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Com o apagão da terça-feira, não só tive problemas para encontrar a maldita fechadura da minha casa como também não pude acompanhar a rodada da NBA. Todos nós ficamos privados de acompanhar os jogos pela internet, e então não pudemos ver o Wizards desfacelado perder para o Heat (a lista de contundidos tem Jamison, Mike Miller e agora Randy Foye), não pudemos ver o arremesso de último segundo do Brad Miller ser anulado e o Bulls inteiro passar vergonha de ter comemorado, e não pudemos ver o Kings ganhar sua terceira partida seguida sem Kevin Martin. E por mais bizarro que possa parecer, minha real tristeza com o apagão foi realmente ter perdido a partida do Kings.
Na listinha dos meus jogadores favoritos, Kevin Martin tem um lugar especial. Não tenho fotos dele nas minhas paredes com coraçõezinhos desenhados nem nada, apenas acho o sujeito um dos jogadores mais bacanudos de se acompanhar. O problema de ser meio tiete do Kevin Martin é que, como o Kings fede muito e teve a pior campanha da temporada passada, é praticamente impossível encontrar algum jogo da equipe para assistir. Feliz com a aquisição do meu League Pass (prometo uma resenha do pacote em breve), prometi que assistiria vários jogos da porcaria do Kings para poder ver um dos meus jogadores preferidos em quadra. Mas aí ele quebrou o pulso e está fora por pelo menos 2 meses. Ou seja, parece que eu trago tanta sorte para o time que assisto quanto o Zach Randolph traz para seus companheiros de equipe (não deixe de assistir o vídeo dele quebrando a mandíbula do novato Thabeet sem querer).
Ainda assim, ao perceber que a partida entre Kings e Jazz estava disputada, resolvi dar uma espiada rápida para ver se algum mórmon já estava arrancando os cabelos. Porque perder para o Kings é uma vergonha, mas perder para o Kings sem Kevin Martin é tipo perder a batalha da audiência para o programa do Faustão sem o Faustão (exemplo ruim, talvez o programa ficasse melhor mesmo). O que encontrei, no entanto, foi um time completamente diferente, com outra postura em quadra, passes rápidos, armadores agressivos e uma vitória merecida. Tá bom que o Jazz está perdendo um punhado de partidas e ninguém sabe muito bem o porquê, mas o que me surpreendeu com o Kings sem Kevin Martin é que a equipe ficou misteriosamente divertida de se assistir. Acompanhei a partida seguinte contra o Warriors para me certificar do fenômeno, e a vitória esmagadora foi um dos jogos mais bacanas da temporada, recheado de lances plásticos e basquete bonito e bem jogado. A partida seguinte, dessa vez contra o surpreendente Thunder (também conhecido como “o time outrora conhecido como Sonics”), foi imediatamente parar no meu calendário. Eu precisava ver pela terceira vez para me certificar de que era real, mas o apagão não deixou. Enquanto eu acendia velas e tentava não queimar o meu carpete, o Kings venceu a partida e, aparentemente, deu mais um espetáculo empolgante de basquete.
O que temos aqui parece ser mais uma “síndrome de Gilbert Arenas”, que conhecemos quando o Wizards melhorou um bocado assim que o Arenas se contundiu e virou farofa. A equipe passou a defender melhor, cuidar melhor da bola, vários jogadores subiram de nível e virou padrão dizer que o Arenas tornava o time pior. O ritmo não durou muito, o Wizards voltou a feder, e agora podemos ver muito bem que o time fede com o Arenas ou sem o Arenas, então dá um pouco na mesma (embora certamente qualquer time piore quando seu armador comete 12 desperdícios de bola num jogo, como aconteceu com o Arenas contra o Heat, pelo menos nisso agradecemos ao apagão por não termos visto essa atrocidade). Houve síndrome similar com o Houston, que ganhou 10 partidas seguidas na temporada retrasada quando o Yao Ming se contundiu (mas havia ganhado 12 seguidas com o Yao em quadra). Basta que uma estrela se esfarele e o time mantenha o nível ou melhore para que o universo passe a gritar que o sujeito piora a equipe. Em geral eu descarto essa ideia imediatamente, na maior parte dos casos o resto do elenco simplesmente se esforça mais para compensar a perda da estrela da equipe mas não consegue manter o nível por muito tempo. Mas com esse Kings, realmente tenho minhas dúvidas – a melhora foi mesmo muito, muito acentuada.
