A defesa do Denver Nuggets

Ataques dinâmicos e jogadas ofensivas de efeito certamente atraem público e agradam a torcida, mas diz a lenda na NBA que são as defesas que ganham campeonatos. A crença no poder decisivo das defesas pode parecer mera superstição, como colocar a vassoura atrás da porta ou não passar embaixo de escada, mas há um respaldo estatístico considerável para o amor por defesas mesmo na atual era dos ataques super-eficientes. Mesmo se analisarmos por exemplo toda a última década, que pegou justamente o apogeu dos contra-ataques, das bolas de três pontos e dos placares inflados, ter uma defesa de elite (ou seja, estatisticamente ceder menos pontos a cada 100 posses de bola do que dois terços das outras equipes) é um dos raros fatores comuns a todos os times que sagraram-se campeões.

O Raptors, campeão em 2019, era dono da quinta melhor defesa da temporada regular. O Warriors campeão em 2018 teve a PIOR defesa da década para um campeão, mas ainda assim tinha a décima primeira melhor defesa daquela temporada; quando foi campeão em 2017 (com aquele ataque que enchia os olhos) o Warriors era bem melhor defensivamente, o segundo melhor no quesito. Em 2016 foi a vez do Cavs ser campeão com a décima melhor defesa (e uma defesa ainda melhor do que isso nas Finais da NBA), e em 2015 o Warriors teve nada mais nada menos do que a melhor defesa da temporada sem que a maior parte do público se desse conta disso. Mesmo antes do Warriors ditar os rumos da NBA, o padrão se repete: o Spurs campeão em 2014 tinha a terceira melhor defesa, o Heat bi-campeão em 2012 e 2013 teve a quarta e a nova melhor defesa respectivamente, e até o Mavs campeão em 2011, famoso pelo seu ataque com Dirk Nowitzki, era dono da oitava melhor defesa da liga. Antes, o Lakers bi-campeão de 2009 e 2010 teve a sexta e depois a quarta melhor defesa. Ou seja, ser um time campeão sem ter uma defesa entre as melhores 11 defesas de uma temporada é algo sem precedentes na última década, e seis dos últimos dez campeões tinham uma das cinco melhores defesas da competição.

Não é por acaso, então, que o técnico Michael Malone insista em tornar o Denver Nuggets uma potência defensiva desde que assumiu a equipe em 2015 – se a ideia é montar um time com chances de ser campeão, ter um bom ataque não parece ser o suficiente. Mas o técnico Malone não fazia ideia de quão difícil seria lidar com a defesa de um time que depende de Nikola Jokic, um dos piores protetores de aro da NBA e um jogador constantemente exposto defensivamente por tudo quanto é tipo de adversário. Foram anos de experimentos, ajustes e a ajuda do especialista defensivo Wes Unseld Jr. até vermos os primeiros resultados: o time, que tinha a quinta pior defesa na temporada 2017-18, de repente saltou para a décima melhor defesa na temporada seguinte. Segundo Malone, assumidamente, chegar nesse patamar era mais do que um marco simbólico: para ele, um especialista em defesa durante toda sua carreira como técnico, era questão de orgulho.


 

Estar entre os dez melhores times defensivos é, como vimos, um marco crucial para uma equipe que queira disputar um título, e a comissão técnica do Nuggets sempre esteve perfeitamente ciente disso. Quando Wes Unseld decidiu ajudar o técnico Malone, a ideia não era tornar a equipe de Denver a melhor defesa da NBA, mas apenas colocá-la nesse clube exclusivo dos dez melhores – somando isso a um ataque eficiente, o sucesso nos Playoffs deveria ser apenas questão de tempo. A dupla de técnicos estava certa: bastou a defesa dar esse salto de qualidade e ter orgulho em defender para que o time surpreendesse, pegando todos os especialistas desprevenidos e conquistando a segunda melhor campanha da Conferência Oeste. Para a temporada atual, o time deu mais um salto, nesse momento com a segunda melhor defesa da NBA após mais de um mês como líder defensivo da liga. Com um elenco sem grandes estrelas defensivas e com Nikola Jokic tendo que passar o máximo possível de minutos em quadra, dado seu caráter de liderança, o Nuggets ainda assim conseguiu aquilo que parecia impossível: estar no topo das melhores defesas, muito melhor do que o “modesto” objetivo de se manter no top-10. Como isso é possível?

