A grande surpresa

Alguns times simplesmente terminam. Às vezes por culpa de más decisões, de trocas estabanadas, de péssimos resultados; às vezes porque jogadores se aposentam ou simplesmente abandonam o barco. Foi o caso do Cleveland Cavaliers, por exemplo: o time campeão de 2016 apenas chegou ao fim, com LeBron James iniciando um novo projeto em outra equipe e deixando para trás os escombros (e os comprometimentos financeiros) de um time sem muitas chances de sobreviver sem ele. O processo natural, nessas circunstâncias, é aceitar que todos os ciclos eventualmente terminam, esperar o término dos longos contratos que restaram e preparar o futuro com jovens jogadores e escolhas de draft. Se a NBA fosse uma frase motivacional de calendário de parede com foto brega de gatinho, ela certamente seria “Às vezes é preciso perder para poder ganhar”. O famoso um passo para trás antes de ser possível dar dois para frente, que todos os torcedores temem porém aceitam como um momento inevitável para qualquer franquia.

Foi por isso que, mesmo com algum pesar, torcedores e analistas aceitaram o término do Oklahoma City Thunder com a mais solene naturalidade. Aquele projeto mágico – que uniu, numa tacada de sorte sem precedentes, Kevin Durant, Russell Westbrook, Serge Ibaka e James Harden em míseros três anos de drafts impecáveis – teve sua dose de alegrias (especialmente vencer a Conferência Oeste, em 2012), sua dose de tristezas (três Finais de Conferências perdidas num período de 6 anos), sua dose de abandonos (Kevin Durant indo jogar no Warriors), sua dose de trapalhadas (James Harden indo para o Rockets porque o Thunder quis economizar uns trocados) e até sua dose de esperanças (com a chegada de Paul George), mas por fim a janela se fechou, o poço secou, o saco encheu e o time acabou. Ficaram as boas memórias, um gosto incrível de “quase”, uma saudade estranha daquilo que não foi mas poderia ter sido, e a inevitabilidade de um recomeço quando finalmente Paul George e Russell Westbrook foram trocados para estabelecer oficialmente o fim de uma era.

Era pra ser a história mais MANJADA de reconstrução possível, uma em que os torcedores não podiam sequer ficar bravos ou magoados com a franquia. Era para o time ser uma porcaria completa, feder por anos, oferecer nada além de desgosto para torcedores que envelheceriam lembrando dos bons momentos, defendendo Russell Westbrook no Twitter e sonhando com os novos tempos. Mas não: para a surpresa de todos, o Thunder até acabou, mas continuou seguindo. Se o novo time pudesse ser uma nova frase motivacional de calendário de empresa de bujão de gás, seria “O futuro é agora”. Não deu nem tempo dos torcedores processarem a perda e o Thunder já era um dos times mais interessantes, vibrantes e competitivos times da Conferência Oeste.

A torcida só conseguiu sofrer pra valer e ouvir música triste mandando mensagem bêbada no WhatsApp bem no comecinho da temporada: foram 4 derrotas nas primeiras 5 partidas, e o time chegou a ter 10 derrotas e apenas 5 vitórias entrando no mês de dezembro. A sofrência – e o luto com a equipe que terminou – não durou muito: entre dezembro e o fim de fevereiro o Thunder somou 31 vitórias e apenas 11 derrotas, apenas atrás do Milwaukee Bucks em termos de jogos ganhos nesse período. O time entra em março inteiramente na briga por mando de quadra nos Playoffs e só não está melhor por conta do início capenga de temporada – e ainda assim, mesmo com o mês inicial, mantém uma campanha superior à da temporada passada em termos de aproveitamento, quando o elenco ainda tinha Westsbrook e Paul George. Não faz nenhum sentido: como um time termina, se livra de suas estrelas, entra em processo de reconstrução, pega o potão de sorvete e se prepara pra chorar, e aí se sai ainda melhor na temporada seguinte?