As três vitórias seguidas foram a primeira sequência de vitórias do Kings em um ano, e o começo de temporada com 4 vitórias e 4 derrotas é a primeira vez que o time tem aproveitamento de 50% desde 2006. Vários jogadores tiveram atuações espetaculares ao invés de ficarem relegados a segundo plano. O novato Tyreke Evans, que estava suando às bicas por não conseguir ser armador das jogadas nem a pau, simplesmente destruiu sem Kevin Martin no time. Foram 32 pontos contra o Jazz, 23 pontos e 8 rebotes contra o Warriors e 20 pontos, 8 rebotes e 8 assistências contra o Thunder. Em parte porque parece mais à vontade em quadra por poder atacar a cesta, mas principalmente porque o papel de armador ficou muito mais nas mãos de Beno Udrih, que está jogando como uma versão paraguaia do Steve Nash, abusando nos passes em ângulo e nas pontes-aéreas. Os dois juntos na armação se complementam muito bem e podem revezar suas funções sem comprometer em nenhum aspecto. Enquanto isso, Jason Thompson pegou pelo menos 10 rebotes nos três jogos, colecionando três double-doubles, e a troca do Artest começou a fazer efeito: Ron ia dar o fora da equipe de qualquer jeito, mas o Houston mandou por ele uma escolha de draft que tornou-se o Omri Casspi, israelense draftado na 23a escolha, e mais o Donte Greene, pirralho do Rockets que havia chutado traseiros nas Ligas de Verão. Casspi está se saindo muito bem na parte defensiva, puxando contra-ataques, e o Greene é um pontuador nato que sabe colocar a bola na cesta sempre que tem minutos.
Sem Kevin Martin, todo mundo começou a ter mais oportunidades, mais minutos, mais posses de bola, e a pirralhada começou a se destacar. O time ficou marcado na temporada passada como sendo fracote e assustado (para arrumar a falta de força física no garrafão, tinham draftado o excelente Spencer Hawes, que é um pivô que só arremessa da linha de três pontos), então dessa vez eles quiseram arrumar gente com vontade de dar umas trombadas, cabeçadas, pegar uns rebotes, beber uma cerveja, coçar o saco e cuspir no chão. A chegada do Nocioni foi perfeita nesse sentido, não posso imaginar alguém melhor para pular na frente de uma bala ou se jogar de um trem em movimento se isso for importante para um jogo. O sangue novo é cheio de vontade, físico e garra para defender.
O bizarro é que nada disso parece ter tido espaço para aparecer quando o Kevin Martin estava em quadra. A bola passa tanto tempo em suas mãos, ele passa tanto tempo cobrando lances livres, o ataque é tão focado nele, que é como se o resto do elenco ficasse mesmo desmotivado e desinteressado. Isso tem muito a ver com o fato de que, apesar de ser um jogador espetacular e um dos maiores pontuadores da NBA, o Kevin Martin não é um líder. Pelo contrário, ele age como se fosse um jogador qualquer, secundário, e é assim que a torcida e os noticiários tratam o rapaz. Ninguém nunca viu ele jogar, ninguém se importa que ele tem o menor salário dentre os cestinhas da NBA, que ele tem a melhor relação entre pontos e arremessos, que ele bateu um par de recordes na temporada passada. É bem diferente ficar de escanteio para deixar o Kobe jogar, ficar de lado para dar espaço para o Kevin Martin que não é tratado como estrela e nem age como tal deve ser bem decepcionante. A postura do time melhorou com um ataque mais equilibrado, distribuído, em que todo mundo tem motivo para levantar da cama toda manhã. As coisas parecem mais animadas para todo mundo.