O primeiro passo foi começar admitindo um problema: Nikola Jokic não tem explosão, não sai do chão, não dá tocos e embora seja durão no que se refere a tomar PORRADA, é facilmente batido por qualquer defensor minimamente mais ágil do que ele. Para termos uma ideia, por dois anos consecutivos ele esteve entre os cinco piores jogadores protegendo o garrafão em toda a NBA. Ao assumir essa dificuldade, o Nuggets podia então testar diferentes maneiras de ajudá-lo, fosse com treinamentos individuais, fosse com alterações táticas que envolvessem ele e seus companheiros. Até a temporada 2017-18, no entanto, não houve sucesso. Para poupar o pivô, tentaram orientá-lo a recuar frente a qualquer sinal de corta-luz, tentando ao menos usar seu corpo largo para dificultar cestas embaixo do aro e forçar os adversários à meia distância. O problema é que Jokic recuando era completamente inútil: além de ceder a meia distância, que os adversários do Nuggets aproveitavam à exaustão, ainda era possível simplesmente atacar a cesta porque Jokic não conseguia impedir bandejas sem estar posicionado no garrafão com antecedência. Ter o pivô em quadra era sinônimo de cestas fáceis para o adversário e o resto do elenco não tinha especialistas o suficiente – nem experiência o bastante, por ser um dos times mais jovens da NBA – para tapar os buracos que sua estrela causava. Além disso, os treinamentos individuais não faziam Jokic parecer mais confortável na defesa; pelo contrário, o pivô era constantemente pego “no meio do caminho”, confuso e frustrado, nem defendendo o corta-luz e nem conseguindo recuar o suficiente, o que é um lugar muito ruim para ficar porque o atacante pode simplesmente escolher o tipo de arremesso que quer dar. Foi então que a comissão técnica do Nuggets resolveu tentar uma abordagem inusitada: perguntar para Jokic em que situação ele se sentia mais confortável defensivamente. A resposta, completamente bizarra, transformou inteiramente o Nuggets: “No perímetro”, respondeu o pivô.


 

Jokic acredita ter mais opções de reação e conseguir fazer melhor uso do seu corpo quando está defendendo adversários no perímetro que acabaram de sair de um corta-luz. Isso significa que ao invés de recuar, dando passos para trás rumo ao aro enquanto é contornado pelos adversários como se ele fosse um CONE DE TREINOS, Jokic prefere avançar, ler a movimentação do atacante e então PRESSIONAR, usando seu tamanho para forçar seus adversários a contorná-lo ainda longe do garrafão. Nessas situações os demais jogadores do Nuggets podem se aproveitar do desvio dos adversários para povoar o garrafão a tempo, assumindo a defesa do aro que Jokic nunca conseguiu entregar. E enquanto isso ocorre, Jokic tem tempo para se recuperar, retornando ao garrafão se necessário ou marcando individualmente o pivô adversário que tenha ficado momentaneamente livre.

O Nuggets resolveu implementar uma defesa, então, que respeitasse o desejo de Jokic e ao mesmo tempo não o deixasse completamente exposto no perímetro, onde no mano-a-mano ele também seria batido em praticamente todos os lances. O desenho defensivo final é mais ou menos o seguinte: assim que acontece um corta-luz envolvendo Jokic (a jogada ofensiva mais comum quando alguém está enfrentando o Nuggets, porque permite que qualquer atacante possa explorar as limitações do pivô), Jokic avança para marcar o jogador que está com a bola nas mãos, geralmente um armador. Mas o defensor original do jogador com a bola, aquele que supostamente trombou no corta-luz, não desiste da jogada e nem passa a marcar o jogador que fez o corta-luz – caso ele fizesse isso, teríamos aquilo que chamamos no basquete de “troca”, ou seja, em geral um pivô marcando um armador e um armador marcando um pivô, algo longe do ideal. Ao invés disso, o armador que foi bloqueado apenas luta contra o bloqueio e retorna ao jogador que está com a bola o quanto antes, em geral pelas costas, enquanto Jokic segura as pontas por lá. Assim que o defensor original está perto o bastante, aí sim Jokic volta para o pivô adversário, correndo de volta para o garrafão.

Na temporada 2017-18, quando o Nuggets era uma das piores defesas da NBA, uma situação como essa – um armador adversário pedir um corta-luz de seu pivô – seria uma cesta fácil, porque Jokic recuaria, o armador adversário bateria pra cesta, contornaria Jokic e faria uma bandeja. Agora não mais: o armador adversário sai do corta-luz e tromba com Jokic, e ao se preparar para contorná-lo percebe que seu marcador original, o armador do Nuggets, já está de volta no seu cangote para tentar um toco, tudo longe demais da cesta. Isso força o jogador que tem a bola a uma decisão muito rápida: ou ele arremessa no sufoco assim que sai do corta-luz, ou tenta uma infiltração que pode ser contestada por um defensor que o está perseguindo pelas costas, ou tenta um passe para seu pivô, aparentemente livre.

