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O tédio é o maior inimigo do homem. Se não fosse por ele, ninguém teria criado a pólvora, invadido a Hungria ou tentado chegar na Lua apenas para ver que ela não era feita de queijo. Inventamos todos os tipos de coisas para não morrer de tédio, incluindo uma cruel temporada de 82 jogos na NBA – que, apesar das lesões causadas pelo excesso, até parece coisa de criança perto dos 162 jogos por temporada na MLB, a liga de baseball. Entediados que somos, precisamos arrumar alguma coisa para nos entreter nesse curto período em que o mundo fica completamente sem basquete. É comum, faz parte da natureza do homem procurar alguma coisa para fazer. Para o azar do ala do Mavericks, Josh Howard.
Trata-se da união de duas coisas: a primeira é o tédio, a segunda é uma cultura que idolatra celebridades com a mesma paixão que idolatra saber da vida pessoal de todo mundo. Acho que as duas coisas estão interligadas, aliás: por que você iria querer saber quem é a nova mulher do seu vizinho se você não estivesse entediado? E se o vizinho for famoso, o interesse é ainda maior. Por isso, toda e qualquer atitude polêmica de um jogador famoso da NBA vai parar imediatamente na mídia e o mundo se delicia julgando o sujeito.
A lista de incidentes com o Josh Howard fora de quadra com ampla cobertura da mídia nos últimos tempos foi bastante ampla, por exemplo. Pelo jeito, ele também anda um pouco entediado. Pra começar, admitiu numa rádio que fumava maconha assim que a temporada acabava, assim como vários outros jogadores da NBA. Depois, deu uma festança de aniversário para si mesmo no meio da série de playoff contra o Hornets. Após a eliminação, foi preso por dirigir em alta velocidade no meio de um racha, ação pela qual terá que ir a julgamento. Em seguida, perguntado sobre sua influência sobre as crianças durante um evento de caridade, botou os repórteres para correr. E para finalizar, dia desses foi filmado num evento de caridade durante o hino nacional dos Estados Unidos, dizendo que não iria cantar aquela merda porque ele é negro.
Uma rápida passeada pela internet nos leva a uma multidão de pessoas querendo a cabeça de Josh Howard, criticando o Dallas Mavericks por não tê-lo trocado enquanto era tempo, afirmando que ele não deveria mais jogar basquete, que é um sujeito terrível. Peraí, então se o Manoel da padaria fumar um baseadinho durante as férias, ele passa a ser imediatamente um péssimo padeiro? Que porcaria de lógica deturpada é essa? Até mesmo para uma coisa completamente idiota e reprovável, tipo tirar rachas por aí, isso tornaria o Manoel menos adequado para sua função na padaria?
Nós idolatramos tanto os esportistas de elite que não somos capazes de aceitar que tenham falhas, que sejam humanos, que cutuquem o nariz, que já tenham sido fãs de Sandy & Júnior ou se divirtam com o deslife de lingeries do Superpop. Se o cara faz merda, então ele faz merda, o que isso tem a ver com basquete? Nas férias, o executivo ou dirigente vai pra onde quer, faz o que bem entender e fala o que bem entender. O jogador não pode por qual motivo? Por que o ambiente de trabalho se extende para todo o resto da vida do jogador e ele não pode nunca estar de folga? Pra mim, é tão ridículo quanto ator de novela da Globo apanhando na rua por aí, que é uma coisa que costuma acontecer bastante. Eu até entendo, se eu visse um ator da Globo eu também iria querer bater por eles não terem um pingo de talento, mas eles federem no trabalho não tem nada a ver com a vida civil deles. Não iria querer ninguém me perseguindo no supermercado porque fiz alguma merda no meu emprego, são coisas separadas que não podem se confundir.