Mas a principal mudança causada pela contusão do Kevin Martin parece ser mesmo a defesa. O novo técnico do Kings, Paul Westphaul, assumiu a equipe quando o Kurt Rumbis não topou o cargo (posteriormente ele foi levar o esquema de triângulos do Lakers para o Wolves, que continua fedendo com ele de treinador). Westphaul é famoso por criar times ofensivos que não correm muito, desenhando ataques eficientes que se seguram nos jogos e decidem as partidas no finalzinho. A defesa tem que ter um grande papel nisso, claro, mas o Kings foi o pior time defensivo da temporada passada. Por mais que eu ame o Kevin Martin e seus arremessos bizarros, seu jogo de quem parece que não sabe jogar basquete mas que acaba fazendo tudo direitinho, uma coisa que ele não faz ideia do que se trata é defesa. O time acaba sofrendo muito com isso, o Kevin Martin não apenas não sabe defender como também está sempre apanhando como a Rihanna toda vez que bate para dentro do garrafão, o que vai consumindo suas forças (e eventualmente deixa ele contundido pra valer).
Sem ele o time tem outra cara na defesa, outra intensidade nas disputas pela bola, e outro interesse nas jogadas ofensivas. O ataque passa a ser eficiente como manda os moldes do técnico Westphaul e a defesa mantém o time no jogo mesmo sem correria. É uma melhora brutal, e dessa vez não dá pra dizer que quando o Kevin Martin voltar o Kings vai ser ainda melhor. Houve uma polêmica muito grande quando o time de Sacramento resolveu construir ao redor do Kevin Martin, mas o rapaz tem um contrato bem barato para o que faz em quadra. Poucos podem pontuar como ele – e ninguém cobra mais lances livres do que o rapaz, nem o Wade com a arbitragem roubando nas Finais. Mas agora a dúvida sobre seu papel na equipe parece ficar evidente: se o Kings fede e teve a pior campanha da temporada passada com o Kevin Martin comandando o time, não seria realmente mais importante dar espaço e oportunidade para a pirralhada que a equipe tenta cultivar? Adiantaria alguma coisa continuar dando carta branca para Kevin Martin arremessar e rezando para ele ganhar jogos sozinho quando o foco precisa ser em reconstruir a equipe inteira?
Ao invés de uma “síndrome de Gilbert Arenas”, em que o time melhora para compensar a estrela mas depois cansa e passa a feder, o Kings tem mesmo uma necessidade de que todo mundo tente compensar a perda do Kevin Martin mesmo que tudo feda, para que haja evolução, oportunidade, avanço. Não há qualquer ganho possível na volta de Kevin Martin às quadras, a não ser que seja num papel secundário, segurando menos a bola, pontuando menos, ficando menos em quadra. Não me entendam errado, o Kevin Martin é uma estrela e não deveria ser tão ignorado pelo resto da liga como é atualmente, mas ele está no lugar errado na horra errada. O Kings precisa que ele dê um passo para o lado, que se esconda um pouco nas sombras. Ainda que isso seja triste, porque o Kevin Martin chuta traseiros, merece ser reconhecido e eu tenho League Pass para ver o sujeito jogar, o avanço no Kings vai fazer isso valer a pena – e aí eu posso ver um basquete coletivo e divertidíssimo para curar minha ressaca. Times que fedem precisam aprender que não adianta achar que uma estrela vai salvar tudo, é preciso ter coragem de começar do zero e dar oportunidade para todo mundo, como o Wolves assumidamente está fazendo lá em Minessota. Vão perder? Vão, mas uma hora compensa. Medo de perder, medo de feder por uns tempos, acaba gerando times apressados e contratos idiotas, quem não acredita pode ir lá perguntar pro Pistons.