E é nessa hora que o resto dos jogadores do Nuggets entra em ação, abandonando a zona morta para tentar interceptar um passe para o pivô livre – ou, na pior das hipóteses, atrasar o passe o bastante para que Jokic possa chegar e se posicionar novamente. O plano é aparentemente perfeito porque Jokic lê bem essas jogadas, sabe onde estar após um corta-luz e não precisa de fato defender nem correr, ele só precisa EXISTIR e andar para frente – coisa que um ZUMBI consegue fazer, né. Mas Jokic, quem diria, é um zumbi acima da média: ele está entre os jogadores dessa temporada que mais contribuem defensivamente para seu time mesmo sem fazer muita coisa. É um daqueles casos em que estar no LUGAR CERTO é muito mais importante do que aquilo que você está fazendo lá.

No entanto, essa defesa tem duas dificuldades óbvias. A primeira é que exige uma quantidade surreal de comunicação, porque os jogadores da zona morta, fora da jogada, precisam ser avisados de quando interferir, tapando os buracos que Jokic cria agora propositalmente ao avançar para o perímetro. A segunda dificuldade está justamente no fato de que ao abandonar a zona morta o Nuggets está cedendo a bola mais desejada de toda a NBA moderna, aquela que povoa os SONHOS MOLHADOS de todo especialista em estatísticas, que é a bola de três pontos mais perto possível da cesta (sim, a zona morta é mais perto do aro do que o resto da linha de três).

Como sempre costuma ser o caso em movimentações defensivas, o cobertor é simplesmente curto demais: pra cobrir o pé, precisa descobrir as orelhas. Ao negar o pick-and-roll e proteger Jokic, o Nuggets não tem outra opção que não seja entregar bolas de três pontos caso a bola seja passada da situação de corta-luz para o perímetro ao invés do garrafão. Para tentar mitigar isso, o Nuggets depende de defensores que, se comunicando bem uns com os outros, tentem pelo menos se recuperar o bastante para contestar levemente esses arremessos de três pontos, o famoso “pelo menos aparecer na foto”. Não é o ideal, ainda são bons arremessos para o adversário, mas se os defensores do Nuggets ao menos voltam correndo para o perímetro quando necessário, isso faz com que o adversário tenha que decidir mais rápido – e, com isso, tomar piores decisões. Mesmo a decisão do armador pressionado por Jokic de passar a bola para o perímetro não é nada fácil, porque em geral isso significa um passe arriscado que atravessa a quadra e pode ser interceptado se feito de maneira apressada ou relapsa. O Nuggets não precisa roubar bolas, forçar erros e dar tocos, eles podem apenas colocar os adversários em situações difíceis e torcer para os oponentes simplesmente errarem sozinhos nessas situações de pressão.

Apesar de ser uma das duas melhores defesas da NBA nessa temporada, o Nuggets está exatamente no meio da lista em número de tocos e roubos por posse de bola, por exemplo. Além disso, como o time depende do erro do adversário, é o décimo time que menos causa desperdícios de bola. E aí está um exemplo perfeito de como uma defesa não precisa conseguir roubos, tocos ou forçar erros óbvios (bolas pra fora, interceptações, bolas desviadas) para ser uma defesa de elite. Ao ter que tomar decisões difíceis, em geral os times que enfrentam o Nuggets simplesmente não conseguem dar arremessos bons – mesmo as tais bolas de três pontos da zona morta começam a ser menos tentadas porque sempre tem um defensor correndo desesperado para contestar, e aí os oponentes caem na ARMADILHA de dar um passe para o lado achando que vão encontrar outro arremesso ainda mais livre, o que na verdade permite à defesa do Nuggets se reposicionar. Muita gente que ao ceder essas bolas, o Nuggets eventualmente vai pagar o preço, mas não é o que vemos no TESTE DO OLHO: ao assistir aos jogos, vemos times arremessarem bolas tão apressadas e estabanadas que é difícil achar que esses arremessos vão cair com consistência.