Como todo grande caso inesperado de sucesso, a resposta depende de uma infinidade de fatores, mas o principal é o fato de que nenhum time se sai tão bem em momentos decisivos de jogos apertados. Mais do que em qualquer formação com Westbrook, Durant ou Harden, o Thunder da temporada atual está NO CONTROLE. Para termos uma ideia, o time da temporada passada teve um saldo positivo médio de 3.3 pontos por jogo, um dos 10 melhores da NBA – ou seja, o time ganhava com placares elásticos para compensar as vitórias por placares mais apertados e tinha os números de um time capaz de atropelar os adversários mais fracos por uma vasta diferença de pontos. O time dessa temporada, apesar de ter vencido proporcionalmente mais jogos, tem um saldo positivo de pontos menor, de 2.2 pontos, fora do Top 10. É um time que não atropela, que não constrói largas lideranças, mas é um time que brilha nos jogos apertados, correndo atrás do prejuízo e tendo que executar nos momentos cruciais.

Os números são impressionantes: nos 5 minutos finais de jogos com uma diferença de 5 pontos ou menos no placar (aquilo que chamamos de “clutch time”, a HORA DA VERDADE), o Thunder faz em média mais de VINTE E NOVE PONTOS A MAIS DO QUE TOMA. É um número bastante superior ao segundo colocado e melhor time da temporada até aqui, o Milwaukee Bucks, e praticamente o DOBRO do quinto colocado, o Toronto Raptors, famoso por ser um dos times mais controlados da NBA. Não se trata, no entanto, de mera aberração estatística, o tipo de coisa que aconteceria caso o Thunder tivesse tido apenas um ou dois jogos de sorte ao longo da temporada: ao todo, o Thunder teve a experiência de um placar apertado nos 5 minutos finais (ou de prorrogação) em 41 das 62 partidas que disputou nessa temporada, disparado o líder da NBA e mais do que o dobro do Bucks, por exemplo, que só enfrentou essa situação em 18 partidas. Quando colocamos isso em termos de minutos, dá pra ver a enormidade da diferença: o Thunder jogou  um total de 165 minutos de jogos apertados no final, também líder da NBA, contra míseros 50 do Bucks, o time que atropela todo mundo. Ou seja, o Thunder se acostumou a placares próximos, a finais tensos, e esmagou seus adversários ali: venceu 28 jogos assim. Só em dezembro, o time chegou a estar perdendo três jogos por 18 pontos ou mais e virou todos eles no final do último quarto ou na prorrogação. Não há sangue mais gelado do que o de um time que todo mundo julgava estar morto.

Explicar esse tipo de sucesso nos momentos decisivos não é fácil, mas é também explicar as razões desse Thunder ser uma equipe tão boa. Tudo começa com Chris Paul, que tem números discretos – são 17.5 pontos, 6.5 assistências, muito longe dos seus melhores anos na NBA – mas é completamente imparável no tal “clutch time”: o armador é o líder de pontos nesses momentos, tem aproveitamento de 55% dos seus arremessos, 37% da linha de três pontos e mais de 93% na linha de lances livres, além de liderar também em roubos de bola. Seus aproveitamentos altíssimos são fruto de um jogo metódico e perfeccionista que faz com que o Thunder seja um dos 10 times mais LENTOS em jogos de placar apertado.

Talvez esse seja o aspecto mais marcante da presença de Chris Paul em quadra: um time que era na temporada passada com Westbrook o nono ataque mais veloz da NBA é, agora, o nono ataque mais lento graças à troca de armador. Chris Paul certamente impõe seu estilo de jogo mais controlado ao time, mas faz isso mesmo sem ter a bola nas mãos ou sem participar das jogadas. Como comparação, Russell Westbrook finalizava 30% das jogadas do Thunder quando estava em quadra na temporada passada – um dos 15 jogadores a mais finalizar na NBA, e já uma queda dos seus números tradicionais graças à presença de Paul George – enquanto Chris Paul, apesar da liderança, da imposição e da fama de “general”, finaliza apenas 22% das jogadas. A diferença pode parecer pouca, mas o impacto é brutal em muitos aspectos diferentes, que acabam virando uma rede de impactos positivos para o time. Sobram mais jogadas para que outros jogadores finalizem, o que torna o Thunder mais imprevisível e cede espaço para o amadurecimento de Shai Gilgeous-Alexander e para os arremessos de Danilo Gallinari; o técnico Billy Donovan pode desenhar jogadas mais diversas, para mais jogadores, e o ritmo mais cadenciado favorece desenhos táticos mais elaborados, o que faz com que sua mão se torne mais evidente do que nos tempos em que Westbrook finalizava em transição; os novos desenhos táticos acabam incluindo mais jogadores, fazendo com que o time seja um dos que mais passa a bola na NBA; com a bola sendo mais passada, mais jogadores sentem-se parte integrantes do ataque e o clima da equipe torna-se mais inclusivo, coletivo e agradável. Dennis Schröder, que diziam ser bem alheio ao time na temporada passada, agora é notoriamente um dos jogadores que mais brinca e anima o vestiário – enquanto, quem diria, é um sério candidato para o prêmio de melhor reserva da temporada. O clima na equipe é tão BRODERAGEM que rolou até uma compilação de momentos bem-humorados durante as entrevistas de fim de jogo:

