🔒A morte do ala de força

Quando Hakeem Olajuwon, um dos maiores pivôs que já existiram, foi campeão em 1995 pelo meu Houston Rockets, seu principal companheiro de garrafão praticamente não ficava no garrafão: Robert Horry, campeão no ano anterior pelo Rockets jogando como “small forward”, foi colocado como ala de força quando Otis Thorpe foi trocado no meio da temporada. Desde então nunca mais voltou à sua posição de origem: ganhou outros 5 títulos na NBA, ainda que em papéis pequenos, como um ala de força que arremessava no perímetro.

O experimento foi pensado pelo então técnico Rudy Tomjanovich para abrir espaço para o MVP e melhor defensor daquela temporada, Olajuwon, forçando defensores mais fortes e altos para fora do garrafão. Numa época em que a defesa individual era obrigatória, o plano de Tomjanovich era liberar ainda mais o garrafão para que sua estrela pudesse engolir os defensores no mano-a-mano. Com o sucesso de Horry na posição, consolidava-se na NBA aquilo que chamaríamos de “stretch-4”, ou “ala de força aberto”, uma das possibilidades para times que precisassem de arremessos de três pontos e quisessem isolar um pivô no garrafão. O problema, claro, era encontrar jogadores que atendessem aos requisitos necessários para cumprir a função a contento, tendo em vista que com a marcação individual era necessário que o ala de força conseguisse marcar adequadamente seu adversário na defesa, provavelmente dentro do garrafão. Continuou, por conta disso, uma escolha ousada, arriscada, uma opção viável para alguns poucos times ou momentos específicos de uma partida.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Horry sendo abduzido por um alienígena”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2015/11/Horry.jpg[/image]

As coisas começaram a mudar de verdade no início dos anos 2000. Nas três temporadas que foram de 99 a 2002, a NBA alterou uma série de regras que tinham como intenção tornar a liga mais interessante para o público após um aumento de ênfase dos principais times na defesa, uma consequente queda do número de pontos marcados, a dominância dos pivôs e a aposentadoria de Michael Jordan. A vida dentro do garrafão ficou mais difícil, passando a valer marcação dupla, defesa por zona e a proibição de passar mais do que 5 segundos com a bola de costas para a cesta. Já no perímetro, a vida dos jogadores de ataque foi facilitada com a proibição do contato dos defensores usando as mãos ou o antebraço contra qualquer jogador que tenha a bola ou esteja se movimentando para recebê-la. Qualquer jogador dominante de garrafão subitamente tinha dois ou três defensores no seu cangote, enquanto armadores tinham mais facilidade para infiltrar porque os defensores não podiam tocá-los fora do garrafão. Em 2005, após o Pistons ser campeão com uma defesa monstruosa, as regras para defesa no perímetro ficaram ainda mais rigorosas, facilitando infiltrações e arremessos de fora. Estava dada a tônica do que seria a NBA na próxima década, com as estatísticas avançadas ajudando no processo de percepção dos treinadores: o que vale a pena mesmo é arremesso de três pontos e infiltração para bandejas.

Se esse modelo finalmente provou sua dominância até para os mais incrédulos com o título do Warriors na temporada passada, a verdade é que ele já se anunciava plenamente nos “power forwards” durante a última década, quando aos poucos mais e mais times vencedores passaram a abrir mão dos alas de força convencionais. O Denis fez para mim uma lista com os alas de força titulares de todos os times que se enfrentaram nas Finais da NBA desde 2000 para a gente dar uma olhada nesse processo de transição:

