>A greve que não é greve

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Derek Fisher fala após a primeira reunião com a NBA. Atrás dele John Salmons usa um chapéu

Hoje é dia 1º de agosto, aniversário oficial de um mês da tão comentada e temida greve da NBA. O período que passou foi certamente um dos mais entediantes da história recente do basquete norte-americano, incluindo aí algumas partidas do San Antonio Spurs. De notícia mesmo só o Deron Williams postando no próprio Twitter que já tinha um contrato para jogar no Besiktas da Turquia, acordo que ainda está pendente devido a problemas do clube. Ou seja, quase nada de concreto e muita falta de assunto. Porém, hoje houve finalmente uma reunião entre as duas partes envolvidas nas negociações: a Associação dos Jogadores e os donos de equipes da NBA começaram a discutir como encerrar essa situação. Ou seja, a partir de agora poderemos, talvez, ter algo de mais concreto para discutir.

Mas antes disso precisamos entender muitos termos e conceitos essenciais na conversa, começando pela própria palavra “greve“. Muita gente aqui no Brasil, nós do Bola Presa entre eles, está chamando essa paralisação de greve, mas não sei se é o mais adequado para a situação. A definição da palavra de origem francesa é uma “interrupção no trabalho a fim de obter algo, uma paralisação de funcionários com o intuito de protestar ou lutar por aumento de salários ou condições de trabalho”. Porém, não é esse o caso que estamos vendo no basquete dos EUA.

A NBA é uma liga com trinta franquias, os times, que negociam a divisão dos lucros gerados pela NBA com os jogadores, representados por sua Associação, a NBAPA. Essa divisão de lucros, assim como as regras de duração de contratos, salário de novatos, nível do teto salarial e etc, acontece a cada seis anos. O nome do contrato assinado por ambas as partes é o Collective Bargaining Agreement, ou simplesmente CBA. Geralmente o contrato é renovado, com suas devidas alterações, antes de ser expirado, fazendo a liga continuar normalmente. Dessa vez, porém, o CBA venceu no dia 1º de julho e um novo não foi assinado. Claramente a situação é a seguinte, existem duas partes com interesses diferentes e que não chegaram a um acordo sobre alguns pontos, logo não é uma greve, é uma negociação empacada. Os jogadores não são funcionários da liga que estão se recusando a jogar em nome de melhores salários, eles são uma associação separada da NBA que não concordou com os termos de um novo acordo.

Nos acostumamos a ver os jogadores de cabeça baixa aceitando tudo o que o comissário David Stern dita. Ele regula as multas por palavrões, gestos, agressões ou faltas duras e até instituiu as regras de vestimentas dos jogadores fora de quadra. A maioria ouve quieta e pouco reclama, mas eles são submissos devido ao contrato que assinam. Quando fazem os acordos da CBA os jogadores aí sim se declaram funcionários da NBA e aceitam suas regras e seu líder, mas assim que o contrato vence, estão livres. Então repito, não é que eles estão cruzando os braços e se recusando a jogar, não há um contrato quebrado porque não existe contrato algum valendo nesse momento. O site da NBA e dos times da liga nem podem ter referências e fotos dos jogadores porque não há nada de oficial entre uma parte e a outra valendo nesse momento.

A palavra que os americanos usam para se referir ao que está acontecendo é “lockout“. A palavra não tem tradução direta para o português e até por isso ela foi aportuguesada para “locaute“. Esta, segundo um dos poucos dicionários que registram a palavra, é uma “coligação de patrões que, em resposta à ameaça de greve de seus operários, fecham as oficinas ou empresas e não admitem nenhum trabalhador enquanto não chegam à solução da questão em debate”. Ou seja, é uma greve às avessas, uma greve no mundo bizarro. Mas também não é o caso que vemos na NBA, os donos das equipes não estão respondendo à greve ou uma ameaça dela, estão apenas negociando um novo contrato. Mas no caso da negociação desse ano, estamos mesmo mais perto de um locaute do que de uma greve, porque os jogadores estavam mais dispostos a manter as regras do jeito que elas estavam, são os donos os motores por trás da vontade de mudanças mais drásticas. De qualquer forma, não é locaute e nem greve propriamente ditos, mas entendemos o recado quando qualquer uma das palavras é usada.

Não quero dar a entender com isso que a situação é menos conflituosa do que parece. É sim uma briga das boas entre as duas partes, mas acho importante deixar claro que ninguém está pulando fora de algo combinado para fazer birra e, mais importante, ninguém está se sentindo injustiçado e lutando contra um vilão. Não há ninguém bonzinho ou do mal aqui, mais do que patrões e empregados são duas empresas gigantescas negociando uma maneira das duas conseguirem seguir ganhando uma tonelada de dinheiro. Como já disseram algumas pessoas mais nervosas com a situação, “é uma briga só sobre dinheiro entre donos bilionários e jogadores milionários”.

