Na semana final da temporada, enquanto San Antonio Spurs, OKC Thunder, Minessota Timberwolves, New Orleans Pelicans e Denver Nuggets ainda lutavam pelas últimas 4 vagas para os Playoffs, com qualquer um deles podendo ficar de fora da pós-temporada, o Utah Jazz já garantia sua presença na próxima fase, numa das histórias mais improváveis – e ignoradas – de toda essa temporada.
O Jazz foi, desde o começo, carta fora do baralho. Isso porque perdeu seu melhor jogador, Gordon Hayward, antes mesmo da temporada começar, quando ele decidiu integrar o Boston Celtics. A situação foi cruel: o Jazz acreditava ter construído finalmente um time competitivo não porque convenceu estrelas a integrarem o elenco, mas porque desenvolveu os próprios jogadores ao longo de anos e não estava disposto a trocar sua maior revelação apenas por medo de perdê-lo. Preferiu arriscar ficar de mãos abanando do que trocá-lo e comprometer o longo processo de reconstrução e sua confiança no jogador. E, porque o esporte não é justo, ficou mesmo de mãos abanando quando Hayward, depois de um breve período de indecisão, resolveu partir para outro lugar.
O Utah Jazz não tinha outra opção que não fosse se ater aos jogadores que já tinha – acrescentando apenas um novato vindo com a décima terceira escolha do draft – e torcer muito para que eles ficassem subitamente muito, muito melhores. O plano parece estúpido, coisa de times desesperados que não conseguem fazer grandes contratações no mercado, até que a gente percebe que, no fundo, esse é o plano que o Jazz mantém desde o começo da década – e que levou o time aos Playoffs da temporada passada.
Dennis Lindsey, o General Manager do Jazz que assumiu a equipe em 2012, passou 5 anos como assistente de Manager no San Antonio Spurs. Por lá, aprendeu que nem sempre a equipe conseguia os melhores jogadores disponíveis, mas que sempre era possível DESENVOLVER jogadores medianos para se tornarem excepcionais se eles tivessem algumas características essenciais: vontade de melhorar, disciplina, comprometimento com os treinos e a comissão técnica. Foi assim que o Spurs se especializou em encontrar talentos no draft, ao invés de no mercado de free agents, e sempre foi capaz de oferecer um elenco de apoio sólido para as estrelas que lhes caíam no colo por pura sorte. Foi com isso em mente que Dennis Lindsey COMPROU, com bufunfa, a escolha número 27 do draft de 2013 e escolheu o pivô francês Rudy Gobert. Gobert era gigante, a maior envergadura já vista na NBA, mas os times resolveram ignorá-lo porque nos treinos para os olheiros ele parecia exageradamente fraco fisicamente, lento e despreparado para a NBA. Lindsey, por outro lado, viajara para ver Gobert na Europa e percebeu que, embora o pivô estivesse treinando AS COISAS ERRADAS para o seu jogo, ele ainda assim treinava compulsivamente querendo ser o melhor jogador possível. Nos treinos em Utah, Lindsey percebeu que Gobert era um desastre em tudo aquilo que os times esperavam dele – força, explosão, domínio do garrafão – mas que ele parecia espetacular naquilo que o Jazz mais precisava, que eram tocos, proteção de aro e pontes aéreas.
A ideia era, portanto, transformar aos poucos Gobert num jogador ESPECIALISTA, alguém que faz poucas tarefas em quadra melhor do que qualquer outro – exatamente aquilo que o Spurs fez, por décadas, ao construir jogadores para serem defensores, arremessadores da zona morta, protetores de rebotes e outras funções pouco glamourosas que renderam ao time títulos atrás de títulos. A princípio, Gobert foi enviado para a D-League, a Liga de Desenvolvimento, e começou a treinar com o avançado instituto de ciências do Jazz para REAPRENDER A SE MOVER. Nós esquecemos disso, mas jogadores que crescem em demasia de uma hora para a outra não sabem como se portar com seus corpos – Gobert sentava de maneira errada, levantava de maneira errada, tinha problemas de postura, forçava seus joelhos. Com o auxílio de uma equipe técnica dedicada, Gobert aprendeu a andar novamente, a agachar, a levantar, a se mover lateralmente, tudo com a intenção de torná-lo não apenas mais eficiente, mas também de evitar ao máximo as lesões que aparecem naturalmente quando um corpo tão grande tenta correr de um lado para o outro da quadra. Em sua segunda temporada, Gobert já assumia seu papel na equipe principal com a troca de Enes Kanter acontecendo para lhe abrir espaço. Dois anos depois, o pivô já era um dos maiores defensores da NBA, o melhor protetor de aro, e um dos maiores responsáveis pelo time alcançar os Playoffs. O lema de Dennis Lindsey é que um jogador pode dominar um jogo fazendo coisas muito simples, liderando um time mesmo sendo um role-player, um “carregador de pianos”. Sua intenção era recriar, com pouquíssimos recursos, o jogo coletivo do San Antonio Spurs em que absolutamente qualquer jogador pode, em dado momento, ser o responsável por uma vitória.