No caso do Josh Howard, não apenas misturam sua vida profissional com a pessoal como também julgam suas ações de um modo totalmente conservador e ridículo. Ele não quer cantar o hino nacional, acha que não faz parte do seu país por ser negro e os Estados Unidos tratarem os negros como lixo. É uma escolha dele, oras. Já estou de saco cheio de gente levando patriotismo a sério, é tão ridículo quanto torcedor do Palmeiras não falar com torcedor do Corinthians, é apenas uma convenção, uma linha imaginária. Há uma dificuldade muito grande em lidar com o outro sem exigir que tenha nossas convicções e nosso ponto de vista. Mas no caso dos esportistas, é pior. Quando não são como a gente deseja, reflexos de nossos ideais (ou dos ideais da maioria), achamos que eles “não merecem estar lá”. Afinal, eles são famosos, ganham milhões de dólares por ano, dormem com supermodelos e não trabalham num escritório. São honras muito grandes que só deveriam ser alcançadas por seres superiores que não fumem maconha e que cantem o hino dos Estados Unidos com a mão no peito. Ridículo.
Engraçado é que a única voz sensata que se levantou sobre o incidente do Josh Howard não cantar o hino foi justamente do Ron Artest, o jogador mais criticado em quadra pelas coisas que faz na vida pessoal. Ele não passou a mão na cabeça do Josh Howard e nem defendeu o patriotismo, apenas disse que é uma questão de educação, que as escolas deveriam falar mais sobre o preconceito. Que ele entende o que é não se sentir inserido no próprio país mas que, aos poucos, percebe que nem todas as pessoas são ruins, estão apenas divididas pela ignorância e precisam de alguém que possa unir a todos.
Eu concordo bastante com o Artest. Racismo e preconceito é questão de educação. Mas acrescento: patriotismo também. Afinal, o que é o patriotismo senão um preconceito? Trata-se apenas de ter uma opinião pronta sobre valores, indivíduos e regiões sem ter pensado neles antes. Amar ou odiar qualquer coisa incondicionalmente significa que você está se atendo a uma idéia preconceituosa ao invés de pensar melhor sobre as coisas.
No fundo, quando julgamos as ações do Artest, do Josh Howard, do Rasheed Wallace, estamos lidando com preconceitos porque não podemos imaginar como é ser de uma cultura diferente, com uma mentalidade diferente, ver-se tão rapidamente cercado por fama, dinheiro, mulheres e gente vigiando seu traseiro gordo onde quer que você vá. Lembro de uma entrevista com o Jamaal Tinsley em que, após se envolver em um punhado de incidentes com trocas de tiros, ele disse que era algo normal e que acontecia com todo mundo, só o critivavam porque ele é famoso. Diabos, dá pra imaginar uma cultura em que dar uns pipocos por aí é completamente natural? Não dá, mas existe. E temos que aprender a aceitar isso.
Da próxima vez em que o Tinsley atirar para cima em uma boate, tente pensar em que tipo de cultura ele nasceu, que tipo de educação teve, qual o ambiente em que vive. E depois se pergunte: que diabos isso tem a ver com a profissão dele, que é jogar basquete? O que o cu tem a ver com as calças? O Rasheed Wallace tem uma frase genial sobre isso. Intrigado sobre a personalidade de Sheed, que estava feliz e sorridente enquanto assinava centenas de autógrafos para crianças, um repórter perguntou para onde tinham ido as tradicionais reclamações, caretas e a expressão carrancuda presentes nos jogos. “Aquilo é meu trabalho, e você também não iria querer que te atrapalhassem no seu serviço. Mas aquilo fica nas quadras, não tem nenhuma relação com a vida aqui fora.” Se mais gente pensasse como ele, Josh Howard poderia ser um completo idiota, igualzinho a bilhões de outros completos idiotas pelo mundo. E sem aparecer nas manchetes, sem ser cobrado pela influência que tem nas crianças. Oras, as crianças são as mais entediadas de todas e por isso ficam jogando Pokémon sem dar a menor importância para a vida do Manoel da padaria – e para a vida de Josh Howard, não importa quantas decisões geniais ou equivocadas ele consiga arranjar.