A afirmação tenta minimizar e ridicularizar a discussão, mas não está tão errada assim. Os jogadores são milionários, os donos são, em sua maioria, realmente bilionários, e o impasse entre eles é puramente econômico. Antigamente já houve discussões sobre as regras do Draft, idade mínima para se jogar na NBA, adição ou não de novas equipes e poderiam existir até discussões novas sobre questões de doping, duração da temporada, código de vestimenta e maneiras de punição por indisciplina, mas não, nada disso está em pauta dessa vez. Não há filhos no meio do casamento, aqui a discussão é só sobre como dividir os bens.

Para entender o antigo CBA eu recomendo esse post que eu fiz há algum tempo, é o “Como entender o Salaray Cap”. Lá eu explico boa parte das regras que valiam até o fim da temporada passada e que os jogadores querem manter valendo. Uma delas é o “soft cap”, um teto salarial maleável e que pode ser ultrapassado desde que o time esteja disposto. Para quem está com preguiça de ler o post antigo inteiro, colo aqui a parte que explica o que é o “soft cap” e a diferença dele para o “hard cap”, que é a vontade dos donos.

“Uma característica importante do salary cap da NBA é que ele é um “soft cap”, ao contrário das ligas de hockey e de futebol americano que são “hard cap”. Isso quer dizer que o teto dessas outras ligas são duros como pedra, não há como escapar dele, o da NBA tem um teto solar pra dar uma escapadinha. As ligas com “soft cap” têm algumas exceções que fazem com que o limite possa ser ultrapassado em alguns casos. E a verdade é que quase sempre os times da NBA estão acima desse limite. Apenas 5 equipes, Grizzlies, Thunder, Clippers, Blazers e Nets, jogaram a temporada 2009-10 dentro do limite do teto salarial.

Se dá pra escapar, por que ter um limite salarial, afinal? A sacada do “soft cap” é que você pode escapar do limite mas paga por isso, ou seja, você pode escapar mas não tanto, com o risco de ter enormes prejuízos. (…) A primeira mamata na hora de ultrapassar o teto salarial da NBA está no chamado “tax level”, que é uma quantidade determinada pela NBA que os times podem ultrapassar o teto salarial sem serem punidos por isso. Na temporada 09-10 o valor foi de 69,9 milhões de dólares. Ou seja, embora apenas 5 times estejam dentro do limite salarial, não são todas as outras 25 equipes que pagarão multas, serão na verdade apenas 12. Porém, as 5 antes citadas dentro do teto terão benefícios que outras não terão.

Essas 12 equipes que passaram desses 69,9 milhões de dólares terão que pagar 1 dólar de multa para cada dólar excedido. Ou seja, se o Lakers paga 91 milhões de dólares em salário, terá que pagar 21,1 milhões de dólares em multas para a NBA. De todo o dinheiro arrecadado, cada time dentro do salary cap (aqueles cinco já mencionados) recebem 1/30 dessa grana cada um, o resto do dinheiro fica para a NBA gastar com ações da própria NBA”
….

Os jogadores gostam da regra dessa maneira porque assim sempre existem times contratando. Equipes acima do teto salarial não podem contratar quem bem entender, tem seus limites de gastos (explicados na parte 2 daquela série de posts), mas nunca estão sem chance de contratar alguém. Em uma liga com o hard cap, quando se chega ao limite não há o que fazer a não ser tentar trocar por um jogador que ganha menos.

Os donos acham que da maneira atual eles gastam em excesso, que um time acaba forçando o outro a gastar mais com contratações e todos saem perdendo economicamente, que a melhor solução seria todos respeitarem o mesmo teto e assim os gastos ficariam sob controle, nenhum dono zilionário ou General Manager maluco poderia gastar mais do que o resto. Os jogadores pensam que isso quer dizer que menos jogadores terão chances de atuar na liga e os que ficarem terão que aceitar cortes de salário. Se o teto salarial não pode ser ultrapassado de maneira alguma, será pouco provável que um jogador ganhe contratos com mais de 15 ou 20 milhões por temporada como vemos agora.

Para muitos a questão do hard cap contra o atual soft é a pedra fundamental das discussões, mas para mim é só uma pequena, embora bem importante, parte da discussão. Após a reunião de três horas que aconteceu hoje, o Derek Fisher, presidente da NBAPA (associação de jogadores da NBA), disse que as discussões começaram sobre assuntos não relacionados a dinheiro mas em pouco tempo caíram para a área financeira e não saíram mais de lá. Não tem jeito, no resto todo mundo está satisfeito agora, falta acertar a parte de dinheiro. E embora a questão do formato do teto salarial seja fundamental, nada supera as discussões em torno da divisão dos lucros.