2000 AC Green x Dale Davis

2001 Horance Grant x Tyrone Hill

2002 Robert Horry x Kenyon Martin

2003 Tim Duncan x Kenyon Martin

2004 Karl Malone x Rasheed Wallace

2005 Tim Duncan x Rasheed Wallace

2006 Dirk Nowitzki x Udonis Haslem

2007 Tim Duncan x Anderson Varejão

2008 Lamar Odom x Kevin Garnett

2009 Pau Gasol x Rashard Lewis

2010 Pau Gasol x Kevin Garnett

2011 Dirk Nowitzki x Chris Bosh

2012 Serge Ibaka x Chris Bosh

2013 Tim Duncan x Chris Bosh

2014 Tim Duncan x Chris Bosh

2015 Draymond Green x Tristan Thompson

Em 2000 e 2001, temos alas tradicionais mas já com papéis (e minutos) limitados em suas equipes, com o jogo de garrafão que ainda impera na NBA sendo limitado aos pivôs que esses alas apoiam. Em 2002, já vemos jogadores um pouco diferentes: Robert Horry volta a ganhar um título com seus arremessos de fora e Kenyon Martin é um jogador de transição, capaz de atacar a cesta nos contra-ataques ou vindo de fora do garrafão. Em 2004, temos um dos alas de força mais icônicos da NBA, Karl Malone, enfrentando um Rasheed Wallace em crescente (e um tanto incompreendido) processo de transição para o perímetro. Dominante dentro do garrafão e com um jogo refinado de costas para a cesta, Rasheed resolveu que poderia ajudar mais o Pistons saindo do “marasmo” do jogo embaixo do aro para mostrar seus arremessos de fora. Criticado por muitos por ganhar uma súbita alergia de garrafão, o projeto deu perfeitamente certo quando o Pistons ganhou o título daquela temporada em cima de Shaq e Malone – e bateu na trave no ano seguinte, contra o tradicionalíssimo Tim Duncan. Em 2006 temos Nowitzki em sua primeira final de NBA, duramente criticado por ser “soft” – o que, na prática, significa que seu jogo acontecia mais fora do que dentro do garrafão, arremessando muitas bolas de três pontos. Em 2008 temos Lamar Odom, um jogador capaz de atuar em todas as posições do perímetro – incluindo a armação de jogadas  – assumindo a posição de ala de força contra Kevin Garnett, que sempre teve um jogo mais distante da cesta, ótimo domínio de bola, e que passou sua carreira tendo que habitar o garrafão mais do que lhe fazia sentido. Em 2009, enfim, vemos um Magic que assumiu completamente o “stretch-4” com Rashard Lewis, um ala de força que era ao mesmo tempo um dos melhores arremessadores de três pontos da NBA em sua época, com Dwight Howard jogando solitário embaixo da cesta. Em 2011 temos a primeira final de Chris Bosh, que sempre quis ser um jogador arremessador e tanto brigou contra a obrigação de ser um pivô em Toronto, enfrentando na Final daquele ano os arremessos de longe de Nowitzki. Em 2012 ele enfrentaria Serge Ibaka, um especialista em defesa que “subitamente” começou a acertar arremessos de três pontos da zona morta. Bosh, sempre tão duramente criticado por ter se afastado mais e mais do garrafão ao longo da carreira, jogou ainda mais duas Finais (num total de 4 Finais seguidas) dessa vez contra o símbolo de sua posição na História, Tim Duncan. Por fim, a temporada passada viu Draymond Green chocar o mundo com sua defesa lateral, seu posicionamento para rebotes e seus arremessos de três pontos. Com apenas 2,01m ele é certamente o ala de força mais baixo de toda essa lista, o que é certamente impressionante – e um sinal claro dos tempos.

Quando pareciam que os pivôs seriam banidos do mapa porque as novas regras – e a idade – impediam a dominância de Shaquille O’Neal, Yao Ming parecia nunca conseguir ficar saudável, e até o (na época) limitadíssimo Brad Miller foi All-Star pelo Pacers em 2002, eis que o Magic de 2009 coloca em quadra um quinteto com quatro arremessadores e um único pivô, mostrando como uma figura embaixo da cesta podia ser importante, mesmo com limitações técnicas, para que os outros jogadores encontrem espaços constantes para o arremesso e atropelassem seus adversários do perímetro. Ainda que com papéis e minutos bem limitados, vários times da NBA começaram a apostar em pivôs como apoio para uma vasta coleção de arremessadores e infiltradores. Não é à toa que o Warriors da temporada passada foi campeão mesmo sem o ala de força que por muito tempo foi o alicerce da franquia, David Lee, mas não abriu mão de Andrew Bogut como mastro embaixo da cesta em muitos momentos ao longo da temporada. Eis que a posição de pivô sorrateiramente sobrevive, na miúda, enquanto os alas de força tiveram seu jogo completamente transformado, foram substituídos por jogadores de outras posições, e passaram a viver majoritariamente no perímetro da quadra.