Não é surpresa alguma, portanto, que Joe Ingles tenha saído do banco de reservas da Euroliga, depois de sequer ser escolhido no draft, para se tornar titular do Utah Jazz. Também não deveria nos surpreender que Donovan Mitchell tenha se tornado um dos jogadores mais impressionantes da NBA nessa temporada, cestinha absoluto da equipe com a saída de Gordon Hayward. São todos jogadores que o Jazz escolheu a dedo não pelo talento bruto, mas pela POSTURA e a possibilidade de que fossem transformados de acordo com as funções específicas do time.
Idealmente, no entanto, o time teria uma série de jogadores secundários – ainda que essenciais – enquanto Gordon Hayward, um dos jogadores ofensivos mais completos de sua geração, injetavam no ataque a agressividade e a criatividade necessárias para punir as defesas. Nas temporadas anteriores, Hayward muitas vezes teve dificuldade de assumir esse papel, constantemente dissolvendo-se no basquete coletivo e nas movimentações de bola propostas pelo técnico Quin Snyder. Faltava ao time alguém que quebrasse a sequência de passes com uma finalização confiante, um arremesso certeiro ou uma jogada criativa. Quando Hayward fazia isso, o Jazz parecia imparável – e o plano era, claro, MOLDÁ-LO no jogador que faria isso constantemente enquanto os outros jogadores manteriam a máquina funcionando.
Sem Gordon Hayward, Dennis Lindsey e Quin Snyder sentaram para tentar decidir qual jogador seria TRANSFORMADO para se adequar a essa função. Cogitaram usar Rudy Gobert, que se mostrou um finalizador no pick-and-roll acima da média, mas seria insanidade aumentar demais sua participação no ataque quando ele parecia render tão bem num papel mais limitado. Em seguida, resolveram que seria necessário convencer o recém-chegado Ricky Rubio, um jogador que apenas UMA VEZ na carreira alcançou os 40% de aproveitamento nos arremessos, a se tornar um pontuador agressivo e reconstruir sua dinâmica de arremessos. No começo da temporada, Rubio arremessou – em volume, mais do que em qualidade – como nunca havia arremessado na vida. Gobert também teve muito mais a bola nas mãos no ataque do que jamais parecia que ele seria capaz após sua transformação num pilar defensivo. Mas a resposta que o Jazz precisava estava, na verdade, em outro lugar.
Donovan Mitchell estava cotado para ser escolhido nas primeiras 15 escolhas do draft, de modo que o Jazz e sua escolha de número 24 não tinham muita chance. Mas Dennis Lindsey estava tão encantado pelas coisas que ouvia falar sobre a ÉTICA DE TRABALHO de Mitchell que convenceu o jovem jogador a fazer um treino privado em Utah mesmo assim. Foi lá que a comissão técnica percebeu que Mitchell era um excelente pontuador, mas que poderia ser MOLDADO para se tornar algo diferente – um pontuador perfeitamente incorporado a um trabalho coletivo, alguém que conseguiria pontuar de maneira agressiva sem nunca, jamais, segurar demais a bola nas mãos. A crença em seu desenvolvimento era tanta que o time trocou sua escolha 24, somada ao promissor Trey Lyles, para poder adicionar Mitchell com a escolha de número 13.
