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No início do mês, Bruce Bowen anunciou sua aposentadoria das quadras de basquete. E se não falei nada na ocasião, era somente porque eu estava ocupado demais comemorando o fato, estourando champagne. Vou sentir tanta falta do Bowen quanto sentiria falta de uma apendicite, mas a verdade é que ele deixa o basquete com três anéis de campeão nos dedos e oito seleções para os melhores times de defesa da NBA. Mais do que uma carreira vencedora, Bowen nos deixa uma clara imagem do que é, hoje, o basquete de resultado. Do que uma pessoa que fede pode fazer para ter sucesso e ser alguém na vida.
A infância do Bowen não teve “Xou da Xuxa”, não. Sua mãe vendeu a TV pra comprar drogas e o pai era alcoólatra, o que não constitui exatamente o kit criança feliz. Jogando basquete, Bowen conseguiu certo destaque, uma bolsa de estudos e salvou seu futuro, dando o fora de casa. Mas não era grandes coisas e, ao entrar no draft de 93, não foi escolhido. Acabou indo jogar na França, além de ligas de basquete genéricas nos Estados Unidos como a CBA (o equivalente basquetebolístico das pilhas Durabell), e ralou um bocado antes de conseguir ter uma chance na NBA de verdade. Quando conseguiu não fez nada demais, era um jogador extremamente limitado e não arrumava um contrato. Ficou passeando de um lado para o outro sem fazer nada de relevante, tipo a Mari Alexandre depois da “Casa dos Artistas”. Foi parar no Heat, no Celtics, no Sixers e no Bulls, mas foi apenas em sua segunda passagem pelo Miami que acabou destacando-se como um bom jogador defensivo. Toda equipe pode aproveitar um desses caras que não tem habilidade mas sabe defender, jogando um punhadinho de minutos por jogo só, para não comprometer. Em geral, esses especialistas em defesa ficam no time titular, segurando a estrela adversária, e vão sentar assim que a equipe precisa de poder ofensivo, quando as estrelas saem da quadra. É o caso do Dahntay Jones no Nuggets, Antoine Wright no Dallas, Trenton Hassel no Nets e do Nicolas Batum no Blazers. Foi assim que, focando-se na defesa, dedicando-se a cumprir esse papel em quadra, Bruce Bowen garantiu alguns minutinhos em quadra, de modo que seu ataque medonho e sua porcentagem de aproveitamento nos lances livres (que faz até o Shaq apontar e dar risada) não chegassem a comprometer muito as equipes dispostas a acolhê-lo.
Foi então que o Bowen foi parar na situação perfeita. Um time com potencial para ser campeão precisava apenas de alguém obediente, capaz de fazer o que fosse necessário pela equipe, defender as estrelas rivais e acertar arremessos de três pontos dos cantos da quadra. A descrição parece feita sob medida para Bruce Bowen, que foi contratado pelo Spurs e imediatamente abraçou sua função inteiramente. Seus arremessos de três da zona morta tornaram-se uma arma essencial da equipe, mas foi sua defesa que permitiu que atingissem outro nível. O Duncan reina, blablablá, o Parker chuta traseiros, blablablá, Whiskas sachê, mas foi a marcação de Bowen que permitiu que essas estrelas enfiassem tantos anéis nos dedos. Foram três desde 2001, quando ele chegou à equipe, sempre como titular absoluto e peça essencial do elenco.
Genial que um garoto numa realidade tão ruim tenha encontrado a situação ideal em que foi capaz de realizar-se, ter sucesso e deixar seu nome na história, tudo através de muito esforço, dor e trabalho duro. É a história perfeita para um filme com o Will Smith que emocionará milhões ao redor do mundo. Quer dizer, até que nos lembramos quais meios Bruce Bowen usou para honrar suas obrigações com aquilo que lhe era pedido em quadra.
Às vezes nos esquecemos que a NBA é um negócio, uma forma de gerar e ganhar dinheiro como qualquer outro. Com exceção de um punhado de fãs apaixonados malucos, como o Mark Cuban, a maioria dos donos de times da NBA estão interessados em lucros, regendo suas equipes como se fossem empresas. É assim que vemos jogadores importantes sendo mandados embora apenas para economizar dinheiro, é a crise, tudo corte de desespesas, moçada. Quando uma empresa precisa de alguém para fazer um serviço sujo e imoral, vai atrás de um funcionário que tope a brincadeira. Alguém sempre topa, mesmo que não seja bonito. Assim, por mais que a história de Bruce Bowen seja bonita porque ele escapou de seu destino através do basquete, para mim ele sempre será o cara que topou fazer o trabalho sujo sem questionar. O funcionário que usa de quaisquer recursos, limpos ou não, para fazer seu trabalho. Na vida real, certamente acharíamos terrível um engravatado tentar acabar com a carreira de outro apenas para se dar bem na empresa, conseguir atingir suas metas, seus sonhos. Então por que acharíamos isso legal no esporte?