Se 10 anos atrás Garnett teve que adaptar seu jogo para aproximá-lo da cesta, Nowitzki e Bosh eram criticados por serem jogadores pouco físicos, Rasheed Wallace era taxado de louco por passar a focar nos arremessos e o Magic era motivo de piada por oferecer um contrato máximo para Rashard Lewis, agora até mesmo os alas de força com jogo mais tradicional aparecem dando arremessos de três pontos após alguns treinos entre temporadas.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”À direita, eu; à esquerda, a vida.”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2015/11/Cousins.jpg[/image]

Blake Griffin, a máquina de enterrar, ganhou um arremesso de dois pontos de longuíssima distância e um domínio exemplar para bater bola garrafão adentro, vindo de fora, além de um arremesso de três pontos aceitável. Anthony Davis, um dos jogadores mais impressionantes da NBA nesse momento, já chutou mais bolas de três em 7 jogos nessa temporada do que em toda a temporada passada, fora o fato de que está assumindo a armação do time em alguns momentos trazendo a bola para o ataque. Paul Millsap se tornou peça fundamental para o Hawks e enfim se consolidou na NBA após adicionar arremessos de fora – num elenco em que todo mundo, até o Al Horford, consegue fazer o mesmo. Kevin Love, um jogador completo ofensivamente, foi relegado a se tornar um arremessador parado na linha de três na temporada passada, sua primeira no Cavs. LaMarcus Aldridge, o ala de força mais cobiçado pelas equipes esse ano após o fim do seu contrato e que fez carreira com seus arremessos de dois pontos, chutou mais de três na temporada passada do que nas 8 temporadas anteriores somadas. DeMarcus Cousins, talvez o ala de força mais físico da NBA em atividade, já arremessou 19 bolas de três pontos nos 5 jogos dessa temporada – e o mais surreal, com aproveitamento acima dos 40%!

É claro que ainda existem alas de força de jogo mais tradicional, e a NBA está cercada por alas defensivos que estão ali apenas para brigar por rebotes e dar umas pancadas, mas a mudança de regras e as estatísticas avançadas consolidaram uma mudança que estava acontecendo sorrateiramente na NBA nos últimos 15 anos. Ainda que muitos de nós julguem esses alas como se estivéssemos três décadas atrás (criticando-os por não estarem batendo cabeça no garrafão), a nova geração sabe o que o novo basquete espera dela, e nenhum ala de força realmente completo sente-se seguro na Liga sem um arremesso de fora confiável, domínio de bola, e a capacidade de passar a bola antes que a marcação dupla chegue. Estamos presenciando uma posição cada vez mais e mais completa, adaptada aos esquemas táticos mais vencedores e mais modernos, o que é excelente para o basquete. Mas fica um único incômodo, que tanto me atormenta: se antes deixamos tantos talentos de fora, em nossos juízos e nos elencos, porque seus talentos não combinavam com o jogo brigado que os alas de força precisavam desempenhar, será que agora não corremos o risco de ver jogadores possivelmente dominantes, destruidores, os melhores da Liga, diminuindo seu impacto no jogo porque precisam se adequar à nova caixinha dos arremessos de fora? Se DeMarcus Cousins evoluir para fazer a mesma coisa que faz Ryan Anderson, todos nós estaremos perdendo um dos melhores jogadores da NBA no processo.

 

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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