Certamente Donovan Mitchell é melhor do que todos nós esperávamos – não é sempre que um novato faz mais de 20 pontos por jogo participando de mais de 70 partidas em sua temporada de estreia – mas precisamos somar a isso o fato de que ele caiu na TEMPESTADE PERFEITA. O Utah Jazz estava desesperado para que alguém assumisse esse papel de finalizador, dando carta branca para arremessar, mas ao mesmo tempo deu todas as condições para que Mitchell precisasse poucas vezes se preocupar em criar o próprio arremesso, com os demais jogadores movimentando a bola e o espaçamento da quadra beneficiando a qualidade de suas situações ofensivas. O essencial é apenas que ele segure pouco a bola e seja continuamente agressivo – o Jazz é o segundo time com mais infiltrações na NBA, baseado na ideia de que todos os jogadores podem atacar a cesta e passar a bola para fora, ou para uma ponte aérea, a qualquer momento, e Donovan Mitchell e sua agressividade rapidamente o colocaram próximo aos 10 jogadores que mais infiltram em toda a NBA.
Enquanto isso, Ricky Rubio se tornou um arremessador prolífero nos casos de Mitchell não estar bem ou não poder jogar; Joe Ingles foi trabalhado para conseguir armar o jogo e infiltrar nas situações em que for necessário, além de expandir seu alcance nas bolas de três pontos; e até Derrick Favors, que parecia abandonado pela franquia e envolvido em qualquer negociação de troca, foi transformado num jogador sólido tanto no ataque quanto na defesa para tapar os buracos que a ausência de Gobert deixa eventualmente na equipe. Foi assim que o Jazz alcançou os Playoffs antes que seus rivais apesar de tantas adversidades: sem Hayward, com Rudy Gobert perdendo 28 jogos por lesão, Rodney Hood ficando fora por 15 partidas até ser trocado, o promissor Dante Exum jogando apenas as últimas 12 partidas da temporada até aqui, e jogadores como Jae Crowder chegando no meio da temporada em andamento. Em condições ideias – Gobert passando uma temporada inteira saudável, por exemplo – o Jazz teria garantido sua vaga com ainda mais antecedência, e certamente teria cravado mando de quadra nos Playoffs. Tudo sem acrescentar nenhum grande nome, sem escolher um novato badalado, e sem ter trocado seu então principal jogador para receber qualquer coisa mínima que fosse no lugar.
O que não faltam na NBA são equipes que jogam uma temporada de cada vez – tentam montar o melhor time possível ano após ano com o que estiver disponível. É o caso do Cavs, que nunca sabe se LeBron estará lá ou não e tem carta branca para contratar e trocar para formar um plantel ao seu redor; é o caso do Mavs, que tenta distribuir dinheiro nas férias para contratar o máximo de talento que consegue, até que uma hora não conseguiu mais nada. Mas as grandes histórias dessa temporada são dos times que possuem um PLANO DE LONGO PRAZO, uma estrutura por trás de todas as decisões mesmo quando as circunstâncias não parecem ser as melhores. A temporada do Spurs foi um desastre, sem sua maior estrela graças a lesões, e ainda assim o time garantiu – ainda que em cima da hora – sua ida aos Playoffs graças ao mesmo planejamento, a mesma constância e o mesmo elenco de apoio com o qual tanto nos acostumamos. O Raptors, quando tudo apontava para uma possibilidade de desespero e reconstrução, insistiu com seu projeto de longa data, com seu elenco cuidadosamente montado, e alcançou o topo do Leste. E embora numa história menos alardeada, o Utah Jazz entra na mesma chave: com o planejamento que data de 2012 e investindo pesado no desenvolvimento dos jogadores – inclusive exigindo, nas cláusulas contratuais, que o elenco fique em Utah nas férias para treinar aspectos pontuais – teve uma temporada vencedora mesmo quando, frente às dificuldades e um começo muito capenga, parecia não ter muitas chances.
A temporada da NBA se aproxima do final deixando uma mensagem muito interessante sobre gestão: quando tudo dá errado, os times mais bem estruturados, mesmo nos menores mercados e abandonados pelas suas estrelas, se saem melhor do que os times que improvisam para formar os planteis mais talentosos. Às vezes o basquete não é inteiramente sobre talento, mas sobre a tempestade perfeita: ter os jogadores certos, desenvolvidos da maneira certa, para as funções específicas da equipe. Draft costuma ser muito caótico e aleatório, mas dessa vez parece que Donovan Mitchell não foi mero acaso: o Utah Jazz sabia exatamente o que queria, e sabia exatamente o que procurar.