Esse tipo de coisa aparece indiretamente nos números: são 3 jogadores no time com média de 19 pontos por jogo, nem mais, nem menos, e Chris Paul NEM É UM DELES, fazendo apenas dos CINCO jogadores com mais de 10 pontos por partida. Outro lugar divertido em que isso aparece? O time é o líder da NBA em arremessos de quadra inteira, aquele arremesso NADA A VER que os times tentam no desespero na quadra de defesa porque o cronômetro vai estourar. Pode não parecer significativo, mas esse é um arremesso que diversos jogadores EVITAM dar para não estragar suas estatísticas, comprometendo o aproveitamento de arremessos, ainda mais porque vários possuem cláusulas contratuais que levam em consideração a porcentagem de acertou ou o número de bolas certas e erradas de longa distância. O Thunder liderar a NBA em tentativas desses arremessos super longos mostra, de maneira velada, que as estatísticas individuais importam pouco frente ao coletivo. O que aparece discretamente em coisas simples como arremessos de quadra inteira ou vídeos de piadinhas aparece de maneira mais evidente em dois casos fundamentais: como a imprensa está lidando com o histórico de “individualismo” de Billy Donovan e de Chris Paul. No caso do jogador, sua postura corporal, caras e bocas e discussões com os juízes, que sempre mostravam um descontentamento e deram a Chris Paul uma fama de ser desagradável e preocupado apenas com o próprio sucesso, agora passaram a ser vistas como sua tentativa de, desempenhando o papel de líder do time, proteger e educar o resto do elenco. Para Billy Donovan, a transformação de opinião foi ainda mais severa: associado a um jogo de mano-a-mano e a uma incapacidade de criar um jogo coletivo, o técnico agora é louvado (inclusive por Gregg Popovich, que lhe atribuiu o melhor trabalho da temporada) por criar um dos basquetes mais inclusivos e sofisticados da NBA atual. O Thunder tornou-se um desses casos em que ao mudar o contexto, muda-se toda nossa percepção: o gênio de Chris Paul parece mais adequado a puxar times da lama do que de brigar por títulos, enquanto Donovan pode agora, na nova situação, mostrar sua visão de basquete por ter jogadores que monopolizam menos a bola e que impõe menos um estilo único de jogo.

Só agora, quando o time foi dado como morto, Donovan teve as peças (e a liberdade) de inovar no sistema tático. Abusou de times adversários que tentaram jogar mais baixo, num “small ball”, colocando Chris Paul, Shai, Terrance Fergunson e Danilo Gallinari ao mesmo tempo em quadro; estabeleceu Gallinari oficialmente como um ala de força moderno, o que catapultou seus arremessos de três pontos para mais de 7 por jogo; abriu mão dos rebotes ofensivos (marca registrada do time da temporada passada, em que eles lideravam nesse quesito) para se tornar o time que menos recupera posses de bola, colocando seus times para correr para a defesa e evitar pontos de contra-ataque e bolas de três na transição. Essas escolhas, claro, dependem do elenco atual, mais diverso e capaz de criar, com longas posses de bola, arremessos de alto aproveitamento – de modo que recuperar um rebote ofensivo deixe de ser uma prioridade para pontos fáceis, que só vinham antes nessas ocasiões ou em contra-ataques fulminantes. Com os jogadores atuais, Donovan consegue até mesmo usar um surpreendente quinteto com três armadores em quadra ao mesmo tempo para fechar jogos, com Chris Paul, Schröder e Shai oferecendo múltiplas formas de pontuar e atacar a cesta.