Na temporada atual, o Nuggets resolveu inclusive levar isso para um outro nível: agora todos os defensores do perímetro marcam o mais alto possível, ou seja, o mais pra fora que der da linha de três pontos. Isso não leva a roubos de bola, até porque faltam especialistas nisso (Jamal Murray é o que há de melhor nesse sentido, mas nada fora de série), só que leva a uma PRESSÃO nos jogadores adversários que, sem espaço para arremessar, tentam bater para dentro – apenas para trombar com um Jokic já quase na linha de três pontos, e aí tentar no sufoco um passe contestado, um arremesso apressado e outras coisas idiotas do tipo. Quem enfrenta o Nuggets acha o tempo todo que vai se aproveitar do fato de que a defesa é muito pressionada porque defesas assim são facilmente batidas no drible, ou que vão fazer uso da zona morta livre; no fundo, ao invés de se aproveitar acaba sendo obrigado a jogar rápido demais, no improviso, sem conseguir executar as jogadas mais organizadas que queria. Com tanta pressão no perímetro, incluindo de Jokic, o Nuggets é o segundo time a menos tomar bolas de três pontos nessa temporada. Isso também acaba favorecendo os demais defensores do Nuggets, que não são geniais no garrafão, mas são atléticos o bastante para apertar a linha de três pontos e se recuperar em caso de drible ou tentando fechar a zona morta, gente como Paul Millsap, Jerami Grant, Torrey Craig e o próprio Jamal Murray. É gente difícil de vencer na corrida e que, motivados pelo discurso pró-defesa do técnico Malone, jogam com um orgulho impressionante na hora de proteger a própria cesta.

O Nuggets é uma história de superação e certamente um modelo defensivo a ser seguido, mas é preciso entender que toda escolha, sem exceção, cobra seu preço. Para fazer uso dessa defesa, o Nuggets precisa impedir os contra-ataques – o Jokic só pode fazer o que faz em jogadas de meia-quadra que envolvam corta-luz. Isso significa que a equipe resolveu ABANDONAR o rebote ofensivo – só Jokic tem liberdade para tentar buscar o rebote porque, vamos ser sinceros, ele nunca conseguiria correr de volta para a defesa mesmo. Todo o resto do time, ao errar uma cesta, corre imediatamente para a quadra de defesa, num trabalho extremamente organizado que tenta diminuir o ritmo do adversário e, quem sabe, até esperar Jokic voltar. Parece ótimo, mas para uma equipe que já abre mão de tocos e de roubos de bola, ter que abrir mão também dos rebotes de ataque é um duro golpe do outro lado da quadra, na parte ofensiva. O Nuggets acaba sendo um time com poucos contra-ataques e poucos pontos de segunda chance, o que coloca muito mais pressão no seu ataque de meia quadra – não é por acaso que o time tem o quarto ritmo MAIS LENTO da NBA.

A defesa do Nuggets quebra uma série de esteriótipos defensivos: a de que é preciso ter defensores de elite para ser uma defesa de elite, a que não dá para ser uma boa defesa com um pivô que parece correr em câmera lenta dentro de uma piscina, e – infelizmente – a de que uma boa defesa se transforma num bom ataque. Muitos times com ataques truncados e lentos de meia quadra dependem de uma boa defesa para criar contra-ataques que acelerem o jogo e se transformem em cestas fáceis, mas não é o caso do Nuggets. Sua defesa é pressionada, disciplinada e bem posicionada, mas não gera necessariamente contra-ataques, além de precisar abrir mão dos rebotes ofensivos que também geram cestas bem fáceis. Quem mais sofre com o modelo defensivo do Nuggets é, quem diria, o ataque da equipe.

A defesa maravilhosa do Nuggets, que muita gente diz que eventualmente vai ruir porque seria “explorável”, porque os times “uma hora vão acertar os arremessos” ou porque “não tem defensores tão bons assim” parece estar aqui para ficar. É entrosada, comunicativa (depois que, diz a lenda, os técnicos passaram semanas EM SILÊNCIO nos treinos forçando os jogadores a se falarem entre si), ativa, obediente e bem montada, usa bem Jokic e tem jogadores que compraram o modelo. É claro que ela tem suas limitações – a principal, ao meu ver, são times que usam muito pontes-aéreas, porque aí é possível passar a bola por cima dos marcadores vindos da zona-morta para um pivô que saiba se aproveitar disso – mas já provou que funciona na maioria das situações e é completamente ARRASADORA contra times de ataques menos estruturados, que jogam na “criatividade”. O que é motivo de preocupação, no entanto, é o ataque: sem pontos fáceis, o Nuggets sofre demais para criar vantagens no placar, acaba deixando placares apertados mesmo quando está dominando os jogos e muitas vezes simplesmente não consegue acompanhar os ataques mais potentes dos times de elite da NBA. O que nos resta saber, no entanto, é se essa preocupação deveria tirar o sono dos torcedores do Nuggets – afinal de contas, não era a defesa que ganhava campeonatos? Não é esse o fator comum entre os campeões? Com uma defesa de elite, um ataque truncado mas munido de Jokic não deveria ser suficiente para lutar por um título, especialmente num ano tão aberto como esse? O técnico Michael Malone certamente acredita que tem o que precisa, e a História parece concordar.

 

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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