Como também expliquei naquele post antigo, um número importantíssimo para a NBA é o BRI, Basketball Related Income, é uma espécie de PIB da liga. Tudo o que a liga fatura, desde aparição de mascotes em eventos até os ingressos e direitos de TV vendidos, passando por propagandas nos ginásio ao redor dos EUA, tudo conta para a definição do BRI. E é esse número que decidia qual seria o tamanho do teto salarial da NBA, baseado na divisão de lucros entre as partes. Até um mês atrás os jogadores ficavam com 57% de tudo o que a liga faturava e os times com os 43% restantes, o número foi decidido no último CBA e na época considerado uma grande vitória dos donos. Hoje eles querem diminuir ainda mais a porcentagem recebida pelos atletas.

Vocês podem estranhar, afinal os jogadores parecem ter salários fixos, aqueles que sempre divulgamos quando assinam um novo contrato, então como eles podem variar de acordo com o BRI? Aquele número divulgado no contrato é o oficial, é o que conta para o cálculo do salary cap, mas não necessariamente o número exato recebido pelo atleta. De acordo com o dinheiro faturado na NBA os jogadores podem dividir entre eles uma graninha extra ou não ganhar tudo o que lhe parecia prometido. É assim: 8% do salário de cada jogador fica retido com a NBA e só ao fim da temporada ele é dado de vez para o jogador ou fica com os times de acordo com essa conta dos 57% dos lucros.

Na última temporada, por exemplo, a liga faturou 4.8% a mais do que no ano anterior, fazendo o BRI subir de 3.64 bilhões de dólares para 3.81 bilhões. O número foi tão bom que os jogadores não só receberam os seus 8% de volta como ainda um dinheiro extra para conseguir alcançar o número de 57%. No fim das contas, o salário médio de um jogador da NBA no ano passado foi de 5.15 milhões de doletas.

O curioso e ainda muito mal explicado é que tudo aqui funciona na base da porcentagem, ou seja, todas as vezes que os jogadores ganham mais do que em relação ao ano anterior, o mesmo está acontecendo com as equipes. E se o salário dos jogadores aumentou 16% nos últimos cinco anos, isso deveria querer dizer que os rendimentos da liga aumentaram a mesma coisa também. A NBA e os times reclamam que estão perdendo dinheiro, mas a verdade é que no atual formato da CBA o BRI só sofreu uma queda no ano da crise econômica em 2008-09. No formato anterior, não muito diferente do de hoje e que entrou em vigor na temporada 1998-99, também só uma queda, em 2002-03, em todo o período de seis anos do acordo. Para piorar, os números de perda de dinheiro divulgados pela NBA e os times estão sendo bastante contestados pela Forbes, a gigantesca revista de economia que tem divulgado números bem diferentes (e otimistas) dos oficiais. Os jogadores terão que saber em que números confiar para saber se abrem mão dos seus 57%.

Após a reunião de hoje à tarde, Derek Fisher disse à imprensa que nenhum avanço foi feito em relação às conversas anteriores. Já David Stern, comissário da NBA e que representa os times nas reuniões, não foi tão seco como Fisher, apenas mais grosseiro. Perguntado por um jornalista se os jogadores estariam negociando com boa fé, disse “Acredito que não”. A reação veio imediatamente via internet, pelo Twitter Spencer Hawes, pivô do Philadelphia 76ers, disse: “23 milhões por ano, hein, Stern? Estranho que nada seja dito para cortar o seu salário enquanto vocês pedem para que todos os jogadores façam o mesmo”.

A verdade é que quase ninguém sabe ao certo quanto o David Stern ganha. Esse número de 23 milhões é uma suposição. O repórter Adrian Wojnarowski do Yahoo! tentou descobrir essa informação e ficou sabendo que nenhum jogador sabe do número e que mesmo entre os donos talvez apenas dois ou três tenham o número correto, o chute de 20 a 23 milhões foi jogado por uma fonte mas sem certeza alguma, pode até ser bem mais do que isso. O salário dele nem é relevante para as discussões, mas o assunto ter sido trazido à tona por um dos atletas já mostra que o clima pode esquentar e que a falta de transparência econômica pode ter um peso decisivo na duração e resultado das negociações.

Mais reuniões, dessa vez mais longas e em dias consecutivos, estão sendo marcadas para esse mês. Até lá analisaremos mais a fundo as causas dessa paralisação, possíveis soluções e tentaremos esclarecer algumas dúvidas suas. Quem tiver pergunta é só mandar nos comentários que tentaremos responder nos próximos posts.

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