É evidente que se trata de uma história feliz para muitos jogadores diferentes – Chris Paul estava em baixa, de escanteio; Gallinari levava o estigma das lesões; Schröder parecia não ter mais espaço na NBA; até Nerlens Noel, reaproveitado nesse time, estava prestes a deixar a Liga – mas a história de maior sucesso é provavelmente do próprio Donovan. Duramente criticado pelos fracassos recentes, foi mantido no comando da equipe sob protestos. A diretoria, no entanto, insistiu, afirmando que o cargo de técnico era muito difícil e que Donovan merecia tempo para aprender, refletir e relaxar. Foi a escolha certa, prova de que é impossível julgar um técnico apenas pelos seus resultados com um jogador ou um elenco. Donovan tem tato com os jogadores mais jovens e compreende bem a posição do Thunder: ciente de que apesar de não ter acabado o time ainda é um plano para o futuro, sabe quando preservar seus jogadores, quando apostar no presente e quando admitir que o projeto é de longo prazo. Recentemente, depois de uma derrota medonha para o Bucks por quase 50 pontos, Donovan dispensou todos os jogadores do processo costumeiro de ver vídeos sobre o jogo, discutir as jogadas e repensar estratégias. Segundo ele, a derrota eram “águas passadas”; basicamente, não há pressa suficiente para que o técnico precise esfregar um dos piores momentos do time na temporada em suas caras. O time funciona, existe, foi transformado, não acabou, mas ainda assim terá possivelmente 6 escolhas de primeira rodada no draft entre 2020 e 2022, e até 15 rumo a 2026:

É um desses raros casos de time que pode se reconstruir sem ter ruído, o que sempre causa uma série de dúvidas. Jogadores mais veteranos, como Chris Paul, não estão roubando minutos dos novatos – ou dos futuros novatos – ao continuar na equipe? Faz sentido vencer, e continuar vencendo, quando o time é bom mas claramente não está no mesmo nível da elite da Conferência? No entanto, o sucesso atual do Clippers funciona muito mais como resposta do que como dúvida: Chris Paul é uma figura positiva que transformou o vestiário, o clima e a postura do time, abrindo portas para que Shai Gilgeous-Alexander seja a estrela que pode ser e permitindo que Billy Donovan seja um técnico criativo e consagrado. Temos, então, uma base muitíssimo melhor para inserir novatos do que times em reconstrução costumam ter, muitas vezes passando por anos de derrotas, vestiários arrasados e caçando no escuro por mentores capazes de salvar a postura dos novatos. Timberwolves, Sixers e Suns famosamente perceberam que seus elencos jovens precisavam de algum tipo de estrutura que não existia e nunca parecia perto de se realizar; o Thunder, por outro lado, criou uma estrutura DO NADA, tirou da orelha como truque de mágica, e pode inserir jovens jogadores que podem vencer, que podem sonhar, que podem se inserir em algo maior – mesmo sem a OBRIGAÇÃO de vencer, dado que o time tem muitos anos (e escolhas de draft) para juntar o talento necessário para um título.

O Thunder está nesse momento capitalizando a grata surpresa de ter falecido e ainda assim passar bem: não há nem pressa, nem abandono. É um equilíbrio que apenas as condições certas podem criar, e um ambiente muito mais saudável para se testar, experimentar e estabelecer atletas do que o Thunder da temporada passada, desesperado e – como todo grupo desesperado deparando-se com o fracasso – tóxico, competitivo e pouco amigável. Quem diria que a melhor coisa para o futuro do Thunder seria vencer imediatamente, e que isso aconteceria com um Chris Paul que parecia DESPERDIÇADO em Oklahoma. Algumas condições são ideias, a gente é que não consegue se dar conta enquanto faz o luto do que passou e que – ainda bem – não pode voltar mais.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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