeras pessoas que passaram uma vida arremessando de três quando poderiam estar enterrando. Admiramos, seguimos e idolatrando gente que alcança seus objetivos sem quebrar costelas. Gente que deixa o outro enterrar, simplesmente porque vai ser legal.