Em sua primeira temporada no Spurs, Bruce Bowen deu aquela legendária voadora no rosto do Szczerbiak que lhe rendeu o apelido de Bruce “Lee” Bowen (o coitado do Bruce Lee teria vomitado com a comparação). A partir de então, sua trajetória no Spurs já estava traçada. Para alcançar seus objetivos, tornou-se um especialista em deixar o pé embaixo dos advesários que pulam para o arremesso, causando contusões. Aprendeu a bater, chutar e irritar por debaixo dos panos, quando os árbitros não estão olhando. E, com isso, tornou-se um vencedor.
Tudo que ele fez está previsto, faz parte do basquete. Bater sem que o juiz veja é também uma arte, que exige treinamento, esforço e dedicação. Bowen ralou pra tornar-se um campeão apesar das limitações físicas e técnicas. Fez o melhor que poderia dentro de suas dificuldades. Mas eu adoraria ensinar para os meus filhos que não são os fins que realmente importam, mas os meios. Não importa os campeonatos que o Bowen alcançou, mas sim o modo como ele atingiu esses objetivos. Para quem acha que, no esporte, vale qualquer coisa em busca da vitória, volto a lembrar que o esporte é apenas um dos aspectos de nossas vidas e, portanto, reflete os valores que mantemos diariamente. Não há espaço para o Bruce Bowen no esporte que amamos, ao qual dedicamos nossas vidas e através do qual assistimos o mundo. Não há espaço para o Bowen num local que deveria ser constituído pelo respeito entre pessoas que expressam-se através da mesma arte. Mas há espaço para o Bowen no basquete que só visa os resultados, o lucro, a vitória. Há espaço para ele na Era do Spurs.
A queda do time de San Antonio, portanto, casa perfeitamente com a queda de rendimento do Bruce Bowen. Sem suas capacidades defensivas o time fica debilitado (o Suns teria sido campeão um par de vezes sem o Bowen pra arrebentar o Nash de porrada), mas ficou bem claro que ele não tem mais fôlego pra acompanhar a moçada. Foi perdendo minutos, o Spurs caiu de produção, sentiu a falta de outros jogadores também, e foi eliminado na primeira rodada dos playoffs na temporada passada. Ime Udoka foi contratado e treinado para substituir Bowen há anos, mas ele simplesmente não é tão eficiente – defende bem, mas nada fora de série, e nem fora das regras. Para o seu lugar, o Spurs conseguiu Richard Jefferson, cuja especialidade é pontuar, atacar a cesta. Frente à decadência de Bowen e à necessidade de uma mudança no time e na mentalidade ofensiva da equipe, não houve qualquer exitação em abrir mão de um funcionário diretamente responsável pela conquista de três anéis de campeão. Para trazer Jefferson do Bucks, o Spurs mandou o Bowen sem arrependimentos e não fez questão de recontratá-lo quando surgiu a oportunidade. É o auge do basquete de resultados: quando não presta mais, vai pro lixo.
Talvez o maior legado de Bowen ao basquete, para nós, seja o fim da ingenuidade com que lidamos com o esporte. Por vezes, imersos em nossa paixão pelo basquete, somos levados a acreditar que os jogadores estão em quadra por paixão, amor, testando seus próprios limites e ajudando a expandir os limites dos outros. Respeitando, admirando e compartilhando a mesma linguagem, o mesmo esporte. Com o Bowen lembramos que trata-se de dinheiro, de lucro, de empresas, de resultado. Ele bate, desce o braço, lesiona, contunde, o time vence, a torcida fica feliz e a franquia lucra zilhões. Pior do que a defesa dos torcedores cegamente apaixonados sempre foi a defesa da NBA, que sempre se negou a suspender ou coibir. Na verdade, sempre premiou Bowen com menções nas eleições de melhores defensores da liga, compreendendo que aquilo que importa é quem levanta o caneco no final do dia. Eficiência.
Amanhã, teremos uma coletânea de vídeos do Bowen, com seus momentos mais polêmicos, engraçados, e as contusões mais explícitas. Mas hoje, ficamos apenas com a constatação de que Bowen deixa para traz um esporte maculado. Antes que possamos dizer “parangaricutirimirruaru”, ele estará comentando basquete na TNT ou na ESPN, e deve ser um baita sujeito engraçado (como dá pra ver na série de comerciais que o Denis postou), vou me divertir com ele e dar risada. Mas o que ele deixou em quadra é prova ainda maior de caráter, de visão de mundo, do que ser simpático quando não há nada em jogo. O desesperador é que ele é apenas um exemplo, um ícone mais fácil de ver, apontar o dedo e criticar. Mas não se trata de um fenômeno isolado, nem nas quadras nem nas ruas. Formamos uma cultura bitolada pela ideia de vencer, seja no emprego, no esporte ou no vestibular. Mas no mundo em que o Bowen venceu, vocês me desculpem, mas eu quero é ser fracassado. Se pra chegar lá em cima é preciso bater, eu prefiro ficar aqui e apanhar.